O Cancioneiro Ibérico em José de Anchieta - Um Enfoque Musicológico
Rogério Budasz
2 O Cancioneiro Ibérico em Anchieta [continuação]
Mira Nero
A interpretação do título desta composição (f. 94-94v) tem gerado alguns mal-entendidos. Já em 1948 Maria de Lourdes de Paula Martins, referindo-se à possibilidade de a poesia pertencer ao auto de São Lourenço, contestava algumas opiniões estabelecidas: “Nero não parece personagem do auto. [...] Após o Finis com que se encerra a peça encontra-se, no manuscrito, uma poesia intitulada ¡Mira Nero!. Mas nada informa sobre a presença do imperador”. Para Cardoso68, o título indicaria as primeiras palavras de uma canção de amor incorrespondido, em que Nero seria o cruel, o duro, o ingrato. Em outras palavras, uma transposição ao divino de uma canção profana, cuja música seria mantida.
A hipótese de Cardoso encontra-se bastante próxima da verdade. Trata-se de fato de uma divinização, não de uma canção de amor, mas do romance Mira Nero de Tarpeya, daí a razão da presença desta figura no título de uma poesia sobre o Jesus sacrificado. O romance foi várias vezes impresso avulso e em cancioneiros espanhóis do século XVI69. Citado e parodiado em obras literárias do período70, aparece musicado em pelo menos quatro versões diferentes71. Os quatro primeiros versos72 do romance encontram eco em Mira Nero de Anchieta73:
Velázquez de Ávila
Anchieta
Mira Nero
Mira Nero, de Tarpeya
A Roma como se ardia:
Gritos dán niños y viejos,
Y él de nada se dolía.
El grito de las matronas
sobre los cielos subia;
Como ovejas sin pastor
Unas tras otras corrian,
Perdidas, descarriadas,
[10] Llorando á lágrima viva.
Todas las gentes huyendo
A las torres se acogian;
Los siete montes romanos
Lloro y fuego los hundia.
En el grande Capitolio
Suena muy grande voceria:
Por el collado Aventino
Gran gentio discurria,
Y en Cabalo y en Rotundo
[20] La gente apenas cabia.
Por el rico Coliseo
Gran número se subia;
Lloraban los dictadores,
Los cónsules á porfia;
Daban voces los tribunos,
Los magistrados plañian,
Los cuestores lamentaban,
Los senadores gemian
Llora la órden ecuestre,
[30] Toda la caballeria,
Por la crueldad de Neron
Que lo ve con alegria.
Siete dias con sus noches
La ciudad toda se ardia;
Por tierra yacen las casas,
Los templos de talleria.
Los palacios mas antiguos,
De alabastro y silleria,
En ceniza van por tierra
[40] Los lazos y pedreria;
Las moradas de los dioses
Han triste postrimeria.
El templo capitolino
Do Júpiter se servia,
El grande templo de Apolo,
Y el que de Mars se decia,
Sus tesoros y riquezas,
El fuego los derretia.
Por los carneros y osarios
[50] La gente se defendia,
De la torre de Mecénas
Lo miraba todo y via
El ahijado de Claudio
Que á su padre parescia,
Que á su Séneca dió muerte;
El que matara á su tia;
El que antes de nueve meses
Que Tiberio se moria,
Con prodigios y señales
[60] En este mundo nascia;
El que persiguió á cristianos,
El padre de la tirania,
De ver abrasar á Roma
Gran deleite rescebia.
Vestido en cénico traje
Decantaba en poesia.
Todos le ruegan que amanse
Su crueldad y su porfia;
Diopro le rogaba,
[70] Esporo lo combatia,
A sus piés Rubria se lanza,
Acre los besa, y Lamia;
Claudio Augusto se lo ruega,
Ruégaselo Mesalina;
Ni lo hace por Popea,
Ni por su madre Agripina;
No hace caso de Antonia,
Que la mayor se decia,
Ni del padre y tio Claudio,
[80] Ni de Lépida su tia.
