Departamento de Artes da UFPR Revista Eletrônica de Musicologia Vol. 5, no. 1 / Junho de 2000 Home Artigos
Adriano de Castro Meyer
Comunicação apresentada no IV Simpósio Latino-Americano de Musicologia - XVIII Oficina de Música de Curitiba, 20 a 23 de janeiro de 2000.
Esta comunicação visa divulgar alguns resultados de minhas pesquisas sobre o compositor Sigismund Neukomm quando de sua estada no Rio de Janeiro. Especificamente trato aqui das obras compostas no Brasil conforme seu Catálogo Temático, comparando-as com as existentes na Biblioteca Nacional da França, além de observações recolhidas em algumas cartas.
Sigismund Ritter von Neukomm nasceu em Salzburg em 1778; foi aluno de Michael e Joseph Haydn em sua cidade natal e em Viena, respectivamente, e considerado pelo último seu aluno predileto. Estabelecendo-se em Paris, em 1810 sucede a Dussek no cargo de pianista residente do Príncipe Talleyrand, ministro dos negócios estrangeiros da restaurada monarquia francesa. Largamente conhecido em sua época, Neukomm viajou incessantemente até seus últimos anos de vida, mantendo amizade com importantes personalidades do período.
Quando em 1816 o Duque de Luxemburgo dirige-se ao Rio de Janeiro para reatar as relações diplomáticas entre os reinos da França e Portugal Neukomm acompanha a comitiva como convidado, mas acaba permanecendo no Brasil até 1821. Suas obras e relatos fornecem um painel indispensável para o conhecimento da vida musical desse período da nossa história.
O Catálogo Temático
O Catálogo Temático de Neukomm foi iniciado pelo próprio compositor em 1804 em Viena e apresenta os primeiros compassos de cada obra, bem como o local e a data de finalização das composições.
O catálogo, depositado na Biblioteca Nacional da França, juntamente com a quase totalidade das obras de Neukomm, é uma cópia feita pelo irmão do compositor, sendo que o original encontra-se perdido. Essa cópia teve uma edição fac-similar editada por Rudolph Angermüller em 1977. Totalizando 1264 obras o catálogo apresenta algumas imprecisões como incoerências em algumas datas e a ausência de algumas peças, por exemplo a harmonização de modinhas de Joaquim Manuel da Câmara.
O compositor determinou por testamento que após sua morte seu catálogo deveria ser impresso e exemplares deveriam ser enviados para todos os seus amigos na Europa, para todas as sociedades científicas e artísticas que lhe agraciaram com títulos, bem como para bibliotecas públicas de todos os países por onde ele tivesse viajado. Um orçamento relativo à essa edição foi solicitado à editora Breitkopf & Härtel, mas não foi efetivado por razões ignoradas.
Relação das obras de Neukomm compostas no Brasil divididas por gêneros
A listagem a seguir é baseada no catálogo temático do compositor e em informações recolhidas no Departamento de Música da Biblioteca Nacional da França. Todas as obras citadas encontram-se na instituição francesa, salvo exceções observadas.
Música Instrumental
Orquestra SinfônicaSobre temas de Dom Pedro:06 de novembro de 1816: Fantasia para grande orquestra sobre uma pequena valsa de S.A.R. o Príncipe Real Dom Pedro, por ordem.16 de novembro de 1816: 6 Valsas compostas por S.A.R. o Príncipe Dom Pedro instrumentadas para orquestra e acrescentadas de trios.
Estas duas obras não constam nos arquivos da Biblioteca Nacional da França.
Sinfonia:
21 de dezembro de 1820: Sinfonia em Mi bemol para grande orquestra. Provavelmente trata-se da primeira obra composta no Brasil com a estrutura formal de uma sinfonia. De acordo com Luiz Heitor Corrêa de Azevedo ela teve sua primeira audição em Londres, pela Orquestra Filarmônica em 21 de março de 1831.Aberturas para grande orquestra:
19 de setembro de 1817: Abertura em dó maior.10 de março de 1819: Abertura em ré maior, dedicada a Cherubini.
