CIRCUITO SESC SONORA BRASIL 2006

O Sonora Brasil consiste em levar a música escrita e de tradição oral de diversos estados a diferentes partes do País, divulgando a produção musical brasileira que não é encontrada no mercado usual.

Realizado desde 1998, acontecendo em 64 cidades de 20 estados do País, este ano o projeto tem o tema crioulo como motivo de seu desenvolvimento, abordando a música brasileira em seus aspectos mais característicos, influenciada pelas culturas ibérica e africana. A idéia é dividida em quatro etapas. As próximas acontecerão nos meses de julho, agosto e outubro, e trarão outros grupos de diferentes localidades do Brasil.

 

Crioulo, "sonora" do Brasil

por Wagner Campos (SESC - Rio de Janeiro)

                                                                    “Você vê as coisas como elas existem e pergunta: porque?
                                                                                             Mas eu sonho coisas que nunca existiram e por isso pergunto:
Porque não?”.

                                                                                                   Bernard Shaw.

Para além do sentido pejorativo que adquirem algumas expressões, fruto em geral de antigos e arraigados preconceitos, faz-se necessário de quando em quando recuperar criticamente o significado estrito que guarda determinadas palavras, na certeza de assim, na impossibilidade de anula-las, pelo menos, estar contribuindo para o resgate e posterior dimensionamento de seu real significado.

Assim é com o termo “crioulo”, que adquiriu em nossa história recente, principalmente nas áreas urbanas do sul do país, um sentido negativo não só de natureza racial, mas também sócio-econômica, utilizado em geral para discriminar a totalidade dos indivíduos de etnia afro-descendente do país.

Como é amplamente sabido, os povos africanos oriundos de várias nações, vindos como escravos para o Brasil apresentavam características diversas, entre costumes, línguas e comportamentos, constituindo, conseqüentemente, segmentos os mais diferenciados, cada qual representando parte de um todo que hoje sabemos único. 

Em termos históricos, ocorre que a todo indivíduo negro nascido de pais africanos na América, escravo ou não, bem como ao branco nascido nas colônias européias, era dada a denominação de “crioulo”,  do étimo “criar”,  termo que englobava também o dialeto falado por estes. Assim é que sobre a questão, Pe. Raphael Bluteau, em seu “Vocabulário Portuguez e Latino” publicado em Coimbra e Lisboa entre os anos de 1712 e 1727, escreve:

                                    “Efcravo, que nafceo na cafa do seu fenhor”.

Em “Diccionario Manual Etymologico da Lingua Portugueza”, de F. Adolpho Coelho, publicado em Lisboa no ano de 1899, temos:

                              “Que é natural das colonias europeas e tem cor branca.
                                     O dialecto usado n’essas colonias”.

Hildebrando Lima e Gustavo Barroso, em seu “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, publicado no Rio de Janeiro em 1939, escrevem:

                            “( bras.) Primitivamente, o negro nascido na América”.

Em “Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa”, publicado no Rio de Janeiro em 1954, Laudelino Freire diz:

                            “Indivíduo nascido na América e procedente de europeus;
                                  Negro nascido na América, por oposição ao originário da
                                  África; Dialeto colonial; Originário do país onde vive;
                                  aborígene, autóctone; Pertencente ou relativo aos habitantes
                                  nativos duma região”.

E Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em seu “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, publicado no Rio de Janeiro em 1986, escreve:

                               “Diz-se de indivíduo de raça branca nascido nas colônias
                                     européias de além-mar, particularmente da América;
                                     Diz-se do dialeto falado por essas pessoas. Dizia-se do
                                     negro nascido na América”.

Resume aí, pois, o significado estrito do termo “crioulo”, para além do sentido pejorativo que adquiriu, caracterizando, na diferença, o brasileiro originário, singular, ou seja, aquele que não era pertencente nem mais a África e nem mais a Portugal, inclusive no sentido cultural.

Em termos culturais, e musicalmente falando, a riqueza africana legada ao Brasil se  caracterizou, de uma forma geral, através da combinação de instrumentos típicos principalmente de percussão, de tipos, tamanhos e timbres variados, favorecendo práticas singulares sempre voltadas para a dança, produzindo, em combinação com as vozes, um conjunto característico e harmonioso. Por sua vez, do europeu herdamos a quadratura estrófica, o sentido tonal harmônico, as formas lírico-melódicas, bem como o seu instrumental específico, destacando as violas, os diversos tipos de aerofones e os instrumentos de arco.
 
E é neste contexto de natureza ritmico-harmônico-melódica que a contribuição musical de negros e brancos se revelou fecunda em nosso país, apresentando características determinantes de sobrevivência, determinando, na sobrevivência, o nascimento de uma “sonora” do Brasil que, analogamente àqueles primeiros descendentes, também poderíamos denominar igualmente de “crioula”, por sua condição originária e singular.

A música tradicional do povo do Brasil apresenta de um modo em geral características marcantes calcadas na oralidade, guardada na memória de indivíduos iletrados, inserida em contextos mais amplos de comunidades ágrafas, determinando, de modo único, formas diferenciadas de permanência, de manifestação espontânea e coletiva, envolta no anonimato.

Por isto mesmo, a abordagem da cultura e, especificamente, dos modos de produção e difusão da música do povo do Brasil de hoje, constituída como elemento vivo da contemporaneidade, é assunto da mais alta relevância e de reconhecida importância para a compreensão do que somos, baseado no principal fator que nos distingue: a diversidade.

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