Anco Planio se lo habla
Rufino se lo pedia;
Por Británico, ni Tusco
Ninguna cuenta hacia.
Los ayos se lo rogaban
El tonsor, y el que tañia;
A sus piés se tiende Octavia,
Esa que ya no queria;
Cuanto mas todos le ruegan,
[90] El de nadie se dolia.Mira el malo, con dureza,
a Jesús, como moría.
Lloraba la redondeza,
con dolor y gran tristeza...
¡Y él de nada se dolía![6] La justicia furiosa,
viendo en pena al inocente,
decía, muy rigorosa:
¡Sumo Dios omnipotente!
¿no vengáis tan grave cosa?"[11] Mas la clemencia, muy pía,
del hijo de Dios clamaba,
y al Padre perdón pedía
para aquel que lo mataba.
¡Y él de nada se dolía![16] El sol con verguenza y duelo,
ver morir a Dios no pudo,
y cubrióse oscuro velo,
porque moría desnudo,
en la cruz, el rey del cielo.[21] Toda la tierra bullía,
y las piedras se quebraban.
En noche se vuelve el día.
Todas las cosas lloraban...
¡Y él de nada se dolía![26] El corazón de la madre
de dolor está oprimido,
viendo su hijo querido
ser de Dios, su eterno padre,
como puesto ya en olvido.[31] Puesto en mortal agonía,
su Señor y Dios miraba,
y viva, con él moría.
Mas el malo duro estaba,
¡y de nada se dolía!
A estrutura poética aqui é alterada. Anchieta opta por sete quintilhas, com as rimas esquematizadas em abaab, ababa, e abbab, enquanto o romance apresenta noventa versos corridos, com as rimas em versos alternados. Mesmo assim a relação entre as peças é evidente, não só pelo título dado, que não apresenta relação direta com o texto, parecendo antes se tratar de indicação de melodia a ser usada, como também pela manutenção do verso y él de nada se dolía, agora como refrão em estrofes alternadas. Devemos lembrar ainda que o romance foi grandemente popularizado na quadra inicial. É desta forma que aparece citado em obras literárias e musicais e é neste trecho que notamos as similaridades com a composição de Anchieta.
Esta modificação na estrutura da peça poderia significar a impossibilidade de uma melodia comum. Entretanto, em três das versões musicais de que dispomos, pequenas modificações resultam em uma perfeita adaptação do novo texto.
Bermudo nos apresenta a mesma melodia, bastante ornamentada, submetida a duas diferentes formas de acompanhamento, para vihuelas de seis e de sete ordens. Podemos acomodar o texto de Anchieta simplesmente por ignorar as repetições que ocorrem em Bermudo:
Na ensalada El Fuego, de Mateo Flecha, encontramos uma versão de Mira Nero a quatro vozes, menos ornamentada mas tendo ainda algumas semelhanças com a melodia de Bermudo. Também aqui pequenas modificações precisam ser feitas para a adaptação do novo texto:
Existe ainda uma versão instrumental de Mira Nero de Tarpeya, impressa no Libro de Cifra Nueva de Venegas de Henestrosa. O romance aparece aí na forma de cantus firmus, como base para uma série de variações ou glosas de autoria de Francisco Palero.
Apresentamos a seguir as três versões básicas de Mira Nero transpostas ao mesmo grau:
As melodias apresentam algumas diferenças a considerar. A de Flecha é a única em compasso ternário. Concordam as versões de Flecha e Henestrosa no caráter de simplicidade. Mesmo assim, alguns movimentos melódicos análogos, como o impulso inicial ascendente e também o tratamento das cláusulas nos fazem pensar numa origem comum. Das três versões, acreditamos que a de Henestrosa está mais próxima da melodia popular original. A de Bermudo, muito ornamentada, é a mais distante, representando o modelo culto. Deve-se admitir, entretanto, que em épocas e regiões diferentes o romance era cantado sob melodias diversas, tornando praticamente impossível precisar qual das versões seria conhecida pelo jesuíta.
