Revista eletrônica de musicologia



Volume XIV - Setembro de 2010


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A jam session enquanto objecto de estudo

 

Ricardo Nuno Futre Pinheiro, PhD

Universidade Lusíada de Lisboa


1. Resumo


Este trabalho discute os principais estudos realizados em torno da jam session, focando as várias formas esta prática performativa tem sido abordada na literatura sobre jazz. Partindo da pesquisa bibliográfica realizada no Institute of Jazz Studies na Rutgers University (E.U.A.), e de trabalho de terreno levado a cabo entre 2004 e 2005 em clubes de jazz em Manhattan, analiso até que ponto estes estudos reflectem perspectivas pobres e descontextualizadas sobre uma prática performativa crucial no desenvolvimento do processo criativo, aprendizagem e construção de redes profissionais de músicos de jazz.
Os escassos estudos existentes sobre a jam session, apesar de contribuírem para o levantamento de algumas questões importantes, são insuficientes para um profundo conhecimento desta prática nas suas vertentes musical, social e cultural, nomeadamente em termos do seu funcionamento e papel no âmbito do jazz. O discurso dos músicos é negligenciado na grande maioria dos trabalhos realizados.


2. Discussão


Dois dos mais marcantes estudos académicos sobre a jam session foram publicados pelos sociólogos William Bruce Cameron (1954) e Lawrence D. Nelson (1995). Estes dois artigos, separados por quase quarenta anos, apontam para a importância da jam session na observação dos processos sociais que aí ocorrem e que se enquadram no meio do jazz. Aprofundando questões relativas à estrutura social e modos de comunicação entre participantes no evento, os autores traçam um quadro de várias realidades possíveis no âmbito das quais se estrutura e desenrola o processo criativo na jam session.

Cameron retrata a jam session enquanto “refúgio” de indivíduos amorais, iletrados, impulsivos e instintivos (1954: 181). Postulando que a ocasião performativa constitui um “ritual de purificação” e de reafirmação dos valores estéticos dos músicos, levando-os à tentativa deliberada de se colocarem à margem do público e do resto da sociedade, o autor contribui com uma visão estereotipada do músico de jazz, socialmente auto-isolado, iletrado e sem capacidade para se exprimir verbalmente.

"If the reader perceives the significance of this, it will be obvious why most jazzmen, unschooled in logic and philosophical aesthetics, are at a loss to verbalize their aims and methods, and resort to jargon (itself unexplained) or else refuse to discuss jazz at all. As far as expressing and communicating their basic ideas to outsiders, jazzmen are not only non-literate but non verbal as well" (Cameron 1954, 180).


Esta visão ganhou popularidade em muitos outros estudos no campo do jazz, dando espaço a uma “musicologia autoritária” e capaz de julgar a “genialidade” de “primitivos” através da utilização de critérios analíticos provenientes da tradição da música ocidental, como é patente nos trabalhos de Gunther Schuller (1968, 1991) e André Hodeir (1956).

A comunicação verbal especializada desenvolvida e mantida nos círculos do jazz, e que é perspectivada negativamente por Cameron  tem, segundo Lawrence Nelson, funções específicas importantes: a de distinguir elementos do meio[1] e a de traduzir comportamentos de sanção. É notório que Cameron e Nelson não estudam espaços concretos nos quais se desenrola esta prática, assim como também eventos localizados no espaço e no tempo.

Duas perspectivas históricas sobre a jam session estão patentes na Dissertação de Mestrado em Historiografia de Jazz de Joseph Peterson Jam Session: An Exploration Into The Characteristics Of An Uptown Jam Session (2000) e num capítulo da monografia de Scott DeVeaux The Birth of Bebop (1997)[2]. Apesar de estudarem jam sessions em locais e períodos específicos, nomeadamente em Manhattan e no período do bebop nos anos quarenta e início dos anos cinquenta do século XX, estes dois trabalhos não esclarecem até que ponto a prática se foi transformando ao longo do tempo, não fornecendo uma articulação satisfatória entre o passado e as jam sessions contemporâneas. Apesar da tentativa de comparar jam sessions nos anos quarenta com as do final do século XX na zona Uptown de Manhattan, Peterson (2000) avalia o evento em dois diferentes períodos distintos sob um mesmo prisma, gerando uma visão histórica estática, e obscurecendo a importância do carácter multi-dimensional, temporalmente dinâmico e mutável da jam session. Peterson, afirmando que a jam session está intimamente relacionada com o prazer artístico, a aprendizagem, a competição e a sobrevivência, não explicita claramente quais as características que pertencem ao passado e ao presente, de que forma se manifestam em cada um dos casos, e de que modo essas manifestações terão evoluído ao longo dos anos. O autor deixa também por explicar por que razão estes quatro elementos são considerados como “verdadeiros”, e qual o critério utilizado para esta classificação, dado o carácter problemático do termo.

