O TRIÂNGULO ATLÂNTICO:

SONS DA IBÉRIA, ÁFRICA E BRASIL DURANTE O PERÍODO COLONIAL

 

Porém, eu me persuado, que a maior parte destas modas lhes ensina o demônio: porque é ele grande poeta, contrapontista, músico e tocador de viola e sabe inventar modas profanas, para as ensinar àqueles, que não temem a Deus. Nuno Marques Pereira (1652-1728)

Para o moralista Nuno Marques Pereira, boa parte dos males que afligiam a colônia portuguesa na América no início do século XVIII devia-se à proliferação das canções profanas no toque dos violeiros da época. A julgar pela temática de grande parte de sua obra literária, Gregório de Mattos e Guerra (1636-1696) encarnava os piores medos de Pereira. E se sua língua ferina granjeou-lhe inimigos e problemas no Brasil e em Portugal, ainda hoje suas profanidades e obscenidades escandalizam muita gente.
Retratando portugueses e baianos de todas as esferas, a obra poética de Gregório de Mattos é uma ótima fonte de informações sobre a música ouvida nas ruas, casas, conventos e bordéis do Brasil seiscentista. Além de comentar e criticar funções musicais e teatrais, de mencionar instrumentistas e cantores, de citar nomes de peças instrumentais e de descrever coreografias, Mattos usava romances e tonos espanhóis como base para novas composições. Cantava e variava também modas profanas em português, ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos” cantavam. Nuno Marques Pereira atribuía tais modas à invenção do demônio—ele próprio um exímio tocador de viola.
E o “Boca do Inferno” também tocava viola. O fato de ser instruído musicalmente dá mais peso aos seus comentários e descrições envolvendo tanto a música da elite quanto aquela que se ouvia nas festas populares e nos bordéis. Mattos ocupa-se também da música das ruas, dos mulatos e negros, a música dos calundus, cerimônias afro-brasileiras que tanto irritavam Pereira.
No século XVIII, outros poetas descreveram o ambiente musical brasileiro e as notáveis interações entre formas e práticas musicais portuguesas, africanas e brasileiras, alguns condenando, outros louvando. Nas Cartas Chilenas, Tomás Antonio Gonzaga descreve a “mulata em trajes de homem [que] dança o quente lundum e o vil batuque”, coreografias que apresentavam a “lasciva umbigada”. Na seqüência, Gonzaga narra como a dança passou das “humildes choupanas” para as “casas mais honestas e palácios”. Enquanto isso, no litoral do sul do Brasil, danças afro-brasileiras vinham interagindo com coreografias e toques de viola açorianos e portugueses, resultando numa mistura que passou a ser conhecida como fandango e que permanece viva em pontos remotos do litoral do Paraná e Santa Catarina.
Tais interações ocorriam também em Portugal. Roendo-se de inveja e em tom abertamente racista, Bocage satirizou em vários versos os modinheiros brasileiros Domingos Caldas Barbosa e Joaquim Manuel da Câmara, presenças constantes nos salões lisboetas. O talento deste último, famoso tocador de machete e compositor de modinhas, foi enfatizado em testemunhos imparciais, como os dos franceses Louis e Rose de Freycinet e do austríaco Sigismund Neukomm. Impressionado, Neukomm compôs variações para piano sobre um tema de Joaquim Manuel e intermediou em Paris a publicação de uma coleção de modinhas do macheteiro.

Algumas danças, bailes e canções do Triângulo Atlântico durante o período colonial

Cumbé, Paracumbé: Dicionários dos séculos XVIII e XIX definem esses termos como bailes africanos ou afro-brasileiros. No Brasil colonial algumas fontes mencionam os quicumbis e cucumbis—prováveis variantes do cumbé—relacionados às saídas do Rei Congo promovidas pelas irmandades de negros e mulatos durante as festas religiosas.