A poesia Tras del rio de los ciedros (f.19-20), poderia ter sido cantada com a mesma melodia de Mira Nero. Isso devido às claras aproximações entre ambas, das quais as mais destacadas são a permanência das rimas em ía em versos alternados durante toda a composição, exatamente como ocorre no romance original, e a repetição quase literal de alguns versos, como con pavor [dolor] y gran tristeza e puesto en mortal agonia.
Nem sempre poesias vertidas ao divino ou destinadas a serem cantadas apresentavam epígrafes indicativas. Na verdade os exemplos mais claros do processo de divinização e do uso da música em Anchieta surgem justamente ao analisarmos outras de suas poesias, desprovidas de indicações tão explícitas. É o que veremos em seguida.
¿Quién te visitó, Isabel?
O Cancionero general74, impresso em 1557, apresenta o texto da canção popular ¿Quién te me enojó, Isabel?, cuja melodia foi preservada por Francisco de Salinas75 e utilizada por Antonio de Cabezón76 como tema para variações. Encontramos paralelo em Anchieta na estrofe que serve de mote ao Auto da visitação de Santa Isabel77 (f. 200 e 206):
Salinas
Anchieta
¿Quién te me enojó, Isabel,
que con lágrimas te tiene?
Yo hago voto solene
que pueden doblar por él.¿Quién te visitó, Isabel,
que Dios en su vientre tiene?
Hazle fiesta muy solene,
pues que viene Dios en él.Notamos o paralelismo à primeira leitura: o mesmo impulso inicial, na forma de pergunta, além da mesma estruturação poética quanto à métrica, acentuação e rimas. Não só o primeiro verso é praticamente o mesmo, como ocorrem ainda várias expressões idênticas. Aliando isto à grande popularidade da canção durante o século XVI, o que diminui a possibilidade de Anchieta ter utilizado uma versão intermediária78, podemos afirmar que estamos diante de uma versão ao divino e de sua fonte79. Não há dificuldade na adaptação dos versos de Anchieta à melodia de Salinas:
O tema não aparece assim de forma tão clara nas Diferencias sobre el villancico ¿Quién te me enojó, Ysabel? de Cabezón. Notemos os compassos iniciais, comparados à melodia de Salinas transposta um tom abaixo:
Venid a suspirar con Iesú amado
Dois cancioneiros quinhentistas portugueses, o de Elvas80 e o de Belém81 registram a cantiga Venid a suspirar al verde prado, que comparamos a uma cantiga de Anchieta82 (f. 12v-13):
Cancioneiro de Belém
Anchieta
Venid a suspirar al verde prado
comigo zagaleja y (vos) pastores
Pues muero sin morir de mal damores[4] Tu eres soled(ad) que esta comigo
saberes que es padescer novos dolores
Pues muero sin morir de mal damores[7] Venid, que el buen pastor ya dió su vida,
con que libró de muerte su ganado,
y dale de beber a su costado.
Venid a suspirar con Jesú amado,
los que quereis gozar de sus amores,
pues muere por dar vida a pecadores.Tendido está en la cruz, corriendo sangre,
sus sanctas llagas hechas limpios baños,
con que se da remedio a nuestros daños.
Também neste caso os paralelos são muito claros, embora apenas no primeiro terceto. As duas composições são iniciadas com o mesmo convite e, como no exemplo anterior, temos a mesma métrica, rimas e várias expressões idênticas. O segundo terceto, existente apenas no Cancioneiro de Belém, não tem nada em comum com a seqüência do poema de Anchieta, formado por três estrofes. É verdade que o último verso é a repetição literal do terceiro, mesmo assim, a peça de Anchieta não apresenta este paralelismo.