08 de maio de 1819: Abertura em dó maior, dedicada ao Duque de Luxemburgo. Arquivada na Biblioteca Nacional da França mas sem registro no Catálogo Temático.
16 de fevereiro de 1821: Abertura em mi bemol maior.
19 de março de 1821: Abertura "O Herói", encomenda de Dom Pedro.
Obras para grande orquestra militar:
Entre abril e setembro de 1816: várias peças compostas durante a viagem para o Brasil, em número não definido, para a banda militar a bordo da fragata. Sem registros específicos na Biblioteca Nacional da França.27 de setembro de 1816: Marcha religiosa e cavalheiresca para servir de introdução à missa do dia da festa da Ordem de Cristo. Também instrumentada para piano a 2 e 4 mãos.
25 de abril de 1817: Hino marcial para orquestra militar, "Valorosos Lusitanos".
18 de março de 1817: "L'Allegresse publique", Marcha para grande orquestra para a aclamação de S.M. Dom João VI. Esta mesma marcha instrumentada para piano a 4 mãos.
22 de junho de 1817: Marcha Fúnebre para orquestra sobre a morte do Conde da Barca.
19 de janeiro de 1818: Marcha para grande orquestra militar para a festa de S.A.R. a Princesa Real, com versão para piano a 4 mãos.
Fevereiro de 1819: 13 peças para grande orquestra militar, das quais a primeira é de caráter religioso e a última é uma marcha fúnebre. Todas as outras são marchas características. Para S.M. o Rei da Prússia. 10 registros referentes à essas obras constam na Biblioteca Nacional da França.
Música de Câmara:
10 de junho de 1817: Andante para órgão ou cravo. Não consta no catálogo temático.03 de julho de 1817: Noturno para oboé, trompa e pianoforte, com versão para violino, violoncelo e pianoforte.
23 de novembro de 1817: 6 variações para pianoforte com acompanhamento de violoncelo sobre tema de "Wozeluch", para S.A.R. a Princesa Real, por ordem.
18 de junho de 1818: 12 variações para pianoforte.
24 de junho de 1818: 12 variações para pianoforte sobre o tema "sul margine".
Março de 1819: Valsa (para pianoforte). Não consta no catálogo temático.
12 de abril de 1819: "L'amoureux", fantasia para pianoforte e flauta. Dedicado a seus amigos Sr. e Sra. von Langsdorff.
03 de maio de 1819: O Amor Brasileiro, capricho para pianoforte sobre um lundu brasileiro. Dedicado a Dona Maria Joanna de Almeida.
09 de junho de 1819: Sonata a 4 mãos para S.A.R. a Infanta Dona Isabela Maria.
10 de julho de 1819: "Le rétour à la vie", grande sonata característica para pianoforte.
10 de setembro de 1819: Sonata para pianoforte com acompanhamento não obrigatório de violino, para S.A.R. a Princesa Maria Teresa.
13 de setembro de 1819: 6 variações para pianoforte sobre uma contradança inglesa, a pedido de S.A.R. a Princesa Real.
27 de setembro de 1819: Capricho para pianoforte, para S.A.R. a Infanta Dona Isabela Maria.
20 de novembro de 1819: Elegia para pianoforte sobre a morte de Sophie Gail.
23 de março de 1820: Duo para flauta e pianoforte.
12 de junho de 1820: Andante grazioso para pianoforte com 4 variações, para S.A.R. a Infanta Dona Isabela Maria.
01 de julho de 1820: "L'amitié et lamour", dois esboços para pianoforte.
07 de abril de 1821: "Les adieux de Neukomm à ses amis à Rio de Janeiro" para pianoforte.
Estas obras de música de câmara situam-se entre as primeiras do gênero compostas no Brasil.
Música vocal
13 de novembro de 1816: Noturno para 2 vozes e pianoforte: "Quellalma severa che amor non intende".26 de novembro de 1816: Canzonetta "Se son lontano" para voz e pianoforte.