Pavana, Gagliarda, Saltarello, Tarantela: Danças de corte familiares aos tocadores de viola ibéricos e latino-americanos. Mattos menciona a pavana, a sarabanda e o saltarello. A gagliarda registrada no manuscrito de Coimbra é uma versão espanhola em tempo binário, e não no típico ternário das galhardas inglesas e italianas. O códice para saltério de Antonio Vieira dos Santos registra ainda algumas danças de corte um pouco posteriores, tais como minuetos, contradanças, gigas e valsas.

Rojão, Vacas: Prelúdios ou interlúdios instrumentais, os rojões portugueses da época de Mattos são na sua maioria passacalles, ou variações sobre um baixo harmônico de quatro notas descendentes. Estruturada da mesma forma, a peça denominada vacas tem sua origem na canção do século XVI “Guardame las Vacas”. O baixo em questão era mais conhecido no resto da Europa pelo nome de romanesca, e foi utilizado como base para a improvisação e composição de variações durante pelo menos três séculos.

Arromba: Citado em Minas Gerais no início do século XVIII como canção, o arromba parece ter sido anteriormente um baile. Costumava ser bailado pelo irmão de Mattos em um bordel da Bahia “com o pé e com a mão, e o c* sempre no lugar”, o que ele achou curioso, pois na Bahia aquela parte do corpo era sempre “dançante”.

Cubanco: É muito vaga a única menção de Mattos, que relaciona o cubanco (cubango) ao lado de peças ibéricas como o canário, a espanholeta e o vilão. Um relato posterior de Frei Lucas de Santa Catarina descreve um menino tocando o cubanco vigorosamente a ponto de quebrar sua pequena viola, ou machinho.

Gandum e Lundum: A associação do termo gandum a contextos negros por escritores do século XVIII nos leva a crer que esta dança teria origem afro-brasileira. Alguns estudiosos sugerem tratar-se de um antecessor do lundu, às vezes grafado lundum, ou landum. O lundum é a dança afro-brasileira mais difundida no mundo luso-brasileiro durante o período colonial. Sua origem remonta a coreografias da África central e ocidental apresentando umbigadas, disposição em roda dos participantes, e acompanhamento por palmas e instrumentos de percussão. No final do século XVIII, o lundum difunde-se em diversos contextos sociais e raciais, assumindo formas tais como peça instrumental de salão, toque de viola, canção, além de preservar alguns elementos da coreografia original em regiões diversas do país, como o Pará e o leste de Minas Gerais.

Chula e Desterro: Datado dos primeiros anos do século XIX, mas contendo músicas das últimas décadas do século anterior, o códice para saltério de Antonio Vieira dos Santos registra peças afro-brasileiras e marcas de fandango, tais como o lundum, o batuque, a chula, o desterro, o vilão, a tonta e o chico. Possivelmente originário da ilha de Santa Caratina, pouco se sabe sobre a peça denominada desterro. A chula, bastante comum em Portugal, é mencionada no sul do Brasil durante o século XIX como dança sapateada.

Vilão, Canário: Geralmente definidas como peças instrumentais, também são relacionadas a coreografias com os mesmos nomes. Na península ibérica, desde o século XVII, o vilão, ou villano, é associado ao refrão popular Al villano se le dán / la cebolla con el pan. No Brasil, existem evidências de que o vilão já estava incorporado aos fandangos do litoral paranaense no início do século XIX. A coreografia do canário envolvia o sapateado ágil e vigoroso. Existem ainda hoje no litoral sul do Brasil e no interior paulista várias coreografias sapateadas, cuja origem talvez pudesse ser relacionada ao canário, tamanha era a sua popularidade nos domínios ibero-americanos durante o século XVII.

Marinícolas: Trata-se de uma paródia da célebre canção Marizapalos, que sobrevive em várias fontes ibéricas e latino-americanas. Mattos satiriza aqui as preferências sexuais de um alto funcionário do tesouro português, retendo várias expressões do original—às vezes versos completos. A identificação foi feita apenas em 1990 por Heitor Martins.

Ay verdades que en amor, Ay de ti pobre cuidado: Tonos humanos citados ou usados como mote para a composição de novos poemas por Mattos.