As duas versões musicais existentes, ambas a três vozes, são bastante similares, como observamos a partir de uma comparação, à qual adaptamos também o texto do primeiro terceto de Anchieta:
Mil suspiros dió Maria
Pedro de Moncayo83 incluiu em sua coletânea a canção Un sospiro dio Lucía, que tem seu paralelo em Mil suspiros dió Maria84 (f. 12-12v):
Moncayo
Anchieta
Un sospiro dio Lucía
ayer estando lavando:
¡quién fuera tras él bolando,
por saber donde le embía![5] Tan grandes suspiros dió,
que los cielos lo sintieron,
y luego se entristecieron
con el sol, que se eclipsó.[9] Mas viendo, la madre pía,
su hijo estarse finando,
"¡Quién con él fuera expirando!"
con mil suspiros decía.[13] Pues la vida mo llevó,
con él morirme quisiera,
y muriendo con él fuera
más viva que muerta yo.[17] ¡Oh que terrible agonía
de Dios, que se está finando!
¡Quién con él fuera expirando,
pues muere la vida mía![21] ¿Como puedo yo vivir,
pues que se muere mi vida?
Y, con muerte tan sentida,
¿como vivo sin morir[25] Mi Jesús, ¡qué el luz del día
con muerte se va apagando!
¡Quién con él fuera expirando
y muriendo, viviría!Mil suspiros dió Maria
por se estar Jesus finando,
¡Quién con él fuera expirando
pues muere la vida mia!
Citamos ainda o mote alheo, já divinizado, sobre o qual Diogo Bernardes85 compôs novas voltas
Un suspiro dió Maria
Por ver su niño llorando,
Quien tras el fuera bolando
Para ver donde l’embia.e a versão do Cancioneiro de Juromenha86, também ao divino,
Un suspiro dió Maria
su Jesú muerto buscando;
¡quién fuera trás él volando,
[p]or ver adónde le envia!que demonstram a grande voga da cantiga e o interesse especial que despertou nos poetas divinizadores.
A única versão musical existente é a contida no método de guitarra de Luis de Briceño:87
Un suspiro dió Maria
alla en el rio lavando
Ay Dios, quién fuera bolando.
por saber ado le imbiaComo a estrutura poética também é idêntica, não há problema em acomodar a letra de Anchieta à melodia supostamente original. O problema reside no fato de que a única versão musical que conhecemos data de 1626, quase três décadas após a morte de Anchieta. Além de serem escassas as possibilidades de a melodia ter permanecido imutável, a versão a que nos reportamos não apresenta a linha melódica da canção, mas apenas o ritmo e os acordes para o acompanhamento, o que é característico da literatura para canto e guitarra de meados do século XVII88. Ao extrairmos a melodia a partir das notas agudas dos acordes, obtemos como resultado uma configuração extremamente simples:
Quién verá al pastor
Os temas pastoris sempre se mostraram propícios à divinização, basta lembrar que o Bom Pastor foi primeiramente revelado aos pastores de Belém. Já notamos em Venid a suspirar como o próprio Anchieta aproveitou-se das afinidades entre o pastoril e o cristão. Vejamos mais um caso nesta composição do Cancioneiro de Évora89 comparada a outra cantiga de Anchieta (f. 14v-15v)90:
Cancioneiro de Évora
Anchieta
Em Sam Julião
de so el colhado,
se João me viera
Jugar el caiado.
[5] Estava zagala
vestida de festa
y también compuesta
con otra zagala;
yo, en ver su gala.
.............................¿Quién verá al pastor
vestido de fiesta,
su zamarra puesta?
Verálo la pastora.
..............................A correspondência é muito clara. Anchieta repete um verso, substitui expressões por sinônimos em zagala/pastor mantém parte de uma palavra em compuesta/puesta, algo da atitude em ver/verálo e também da sonância em zagala/zamarra. Como nota Askins o refrão foi coletado também por Juan Timoneda91, glosado em seis estrofes, das quais a quarta relaciona-se à versão de Évora e conseqüentemente também à de Anchieta:
[30] Vestida y dispuesta
Estaba Pascuala
hermosa y compuesta
más que otra zagala;
yo, viendo su gala,
jugaba doblado
en San Julián
de somo el collado.Assim como Timoneda, também Anchieta compõe estrofes glosadoras em oito versos, dos quais os dois últimos são tirados do mote. Só que Anchieta cria um mote ao divino baseado já em uma das variações. Destacamos ainda a sexta e última estrofe de Timoneda, que possui correspondências com a quinta da versão de Anchieta, de um total de catorze:
Timoneda
Anchieta
[45] Con media y calzón
vieras cual andaba,
que casi volaba
quitado el jubón
blanco el camisón
de grana labrado,
en San Julián
de somo el collado.[34] Su madre le ha dado
capotín de grana;
sale, de somana,
blanco y colorado.
