Revista eletrônica de musicologia

Volume XIII - Janeiro de 2010

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Observações analíticas sobre a Chaconne para piano de Sofia Gubaidulina

 

Eduardo Luís Brito Patrício*

 

Introdução

 

Neste artigo serão apresentadas algumas observações analíticas em relação à primeira seção da Chaconne para piano escrita em 1962 pela compositora russa Sofia Asgatovna Gubaidulina. A Esta breve análise irá considerar, principalmente, aspectos gerais de forma, ocorrências motívicas e formações harmônicas recorrentes. Ou seja, a análise buscará apontar elementos composicionais que revelem, de alguma forma, uma estruturação coerente subjacente atrelada a elaboração de materiais musicais característicos da peça.

 

Antes da análise em si, é pertinente ressaltar algumas informações a respeito da compositora de Chaconne. Gubaidulina nasceu em 24 de outubro de 1931 em Tschistopol, Repúbica de Tatar. Estudou música no conservatório Kazan onde formou-se em piano no ano de 1954. Algum tempo depois, foi estudar composição com Nikolai Peiko no conservatório de Moscou e, mais tarde, com Vissarion Shebalin [1] . No período entre 1963 até o colapso da União Soviética, Gubaidulina viveu em Moscou. Atualmente, Gubaidulina vive em um pequeno vilarejo próximo a Hamburgo na Alemanha. Segundo Lukowsky [2] , é "(...) uma das mais originais e poderosas compositoras de nosso tempo e uma representante destacada da vanguarda soviética das décadas de 1970 e 1980”. Sua produção como compositora é extensa, variada e caracteriza-se pela busca de uma poética pessoal que absorve elementos e técnicas da música ocidental tradicional e contemporânea e da música oriental [3] .

 

Chaconne

 

O termo chacona (chaconne) se refere a “forma de variação contínua do período barroco, semelhante à passacaglia, baseada na progressão de acordes de uma dança do final do século XVI, importada da América Latina para a Espanha e Itália.” [4] . Segundo Randel [5] , por volta do fim do século XVII, a chacona era comum tanto como forma de variação como em forma rondó. Por volta do final do século XVII e início do século XVIII, “a distinção entre chacona e passacaglia foi se tornando cada vez mais imprecisa.” [6] . Nos séculos XIX e XX, a chacona apresenta-se mais como um conjunto de variações sobre baixo ostinato [7].

 

 

Chaconne para piano de Gubaidulina

 

A única peça escrita na época de finalização de seus estudos de composição que Gubaidulina inclui atualmente na lista de seus trabalhos é sua Chaconne para piano de 1962. Foi seu primeiro trabalho por encomenda, a pedido da jovem e premiada pianista Marina Mdivani [8] . Esta peça foi escolhida para este estudo justamente por se situar em um período inicial da carreira da compositora, ainda na época de seus estudos formais em música, o que talvez implique em uma maior facilidade de perceber seus gestos de diálogo entre tradicional e contemporâneo.

Esta breve análise da Chacona para piano compreenderá os compassos de 1 a 32. Nesta, aqui considerada, “primeira seção” da peça, Gubaidulina se utiliza de algumas ideias musicais recorrentes que são reapresentadas de forma variada em quatro ciclos de oito compassos cada. De início, pode-se destacar como elementos estruturantes da seção, uma progressão harmônica (não funcional) que se repete em cada ciclo, e alguns motivos gestuais principais. Para melhor visualizar a progressão harmônica construída na peça, foi feito um levantamento de formações verticais de alturas [9] ao longo dos primeiros oito compassos e, em seguida, dos demais trechos. Segue o material encontrado (notas organizadas da mais grave para a mais aguda, retirando alturas de mesmo nome, quando presentes):

 

Formações Harmônicas

 

1º. trecho (c. 1-8)

2º. trecho (c. 9-16)

3º. trecho (c. 17-24)

4º. trecho (c. 25-32)