07 de fevereiro de 1817: "Blume auf Elisens Grab" para voz e pianoforte.
29 de abril de 1817: Cânone a 4 vozes, para o aniversário de S.A.R. a Princesa Maria Teresa. Não consta nos arquivos da Biblioteca.
25 de março de 1821: Cânon enigmático para 8 vozes.
14 de abril de 1821: "Addio!" para 3 vozes e cembalo.
Nos dias antecedentes ao retorno à Europa e durante a viagem de regresso: diversas árias alemãs e bagatelas em italiano.
A harmonização de 20 modinhas de Joaquim Manuel da Câmara não consta no Catálogo Temático e o manuscrito autógrafo encontrado na biblioteca não é datado.
Música sacra
Entre maio e junho de 1816: Motetos e antífonas compostas durante a travessia quando da viagem para o Brasil.29 de dezembro de 1818: Te Deum.
01 de março de 1819: Tantun ergo para soprano solo e órgão.
02 de março de 1819: Ave verum corpus, para soprano solo e órgão.
17 de março de 1819: A Adoração do Santo Sepulcro, fantasia para instrumentos de sopro, para a Sexta-feira Santa, por ordem.
24 de janeiro de 1821: "Libera me Domine para grande orquestra, para fazer seqüência ao Requiem de Mozart. O Libera que no rito da Igreja Romana termina a missa para os mortos, ausente no Réquiem de Mozart". Este Libera me foi composto especialmente para a apresentação do Requiem de Mozart em dezembro de 1819 no Rio de Janeiro na Igreja do Parto, regido pelo Padre José Maurício.
Missas
03 de abril de 1817: Missa Solene para a Aclamação de S.M. Dom João VI.06 de novembro de 1817: Missa Solene São Leopoldo.
13 de maio de 1818: Missa brevis, duabus vocibus committante organo.
16 de agosto de 1818: Missa para 2 vozes masculinas e grande orquestra militar, precedida de uma introdução em forma de marcha.
22 de fevereiro de 1820: Missa Solene Santo Ernesto.
Entre julho e setembro de 1819: Instrumentada, por ordem, uma missa de David Perez de 1778. Essa instrumentação não se encontra na Biblioteca Nacional da França.
18 de novembro de 1820: Missa Solene São Francisco, para S.M. o Imperador Francisco I, por ordem de sua augusta filha a Princesa Real.
A Missa Solene São Francisco foi enviada para o chefe do Império Austríaco juntamente com a seguinte carta:
"Querido Papai:Mando-vos nesta ocasião uma missa cantada de Neukomm que, como súdito austríaco e discípulo de Haydn, merecerá sem dúvida as vossas boas graças, e, além disto, contém duas fugas que, todos sabemos, vós muito gostais. O meu marido é compositor, também, e faz-vos presente de uma Sinfonia e Te-Deum, compostos por ele; na verdade são um tanto teatrais, o que é por culpa do seu professor, mas o que vos posso assegurar é que ele próprio os compôs sem auxílio de ninguém.
Beijo-vos muitas vezes as mãos e sou com o mais profundo respeito e amor filial, caro Papai, vossa filha obediente
Leopoldina
São Cristóvão, 19 de fevereiro, 1821. "
Em sua autobiografia Neukomm comenta a audição desta missa na capela particular do Imperador em Viena, 1842, "executada com grande perfeição".
Comparando-se as obras de Neukomm compostas no Brasil com a totalidade de sua produção, de acordo com o catálogo temático, observa-se que praticamente a metade de sua produção para orquestra sinfônica e obras para piano solo foram escritas no Rio de Janeiro.
As obras brasileiras para piano são decorrentes da sua ligação serviçal para com a corte portuguesa, pois muitas foram escritas a pedido. Entretanto em relação à música sinfônica inexistem até o momento dados que possibilitem indicar tratarem-se de composições por demanda da atividade musical local ou de simplesmente emprego de tempo livre do compositor.