Huélgase el ganado
viéndole de fiesta,
su zamarra puesta
véralo la pastora.Quanto à festividade de São Julião, ou São Gião mencionada no estribilho, lembramos que era uma das procissões mais importantes em Portugal durante o século XVI, realizada de sete em sete anos e com presença marcante de elementos cênicos e musicais92.
adequação do novo texto
Vamos nos deter novamente na questão da propriedade ou não da modificação do texto das obras musicais, isto é, se nos casos até agora citados resulta satisfatória.
Mira Nero de Tarpeya coloca-nos diante de uma cena dramática: o incêndio de Roma e a morte de velhos e crianças, tudo contemplado sem piedade pelo imperador. Este sentimento é transferido para os últimos momentos de um Jesus agonizante, enquanto toda a natureza demonstra seu pesar. Não há incêndio, mas são retratados eclipses e terremotos.
Também em Venid a suspirar a transição é feita de maneira convincente. O convite aos apaixonados transforma-se no convite aos fiéis. Se o amante muere sin morir, Jesus muere por dar vida e o amor profano, o mal damores, é vertido em amor divino. Também há a coincidência do tema pastoril, o mesmo ocorrendo em ¿Quién verá el pastor?.
Da jocosidade de ¿Quién te me enojó, Isabel?, Anchieta passa à alegria espiritual e, finalmente, o pesar pela ausência do amado em Un suspiro dió Lucía é ampliado ao extremo na cena em que Maria observa a morte de seu filho.
Devemos advertir que na continuidade deste estudo os paralelos vão se tornando cada vez menos convincentes, dificultando a identificação das obras dentro de um limite aceitável de precisão.
Yo nací porque tú mueras
Notemos a semelhança entre uma das canções registradas por Salinas93 e o início do Diálogo entre Jesus e o pecador (f. 2v-4):
Salinas
Anchieta
Yo bién puedo ser casada
mas de amores moriré.Yo nací porque tú mueras,
porque vivas moriré,
porque rias lloraré,
y espero porque esperas,
porque ganes perderé.
..............................
As coincidências ocorrem no campo da métrica, rimas e sonâncias. A temática é totalmente diferente. Transcrevemos na seqüência a linha melódica de Yo bién puedo ser casada, com o texto de Anchieta:
É claro que não seria apenas pela disparidade de afetos que deixaríamos de considerar Yo bién puedo ser casada como possível fonte de divinização. O próprio Simão de Vasconcelos94 já havia denomnado algumas das canções vertidas por Anchieta como "lascivas". E não precisamos nos reportar novamente aos vários exemplos espanhóis e italianos citados em capítulo anterior. O fato é que inexistem aqui os paralelismos dos outros exemplos, impossibilitando-nos de chegar a uma conclusão95.
Não há cousa segura
A primeira estrofe da poesia de Anchieta intitulada por Andreoni Vaidade das coisas do mundo (f.15v-16) lembra algumas das voltas que Pero de Andrade Caminha compôs sobre o mote anônimo Todo me cansa y me pena:
Caminha96
Anchieta97
A esta cantiga velha
Todo me cansa y me pena
No sé que remédio escoia,
Que si la vida me enoia,
La muerte tampoco es buena.
[5] No ay cosa que no pene,
Ni bien ni mal me segura;
El bien porque ya no viene,
Y el mal porque tanto dura.
....................................Não ay cousa segura
Tudo quanto se vê
se vai passando.
A vida não tem dura.
O bem se vai gastando.
Toda criatura
passa voando.
.....................[13] El tiempo passa bolando
No se como ya no llega.
Triste assi me voy cansando
tras una esperança ciega
......................................