1

si, ré, fá#

si, ré, fá#

ré, fá#, si

dó, dó#, fá#, si

2

si, ré, fá#, lá#

ré, lá#, si

lá#, ré

-

3

sol, si, ré

sol, si, ré

sol, ré

-

4

mi b , si b

mi b , si b

lá, si b

-

5

mi, fá

mi, fá

mi, fá

-

6

fá#, ré

-

-

-

7

fá#, ré

-

-

-

8

dó, ré b

-

-

-

9

fá, ré, sol, lá

-

-

-

10

dó, ré#, sol#, ré

dó, mi b , lá b, ré

(notas enarmônicas)

ré, sol#

-

11

fá#, mi, lá, dó#

fa#, mi, lá, dó

mi, lá, dó#

-

12

si b , mi b , lá b , dó

si b , mi b , lá b , dó

mi b , lá b , dó

-

13

ré, dó#, fá#, si

ré, dó#, fá#, si

dó#, fá#, si

-

14

sol#, si#, ré#,

si#, ré#, sol#

si#, ré#, sol#

-

15

dó#, mi#, sol#

mi#, sol#, dó#

mi#, sol#, dó#

-

16

ré#, fá x , lá#

fa x , lá#, ré#

fa x , lá#, ré#

fá#, ré, mi b , fá

17

fá, lá, dó

lá, dó, fá

lá, dó, fá

ré, dó#, mi, fá#

18

sol, si, ré

si, ré, sol

si, ré sol

sol#, si, fá, sol

19

lá, dó#, mi

dó#, mi, lá

dó#, mi, lá

dó#, mi#, dó, sol, lá

20

si, ré, fá#

ré, fá#, si

dó#, fá#, si

si, ré fá#

 

 

De modo geral, é possível encontrar correspondências entre os quatro trechos, no entanto ocorre um distanciamento progressivo à medida que a compositora aumenta a complexidade da música, promovendo alterações, inversões ou adição de alturas. As formações de número 20, que coincidem com as de número 1 dos trechos subsequentes, têm um sentido conclusivo e promovem um retorno ao grupo de alturas inicial da música (si, ré, fá#). O trecho quatro quase não apresenta grupos verticais de alturas e por isso as correspondências não aparecem na tabela. No entanto, é possível identificar grupos semelhantes de notas dispostas horizontalmente como será mostrado mais adiante.

 

Do ponto de vista motívico, esta primeira seção da chacona (compassos 1 a 32) apresenta uma série de movimentos gestuais bastante característicos e recorrentes.

 

motivo a

motivo a'

motivo a''

motivo a'''

Fig. 1 – motivos principais (considerar todos em clave de fá):

 

 

Os motivos a, a', a'', a''', derivados ritmicamente e melodicamente entre si, são responsáveis por iniciar a movimentação melódica e têm caráter temático. Quanto ao aspecto melódico-intervalar, os motivos a e a' se apresentam inicialmente com movimentação cromática e por grau conjunto. Enquanto o motivo a'' é caracterizado por salto descendente de quarta justa e o motivo a''' por saltos ascendentes consecutivos também de quarta.

 

motivo b

motivo c

motivo d

Fig. 2

 

O motivo b introduz um caráter diferente e também apresenta melodia cromática ou por grau conjunto. O motivo c aparece sempre do quarto para o quinto compasso de cada trecho, de caráter anacrústico, com uma função de impulso para continuação das progressões harmônicas. O motivo d está presente no fim de cada trecho com caráter de finalização.

Os quatro trechos inteiros com suas respectivas marcações motívicas estão presentes no Anexo1.

 

Características de cada trecho da seção:

 

Trecho 1: Apresenta a progressão harmônica estrutural com formações harmônicas bastante claras ritmicamente apoiadas nos tempos um e três de cada compasso. Introduz também, de forma clara, as ideias motívicas características da seção.

Trecho 2: Possui maior complexidade e movimentação melódica e possibilita a construção de, pelo menos, três planos de escuta simultâneos: dois melódicos e um de apoio harmônico (figura 3).