DeVeaux afirma que as novas atitudes e procedimentos estéticos que emergiram em meados dos anos 40 no contexto de jam sessions em Manhattan vieram redefinir o conceito do músico “entertainer” da era do swing. Este assume agora uma autonomia e dignidade que se reflectem na recusa em satisfazer o gosto do grande público, mantendo um equilíbrio entre a seriedade do contexto do palco de concerto e a atmosfera informal que liga o jazz às suas raízes populares. 

"The jam session, in short, underlies all claims for the legitimacy of bebop-not simply as a jazz idiom, but as the decisive step toward jazz as art" (DeVeaux 1997, 202-203).


"Jam sessions therefore encouraged techniques, procedures, attitudes - in short, the essential components of a musical language and aesthetic - quite distinct from what was possible or acceptable in more public venues" (DeVeaux 1997, 217).


DeVeaux defende que jam session constituía principalmente uma oportunidade de prática, aprendizagem, troca de ideias, representando um contexto social privilegiado para o estabelecimento de hierarquias de competência profissional. Esta perspectiva é importante por ligar jam sessions às raízes tradicionais do jazz, nomeadamente no que diz respeito a  uma história de aprendizagem, troca de ideias e estabelecimento de hierarquias de competência profissional. Ainda neste registo, o escritor Ralph Ellison em Shadow and Act (1953) relata o ambiente da jam session no Minton’s Playhouse. Segundo Ellison, a jam session constituía uma ocasião importante para a aprendizagem da tradição, estilo e técnicas improvisativas de grupo, assim como também para o encontro e desenvolvimento de uma voz musical própria (ibid: 208-209). Segundo Ellison, a realização de jam sessions, proporcionou a criação de um meio homogéneo com padrões colectivos resultantes da experiência de grupo.

Nos estudos anteriormente discutidos, as narrações, diálogos, análises e ideias dos principais intervenientes da jam session são deixadas parcial ou totalmente de lado, o que empobrece a clarificação de questões centrais para o seu estudo, com por exemplo, questões de significado musical. O ponto de vista de alguns músicos sobre aspectos da jam session podem-se encontrar em algumas entrevistas e autobiografias publicadas. James Patrick, em 1983, publicou um artigo que consiste maioritariamente na transcrição de uma entrevista realizada com o pianista Al Tinney. Este artigo retrata, na primeira pessoa, acontecimentos e procedimentos relacionados com a jam session no Monroe’s Uptown House entre 1940 e 1943. Al Tinney afirma que terá sido no contexto destas jam sessions, depois do horário de trabalho regular, que se terá desenvolvido um novo idioma musical a partir da prática e desenvolvimento de concepções específicas relacionadas com ideais artísticos, políticos e sociais. A interacção com outros músicos terá levado Tinney e outros músicos a desenvolver uma nova abordagem alicerçada na utilização de frases improvisadas enquanto melodias principais de composições.

'We just started playing and, like I say, there started to become a unity, the music started developing. We would play different melodies on the same chord changes as an existing melody. We would take a song and use the same chord changes, but put a different melody on top, which would make it our song now. We’d put some sort of, not an obligato, but you could use it as an obligato to the actual melody, you see. It was that much of a counterline. So that’s what started happening." (Al Tinney em Patrick 1983, 157).


    Tinney esclarece igualmente a utilização de processos tais como a escolha de tempos rápidos ou substituições harmónicas complexas, enquanto modo de desencorajar a participação de músicos menos competentes. Estes processos viriam posteriormente a ser incorporados enquanto características estruturais do bebop.

O saxofonista Bruce Lippincott (1958) descreve, em termos gerais, as principais ocorrências na prática da jam session. Em “Aspects of the Jam Session” Lippincott fornece informação geral acerca de modo como se processava a escolha dos músicos; do repertório, da tonalidade e do tempo, a utilização de introduções, e o estabelecimento da ordem dos solos.
Miles Davis, em Miles: The Autobiography (1990) sublinha a importância das jam sessions do Minton’s Playhouse para a aprendizagem dos músicos em ascensão no meio. O trompetista descreve ainda o ambiente competitivo e alguns “comportamentos de sanção” que fariam parte do ambiente da jam session no Minton’s Playhouse em meados dos anos 40.