A estrutura poética usada diverge em muito do modelo de Caminha. Ainda assim existem paralelos notáveis. Destacamos as rimas em ura e ando, com o uso das mesmas palavras, e, mais que isso, a permanência, embora apenas na primeira estrofe de Anchieta, do próprio ethos. Talvez por isso mesmo o mais provável é que a semelhança seja apenas coincidência, pois muitas das expressões verificadas são clichês. Note, por exemplo, outro uso destes na cantiga alhea variada por Diogo Bernardes98:
No se vida quien te alaba,
Qu’en ti no hay cosa segura
No quiero bien que no dura
Ni temo mal que s’acabaUma versão musical de Todo me cansa y me pena, com voltas diferentes das de Caminha, foi preservada no Cancioneiro de Elvas99. Não sabemos se o autor anônimo preservou algo da cantiga original, e muito menos se era esta a que Anchieta conheceria. Também, se fosse este o caso, novamente nos confrontaríamos com a questão da divergência métrica.
Los que muertos veneramos
Armando Cardoso nota uma “ressonância” das Coplas de Jorge Manrique en la muerte de su padre na poesia Los que muertos veneramos (f. 95v-96v). Ocorre aqui algo similar ao exemplo anterior. A identidade temática é muito grande, mas, por outro lado, as possibilidades de coincidência são menores. Isso devido à imensa popularidade da poesia original - as Coplas de Jorge Manrique100 encontram-se entre as mais imitadas, glosadas e musicadas obras poéticas espanholas do século XVI. Dada a sua grande extensão, selecionamos apenas algumas estrofes, onde a semelhança com a poesia de Anchieta é mais evidente:
Manrique
Anchieta
I
Recuerde el alma dormida,
Avive el seso y despierte,
Contemplando
Cómo se pasa la vida
Tan callando;
Cuán presto se va el placer,
Cualquiera tiempo pasado
Fué mejor.
........................VI
Este mundo bueno fué,
Si bien usarmos dél
Como debemos;
...................................Los que muertos veneramos
por su Dios,
si no los seguimos nos,
¿qué ganamos?[5] Los que las honras del mundo
depreciaron
y las deshonras amaron
de la cruz
éstos, con su buen Jesús
de la muerte triunfaron.
..................................IX
Decidme: la hermosura,
La gentil frescura y tez
De la cara,
Cuando viene la vejez,
¿Cual se para?
...................................[32] Si queremos de verdad
ser de Dios,
hermanos, decídme vos,
si podemos
alcanzar lo que queremos
¿si no lo seguimos nos?
................................XIII
Los placeres y dulzores
Desta vida trabajada
Que tenemos,
¿Que son sino corredores
Y la muerte, la celada
En que caemos?
................................[43] Si la vida de la cruz
no tomamos,
y viviendo procuramos
de morir,
y muriendo a nos, vivir
a sólo Dios, ¿qué ganamos?Não se pode neste caso falar em transposição. A poesia de Anchieta, relembrando a morte de Inácio de Azevedo e seus companheiros em 1570, aproveita-se apenas do modelo e algo da retórica de Manrique, como o jogo entre vida e morte.
Dada a sua popularidade, é improvável que Anchieta desconhecesse as Coplas de Manrique101. E se de fato as glosas sobre Los que muertos veneramos eram cantadas, é muito provável que a música fosse alguma daquelas compostas para as coplas. Tarefa difícil é escolher, entre as sete versões musicais ainda existentes do século XVI 102, três das quais completas, aquela que Cardoso diz que era “cantada pelos mártires no tombadilho do navio ao luar”103. Ficamos em dúvida entre duas: a versão também anônima para três vozes, talvez a mais antiga de todas, contida no livro de Venegas de Henestrosa:
e o fragmento impresso no tratado de Salinas que pelo caráter desta obra deve ter sido a variante mais próxima das canções tradicionais:
Encerramos estas comparações apresentando ainda alguns exemplos, não de poesias contrafeitas ao divino, mas de estrofes de Anchieta que, usando o termo sugerido por Cardoso, parecem ressoar ecos da poesia hispânica:
Las cortes de la Yglesia104
¡O que pán, o, qué vino!