 

Fig. 3

 

Trecho 3: Apresenta uma clara separação entre as pautas superior e inferior. Na primeira, constrói um diálogo entre formações harmônicas e condução melódica, enquanto na segunda, há uma movimentação oitavada constante por grau conjunto que parece um tanto independente da pauta superior (figura 4), apesar da ocorrência de coincidências de notas semelhantes às das formações horizontais da pauta superior. É importante observar que esse movimento por grau conjunto se conecta àquele iniciado ainda nos compassos finais (15 e 16) do trecho dois (figura 5). Também nesse trecho começam a ocorrer com mais frequência intervalos de segunda menor, nona menor e transposições com notas homônimas (ex.: dó natural e dó sustenido no terceiro tempo do compasso 21).

 

Fig. 4 – compassos 17 e 18

 

 

Fig. 5 – compassos 15 e 16

 

 

Trecho 4: O mais afastado, por variação, das ideias iniciais. O ritmo é formado por um fluxo de semicolcheias nas duas pautas, gerando oposição constante nota contra nota. Os desenhos melódicos se assemelham mais a arpejos em razão dos grandes saltos. E, em alguns casos, as formações horizontais presentes nos outros trechos aparecem aqui como arpejos. Exemplo, formação harmônica 14 (sol#, si# ré), compasso 29 (figura 6). Há uma distância maior de tessitura entre as vozes e grande exploração da rugosidade entre alturas através do uso de intervalos de segunda menor, nona menor e transposições com notas homônimas, como no trecho anterior.

Fig. 6

 

Mesmo com a liquidação de vários aspectos, é possível reconhecer o movimento melódico característico na pauta superior, entre os compassos 26 e 27. Ao final do trecho 4, as formações harmônicas reaparecem e há uma finalização enfática com o motivo d, nas duas pautas, indo por movimento contrário, até a formação harmônica ‘si, ré, fá, ré, fá#, si' no primeiro tempo do compasso 32 (figura 7).

Fig. 7 – compasso 31

 


Conclusão

 

Este artigo buscou visualizar elementos estruturais da peça Chaconne na tentiva de iniciar um trabalho de compreensão da poética composicional de Sofia Gubaidulina. Pode-se dizer, de maneira a concluir, que tal objetivo foi alcançado e que é possível perceber, de fato, uma relação entre o título da peça, ‘Chaconne', e a forma musical tradicional, pela utilização de um percurso harmônico cíclico e pelo emprego de variação ao longo dos quatro trechos aqui analisados.

 

Referências

 

BOOSEY & HAWKES. Sofia Gubaidulina. Disponível em: http://www.boosey.com. Acessado em: 24 set. 2009.

BRISCOE. James R. Contemporary anthology of music by women. Indianapolis: Indiana University Press, 1997.

COOK, Nicholas. POPLE, Anthony. The Cambridge history of Twentieth-century music. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

KURTZ, Michael. Sofia Gubaidulina: a biography. Bloomington: Indiana University Press, 2007.

LUKOMSKY, Vera. In: SITSKY, Larry. Music of the twenthieth-century avant-garde: a biocritical sourcebook. Westport: Greewood Press, 2002.

RANDEL, Don Michael. The Harvard dictionary of music. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Grove de música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

_________________. The new grove dictionary of music and musicians. Oxford: Oxford University Press, 2001.

 

Notas:

 

[1] BRISCOE, 1997

[2] 2002, p. 183

[3] LUKOMSKY, 2002, p. 184-185

[4]A continuous variation form of the Baroque, similar to the passacaglia, based on the chord progression of a late 16th-century dance imported into Spain and Italy from Latin America .” (RANDEL, 2003, p. 155)

[5] 2003, p.

[6] SADIE, 1994, p. 185

[7] _____, 2001

[8] KURTZ, 2007

[9] Neste estudo não se utilizará a designação ‘acorde' para um conjunto harmônico de alturas (ou notas) de modo a evitar associações com regras e relações funcionais da harmonia tradicional, mesmo que alguns grupos de notas possam ser idênticos a formações triádicas tradicionais.

 

* Mestrando em Música pelo Programa de Pós-graduação do DeArtes / UFPR - epatricio@yahoo.com