"Minton´s was the ass-kicker back in those days for aspiring jazz musicians, not The Street [52nd Street] like they arte trying o make out today. It was Minton’s where a musician really cut his teeth and then went downtown to the Street. Fifty-second street was easy compared to what was happening up at Minton´s. You went to 52nd to make money and be seen by the white music critics and white people. But you came uptown to Minton’s if you wanted to make a reputation among the musicians. Minton´s kicked a lot of motherfuckers’ asses, did them in, and they just disappeared-not to be heard from again. But it also taught a whole lot of musicians, made them what they eventually became" (Davis 1990, 53-54).


"If you got up on the bandstand at Minton´s and couldn’t play, you were not only to get embarrassed by people ignoring you or booing you, you might get your ass kicked" (Davis 1990, 54).




3. Conclusão

Uma análise da escassa literatura sobre a jam session evidencia a predominância de perspectivas sociológicas e históricas. As abordagens sociológicas de Cameron e Nelson são guiadas pela falta de enfoque em práticas situadas espacial e temporalmente. A perspectiva de Cameron, racialmente problemática, encontra-se em sintonia com as abordagens de Howard Becker (1951), Alan Merriam e Raymond Mack (1960), e Aaron Esman (1951) sobre os músicos. Estes autores, para além de representarem os músicos de jazz enquanto indivíduos isolados das audiências e da sociedade, sustentam o estereótipo do músico de jazz enquanto indivíduo amoral, iletrado, impulsivo e instintivo. Ao suportar o que Ted Gioia (1989) denominou de “mito primitivista”, estes estudos influenciaram profundamente a literatura sobre jazz na segunda metade do século XX.

As perspectivas históricas de DeVeaux e Peterson sobre a jam session analisam práticas performativas localizadas espacial e temporalmente, levantando questões importantes. Contudo, estudam a jam session sob o ponto de vista da sua ligação com o período do bebop, não esclarecendo até que ponto a sua configuração se transformou ao longo do tempo.
Argumento que a literatura dedicada a jam sessions aqui analisada, apesar de levantar algumas questões essenciais, é incapaz de fornecer perspectivas analíticas e actuais profundas que esclareçam os seus contornos musicais, organizacionais, sociais e culturais, não articulando esta prática com o contexto do meio do jazz. A riqueza do discurso dos músicos, negligenciado em grande parte da literatura aqui examinada, fornece novas pistas para a análise da jam session, sugerindo a necessidade do estudo detalhado e actual desta prática performativa central para o percurso dos músicos de jazz e para o meio.


Notas 

[1] Em “Lester Young: Master of Jive” (1985) Douglas Daniels analisa a linguagem verbal de Lester Young, concluindo, ao contrário de Cameron,  que a criação de códigos verbais potencia a aproximação entre músicos e audiência através da utilização de sistemas de significados partilhados.

[2] Peterson apresenta uma visão historiográfica sobre a jam session, enquanto que De Veaux alicerça o seu trabalho sobre os aspectos sociais das jam sessions nos anos 40.

Referências

Becker, Howard S. 1951. “The Professional Dance Musician and his Audience”. The American Journal of Sociology 57: 136-144.
Cameron, William Bruce. 1954. “Sociological Notes on the Jam Session”. Social Forces 33: 177-182.
Daniels, Douglas Henry. 1985. “Lester Young: Master of Jive”. American Music 3: 313-28.
Davis, Miles.1990. With Quincy Troupe. Miles: The Autobiography. New York: Touchtone. Orig. Pub. New York: Simon e Schuster.
DeVeaux, Scott.1997. The Birth of Bebop: A Social and Musical History. University of California Press, Berkeley.
Ellison, Ralph. 1953. Shadow and Act. Vintage Books: New York.
Esman, Aaron H. 1951. “Jazz-A Study in Cultural Conflect”. American Imago VIII (June): 219-226.
Gioia, Ted. 1989. “Jazz and the Primitivist Myth”. Musical Quarterly 73:1: 130.
Lippincott, Bruce. 1958. “Aspects of the Jam Session”. In Jam Session: An Anthology of Jazz. Ed. Ralph Gleason. The Jazz Book Club. London.
Merriam, Allan P., and Raymond W. Mack. 1960. “The Jazz Community”. Social Forces 38 no. 3 (Março): 211-22.
Nelson, Lawrence D. 1995. “The Social Construction of the Jam Session”. Jazz Research Papers (IAJE) 1995: 95-100.
Patrick, James. 1983. “Al Tinney, Monroe´s Uptown House, and the Emergence of Modern Jazz in Harlem”. Annual Review of Jazz Studies 2: 151-179.
Peterson, Joseph M. 2000. “Jam Session: An Exploration Into The Characteristics Of An Uptown Jam Session”. Tese de Mestrado. Rutgers University.