¡o, qué pan tan divino!Anchieta105 (f.9-10v)
Ó que pão ó que comida,
ó que divino manjar
se nos dá no santo altar
cada dia!
...................................Gonzalo de Figueroa106
¡O, qué pán, o, qué pan
tan divino que nos dan!
Sánchez de Badajoz107
Dios del cielo en pan se muestra
¡Oh que divino manjar!
Gil Vicente108
Ño, ño, ño, ño, ño, ño,
ño, ño, ño, que ño, que ño.Que no quiero estar en casa
ño me pagan mi soldada.Ño, ño, ño, que ño, que ño
Ño me pagan mi soldada,no tengo sayo ni saya.
Ño, ño, ño, que ño, que ño.Anchieta109 (f. 14-14v)
Quién murió por darnos vida,
muchas vezes me llamó,
mas yo díjole de ¡no, no, no, no, no!
......................................Silva de varios romances110
Ya no soy quién ser solia,
no, no, no
del muerto la sombra soy.
Notas
68ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 67.
69Cancionero de romances, 15__, p. 212 a 214; Espejo de enamorados, 15__, f. 6v e 7; Silva de varios romances, 1578; Cancionero atribuído a Velázquez de ÁVILA, 15__. Ver anexos, p. 122-123.
70Como observa Carolina Michaëlis de VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 185-186, o romance foi
memorado constantemente em livros castelhanos como a Celestina, o Orfeo de Cancer, o Diablo Cojuelo (Tranco V, 51, v); citado por Lopes na Roma abrasada, e por Alarcón na comédia Mudarse por mejorarse (Acto II Cena XIV) e parodiado no Don Quixote (Parte II, Cap. 44 e 58)Uma versão a lo divino deste romance, de autoria de López de Úbeda, é apresentada por ALONSO, op. cit., p. 228:
Mira el Limbo Lucifer
de los santos residían
gritos dán niños y viejos
y él de nada se dolía.71BERMUDO, Declaracción de instrumentos, 1555, f. 101 e 101v (duas versões, ver anexos, diss14.gif, diss15.gif, diss15.mid); FLECHA, Las ensaladas, 1581, f. 1 a 3 (ver anexos, diss16.gif, diss16.mid); Venegas de HENESTROSA, Libro de cifra nueva, 1557, f. 55 e 55v (ver anexos, diss17.gif, diss17.mid).
72A versão que utilizamos é a de Velazquez de ÁVILA, contida em DURAN, op. cit., vol. I, p. 393-394 [nº 571].
73ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 493.
74Cancionero general, Anvers, 1557, f. 390 v.
75SALINAS, De musica libri septem, 1577, p. 356. Ver anexos, diss18.gif, diss18.mid
76CABEZÓN, Obras de musica para tecla, arpa y vihuela, 1578, f. 193v-196v. Ver anexos, diss19.gif, diss19.mid
77ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 531.
78Popularizou-se a ponto de ser transformado em cantar proverbializado. A este respeito existem os comentários de J. PUYOL Y ALONSO em sua edição crítica de La Pícara Justina, Madrid, 1912, vol. III, p. 267-269 e o artigo de Margit FRENK, “Refranes cantados y cantares proverbializados”, Nueva revista de filologia hispánica, XV, 1961, p. 166.
79Chamamos a atenção para o verso final do mote original: que pueden doblar por él. Em Anchieta encontramos idéia semelhante na poesia (f. 18v-19):
Él que muere en el pecado
sin arrepentirse de él,
este tal es excusado
campanas doblar por él.80Cancioneiro de Elvas, f. 103v e 104. Ver anexos, diss20.gif, diss20.mid
81Cancioneiro de Belém, f. 65.
82ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 461.
83MONCAYO, Flor de romances nuevos y canciones, Huesca, 1589. Reproduzida em FRENK, op. cit., 1987, p. 46-47, nº 92.
84ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 459.
85BERNARDES, Várias rimas ao Bom Jesus, Lisboa, 1594, f. 18v-19.