A minha Nerina gosta dos meus ais: Modinha árcade luso-brasileira. O musicólogo Gerard Béhague atribuiu a autoria do texto desta peça ao mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa, conhecido tocador de viola e improvisador de modinhas. O códice para saltério de Antonio Vieira dos Santos também apresenta versão musical desta modinha.

A saudade que no peito, Ninguém morra de ciúme: Modinhas brasileiras do final do século XVIII. Ao contrário das modinhas árcades, as modinhas brasileiras apresentavam texto coloquial e expressões idiomáticas afro-brasileiras. Além do fraseado melódico em contratempo ou ligeiramente fora do pulso, a música caracterizava-se pelo toque “rasgado” e pelo uso de ritmos e acompanhamentos sincopados. A rítmica do lundum aparece notavelmente na modinha Ninguém morra de ciúme. Talvez não por coincidência, a modinha A saudade que no peito apresenta o mesmo padrão rítmico do desterro.

Instrumentos

A maior parte do repertório apresentado neste programa provém de fontes para a viola de cinco ordens, instrumento também conhecido como guitarra barroca, verdadeiro ancestral da "viola caipira" brasileira. Além da viola, os arranjos do grupo Banza empregam uma formação instrumental que poderia ser encontrada na Bahia do final do século XVII, incluindo o machete, a bandurra, a tiorba, o violino, flautas de diversos tipos, pandeiro e vários instrumentos afro-brasileiros, como o berimbau, o djembe e o bala, ou balafon. O uso desses instrumentos é justificado pelas menções em Mattos e, na ausência destas, pelas citações de outros autores da época—Domingos do Loreto Couto e José Mazza, por exemplo—e ainda pela iconografia luso-brasileira do período.
Os instrumentos musicais aqui utilizados pertencem a dois grupos principais: os europeus e os afro-brasileiros. Entre os instrumentos europeus, o violino barroco, o traverso (flauta transversal de madeira) e a bandurra (uma espécie de bandolim ibérico, com cordas de tripa), ocupam-se principalmente das melodias. A harmonia e a linha do baixo ficam a cargo das violas, do machete (viola de pequenas dimensões e tessitura aguda) e da tiorba (instrumento de tessitura grave da família do alaúde). Os instrumentos afro-brasileiros tem uma função geralmente rítmica, como o djembe, o talking-drum e o berimbau, e às vezes também melódica, como no caso do balafon (o ancestral da marimba). Alguns instrumentos de percussão europeus também são usados na base rítmica, como o tambor provençal e o pandeiro, que no Brasil passaram a ser utilizados especialmente nas folias do divino.

Fontes

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Secção de Música, códice M.M. 97: Cifras de viola por varios autores. Recolhidas pelo Ldo Joseph Carneyro Tavares Lamacense. Códice do início do século XVIII, com música em tablatura para viola, bandurra e rebeca. Transcrito em parte na tese de doutorado de Rogério Budasz, The five-course guitar (viola) in Portugal and Brazil in the late seventeenth and early eighteenth centuries. Los Angeles: University of Southern California, 2001.

Biblioteca do Palácio da Ajuda, Lisboa: Códice 54/X/37 26-55, “Modinhas do Brazil”. Códice manuscrito do final do século XVIII contendo modinhas brasileiras a duas vozes e acompanhamento de viola. 

Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga, códice Ms 964. Livro de órgão de fins do século XVII ou início do século XVIII.

Biblioteca Pública de Olot, Gerona: I-VIII. “Cancionero de Olot”, vários autores. Editado parcialmente por Miguel Querol Gavaldá nas coleções “Música Barroca Española” e “Cancioneros Musicales de Poetas del Siglo de Oro”, Madri: CSIC.

Biblioteca Xeral de la Universidade de Santiago de Compostela: “Manuscrito Guerra”, contendo tonos humanos de autores diversos, c1680.

Círculo de Estudos Bandeirantes, Curitiba. Códice manuscrito de cerca de 1823 com música em tablatura para saltério. Editado integralmente em fac-símile: Antonio Vieira dos Santos, Cifras de Música para Saltério. Estudo e transcrições musicais de Rogério Budasz. Curitiba: Editora da UFPR, 2002.

Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, Lisboa. Códice não catalogado do início do século XVIII com música em tablatura para viola, bandurra e cravo. Transcrito em parte na tese de doutorado de Rogério Budasz, The five-course guitar (viola) in Portugal and Brazil in the late seventeenth and early eighteenth centuries. Los Angeles: University of Southern California, 2001.

 

Rogério Budasz
Universidade Federal do Paraná, Curitiba

 

Grupo Banza

O Grupo Banza empresta o seu nome de um antigo instrumento musical africano bastante comum nas Américas durante o período colonial, o mbanza. Formado em 2003 e tendo sua base em Curitiba, o grupo interpreta a música antiga brasileira em instrumentos históricos e tradicionais da Europa, África Ocidental e Brasil.
O grupo explora as conexões entre a música européia praticada no período colonial e as interações e modificações sofridas no Brasil, que resultou no surgimento de uma verdadeira música popular brasileira em fins do século XVIII. Em seus projetos, o grupo tem trabalhado com o repertório contido em fontes musicais até agora pouco estudadas, tais como a música portuguesa para viola (guitarra barroca) do início do século XVIII e o códice para saltério de Paranaguá, do início do século XIX, sempre procurando equilibrar um forte conteúdo de pesquisa com uma postura interpretativa mais livre, derivada da tradição oral brasileira.
Desde 2003, o grupo tem se apresentado em vários estados brasileiros, com Ademir Mauricio (voz), Ana Paula Peters (flauta-doce e traverso), Orlando Fraga (teorba, bandurra, violas tradicionais e históricas), Paulo Demarchi (percussão, violas tradicionais), Roger Burmester (tiorba e bandurra), Rogerio Budasz (violas tradicionais e direção), e Sandro Romanelli (violino histórico e rabeca).

Componentes

Ademir Maurício (voz, viola de cocho, violão romântico)
Ana Paula Peters (traverso e flauta-doce)
Orlando Fraga (viola de mão, violão romântico, tiorba, bandurra)
Paulo Demarchi (berimbau, djembe, claves, tambor provençal, viola de cocho, balafon, talking drum)
Rogério Budasz (violas, direção)
Sandro Romanelli (violino barroco e rabeca paranaense)

O Grupo Banza utiliza instrumentos construídos pelos luthiers Leandro Mombach (bandurra, balafon, violino, violão romântico, mbanza), Luciano Faria (viola, tiorba), Roberto Holz (traverso), Luis Amorim, Helcio Fomin (violino), e Braz da Viola (viola de cocho).

Programa: Sons do Triângulo Atlântico

- Cumbé 8º tom (Coimbra)
- Marinícolas / Marisapoles 4º tom (Coimbra)
- Pavana 1º tom, Barros / Pavana 1º tom italiana (Coimbra)
- Gagliarda (Coimbra)
- Terantela (Coimbra)
- Arromba 4º tom (Coimbra)
- Paracumbe 7º tom (Coimbra)
- Cubanco 7º tom (Coimbra)
- Ay verdades que en amor (Olot)
- Saltarello (Braga)
- Rojão 2º tom, Sylva / Rojão 1º tom, Marques (Coimbra)
- Vacas 1º tom, Barros (Coimbra)
- Chula Ponteada (Vieira dos Santos)
- A minha Nerina gosta dos meus ais (Modinhas do Brazil, Vieira dos Santos)
- Zabumba Alegre 7º tom (Vieira dos Santos)
- Desterro (Vieira dos Santos)
- A saudade que no peito (Modinhas do Brazil)
- Gandum 7º tom (Coimbra)
- Lundum da Bahia 7º tom (Vieira dos Santos)
- Ninguém morra de ciúme (Modinhas do Brazil)
- Ay de ti pobre cuidado (Guerra)
- Vilão 7º tom (Gulbenkian)
- Canário (Coimbra)

 

principal . intérpretes.. gregório . sonora .crioulo .agenda .cd naxos