Na mesma edição do catálogo temático de Neukomm o editor publicou um trecho de uma carta do compositor dirigida a uma amiga em Paris, na qual ele relata algumas particularidades da vida musical do Rio de Janeiro. A carta é datada de 12 de agosto de 1817 e o trecho referente ao Brasil é o seguinte:
"... eu me sinto bem, pois todos aqui são muito amáveis para mim. Sou lisonjeado e bajulado, porém não querem mais me deixar sair daqui pelo menos me dão tão pouco dinheiro que eu não poderei jamais ter condições de pagar o meu retorno à Europa. Embora exista aqui uma multidão de homens que têm o atrevimento de se dizerem professores de música, não há entretanto um único que seja sequer medíocre. O preço das lições está quase à altura do talento desses senhores. 80 francos por 12 lições é o máximo, mas há alguns infelizes que lecionam 2 horas de aula todos os dias por 20 francos por mês!! Eu estou bastante satisfeito de desfrutar aqui de uma certa celebridade, (entre os cegos o caolho é Rei) e todos insistem para que eu aceite alunos mas a música está ainda a tal ponto na infância neste país que não se percebe que 3 lições dadas por um homem que domina sua arte valem mais que 12 outras à maneira deste país. Eu me recuso a fazer o triste papel de professor primário em um país onde o pagamento não possa de maneira alguma compensar o tempo dispendido, e por essa forte razão eu absterei-me de fazê-lo aqui. Entretanto eu tenho dois alunos (não conto com o Príncipe Real, que se ocupa da música como príncipe) uma é a esposa do Cônsul Geral da Rússia, uma antiga amiga à qual já dei conselhos durante toda a minha estada na Rússia; e a outra é uma senhorita de 16 anos, que tem aptidões extraordinárias e uma aplicação pouco comum. Ela faz progressos espantosos, mesmo que me tenha sido necessário empregar os primeiros meses para fazê-la esquecer o pouco que tinha aprendido em mais de 3 anos, para então colocá-la no caminho certo. Como sua educação estava terminada, eu acreditei poder exigir que ela trabalhasse pelo menos 8 horas todos os dias; ela achou que isso não era suficiente e a pobre criança trabalha mais de 10 horas, seguindo escrupulosamente a maneira que eu lhe indiquei... Quanto a mim, trabalho muito e às vezes não consigo me defender de uma fraqueza paternal; você verá, meu eterno Kyrie eleison ainda me fará ganhar o céu; lá então nós juntos faremos música com Durante, Pergolese, Jomelli, Palestrina, Haydn e Mozart. ..."
Alguns trechos desta carta foram citados por Luiz Heitor em seu artigo sobre Neukomm , mas é conveniente notar que as críticas referentes ao ensino musical e as reclamações sobre vencimentos foram ignorados. No citado artigo prevalece a visão, deveras ufanista, de que Neukomm encontrava-se satisfeito com tudo que havia encontrado no Brasil.
Referências bibliográficas
ANGERMÜLLER, Rudolph. Sigismund Neukomm Werkverzeichnis. Autobiographie. Beziehung zu seinen Zeitgenossen. München-Salzburg: Musikverlag Emil Katzbichler, 1977. 276 p.
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. "Esplendor da vida musical fluminense no tempo de Dom João VI. Sigismundo Neukomm no Rio de Janeiro". In III Colóquio Internacional De Estudos Luso-Brasileiros: Actas, p. 77-88. Lisboa, 1960.
MEYER, Adriano de Castro. "A presença de Sigismund Neukomm no Brasil". In II Simpósio Latino-Americano De Musicologia: Anais, p. 381-389. Curitiba, 1989. Disponível na Internet: http://www.geocities.com/RainForest/9468/neukomm.htm
NORTON, Luís. A corte de Portugal no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL MEC, 1979. 338 p. (Coleção Brasiliana, v. 124).
Adriano de Castro Meyer, natural de São Paulo, é bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é violista na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. [volta]