86Fins do séc. XVI, inícios do XVII, citado por FRENK, op. cit., 1987, p. 47, a lo divino.
87BRICEÑO, Metodo mui facilissimo para aprender a tañer la guitarra a lo español, 1626, f. 10. Ver anexos, diss21.gif, diss22.gif, diss21.mid
88A popularidade das canções, aliada à redução no custo das edições parecem ser os principais fatores para a não impressão da parte do canto nestas obras. Também é possível que a linha melódica devesse ser improvisada pelo solista sobre a base harmônica oferecida pela guitarra. Ver JENSEN, “The guitar and italian song”. Early music, 13 (3), 1985, p. 376-383 e BARON, Secular spanish solo song in non-spanish sources, 1599-1640. Journal of American Musicological Society, 30, 1970, p. 20-42.
89ASKINS, The Cancioneiro de Évora, Berkeley, 1965, p. 30, nº XVI.
90ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 467.
91TIMONEDA, Cancionero llamado sarao de amor [...] segunda parte, Valencia, 1561. ASKINS, op. cit., p. 108 e 109, reproduz o texto impresso por CEJADOR Y FRAUCA, La verdadera poesia castellana, vol. 6, nº 2612.
92LAMBERTINI, "Portugal", in Encyclopédie de la musique et Dictionnaire du conservatoire, Paris, 1920, vol 4, p. 2414, observa que
Une des processions les plus solennelles était encore celle de S. Gião (Saint Julien), qu’on célébrait, en grande pompe, de sept en sept ans; Philippe II, qui avait du reste l’habitude des grandes fêtes religieuses, se déclara enchanté, en écrivant à ses filles, de la richesse des folias et des chacotas, du luxe des costumes et de l’originalité des inventions qui caractérisaient à Lisbonne cette fête religieuse.93SALINAS, op. cit., p. 313. Versão idêntica à de Salinas é registrada no Cancionero sevillano, de cerca de 1568, citada por FRENK, op. cit., 1987, p. 102, nº 219, também com apenas dois versos. Possível versão de ANCHIETA em op. cit., 1989, p. 445. Ver anexos, diss 23.gif, diss23.mid
94VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 34.
95A melodia persiste quase intacta na tradição popular espanhola. Manuel Garcia MATOS a identificou na província de Sória em uma tocata de dulzaina, acompanhante das danças de paus. Pervivencia en la tradición actual de canciones populares recogidas en el siglo XVI por Salinas en su tratado De musica libri septem. Anuario musical, 18, 1963. p. 71.
96CAMINHA, Poesias, MS COD 6384, Biblioteca Nacional, Lisboa, fins do século XVI. Sem a epígrafe aparece também no Cancioneiro de Elvas, f. 28 e 28v.
97ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 402.
98BERNARDES, op. cit., f. 22v.
99Cancioneiro de Elvas, f. 42v-43.
100Reproduzimos o texto apresentado em SANCHA, op. cit., nº 670.
101VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 349-350, lembra que “a obra-prima da poesia castelhana daquele tempo, Recuerde el alma dormida! foi muito admirada e imitada, mas nunca igualada em Portugal”.
102Luys Venegas de HENESTROSA (ver anexos, p. 170), Juan NAVARRO, Alonso de MUDARRA (ver anexos, diss26.gif, diss27.gif, diss27.mid), Francisco de SALINAS, P. Alberch VILLA, Francisco GUERRERO, ROBLEDO. Consideram-se perdidas as versões musicadas por Felipe ROGIER e Gabriel DÍAS.
103Cardoso, em ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 93, não cita a fonte.
104Transcrito em FRENK, op. cit., 1987, p. 656, nº 1395.
105ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 391.
106Transcrito em FRENK, op. cit., 1987, p. 656, nº 1396.
107Transcrito em FRENK, op. cit., 1987, p. 432, nº 896, menciones.
108VICENTE, Auto da fé, transcrito em FRENK, op. cit., 1987, p. 574, nº 1200.
109ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 466.
110Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 162.
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