Revista eletrônica de musicologia



Volume XIV - Setembro de 2010


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Propostas de Teoria Musical Comparada [*]

 

Luiz E. Castelões
(Instituto de Artes e Design – UFJF)


Resumo:


1. Introdução

    Uma boa introdução para este artigo (ou um acordo idealizado entre autor e leitor) seria o estabelecimento de que “Teoria Musical Comparada” implica uma abordagem metodológica na qual a ênfase não recai sobre a adoção a priori de um determinado corpo teórico (e a subsequente e obsessiva busca por sua comprovação e/ou legitimação, talvez até em detrimento de um melhor entendimento sobre seu objeto de estudo, isto é, a música), mas é substituída por uma abertura metodológica inicial, seguida do cruzamento permanente de informações advindas de corpos teóricos distintos (sem necessariamente o compromisso com uma síntese futura, conciliadora, que venha a resolver ou evitar conflitos, divergências e síncopes).
     Assim, o objetivo principal deste artigo (ou, talvez seja melhor dizer, sua consequência inevitável) é provocar (ou renovar) a tomada de consciência em relação à instabilidade de conceitos, nomenclaturas e grafias no campo da Teoria Musical (ou daS teoriaS musicaiS), de modo a promover flexibilidade e criatividade no manejo, ensino e pesquisa desta, ao mesmo tempo em que desmistificando-a, ao despí-la de um certo caráter dogmático, cientificista, rígido e extemporâneo que possa ter sobrevivido em certas tendências da literatura (tais críticas, aliás, já se faziam presentes desde pelo menos Hindemith 1998 [1944]).
    Neste contexto almejado para o ensino/aprendizado/pesquisa da Teoria Musical, esta aparece como um campo em permanente desenvolvimento, permeado de conflitos, incoerências, divergências, convergências e, portanto, de possibilidades, cabendo ao teórico revelar não apenas os pontos de estabilidade, mas também e principalmente, os pontos de crise. Dogmatismo, doutrinação e o paralelismo de sistemas que não dialogam (ou apenas se agridem) são substituídos pelas ideias de relatividade, complexidade e rede integrada de conhecimentos.
Por outro lado, em relação à justificativa de tal abordagem, cabe perguntar como se explica a revisão da literatura teórica “tradicional” (e mais básica) em um contexto de novas práticas e desafios trazidos por inovações técnicas e estéticas resultantes do casamento entre música e tecnologia que caracteriza esta área de estudos desde meados do século XX. Tal abordagem se justifica precisamente em face da necessidade de se transfomar a atitude de substituição drástica do “velho” pelo “novo”, tão típica da adesão automática à novidade e à tecnologia per se, em uma abordagem mais caracterizada pelo cruzamento, articulação e integração entre conhecimentos. Em suma, revisa-se o “passado” para que este possa melhor servir e integrar-se ao “presente” e, consequentemente, ao “futuro” — Rê-interpretados como um fluxo contínuo, ininterrupto.
    A metodologia deste artigo introdutório se resume à comparação entre signos (incluindo seus significantes e significados) utilizados pelos corpos teóricos abordados (no dizer da Teoria, signos referentes a classes de altura, acordes, modos, cifras, funções, tons, etc.). A forma final assumida pelo texto consiste do recorte, listagem e análise de treze rascunhos (ou propostas) sobre tópicos de Teoria Musical básica que, por meio dos signos selecionados, engendram comparações entre conceitos, nomenclaturas e grafias convergentes e divergentes da Teoria Musical a partir de uma seleção de publicações do século XX. Os critérios circunstanciais para a seleção das publicações aqui listadas foram: a disponibilidade das obras em versões para o português e o inglês, a influência das obras no ensino de Teoria e a influência/relevância histórica de seus autores. Em etapas futuras desta investigação, pretende-se que os critérios de seleção de publicações se tornem tão flexíveis quanto necessário, segundo o intento de cada estudo em particular. 
     O cruzamento/comparação de conceitos, nomenclaturas e grafias entre autores/publicações têm a dupla função de: 1) permitir ao pesquisador/docente/discente uma rápida tradução entre sistemas teóricos, tornando o campo da Teoria, à primeira vista acidentado e heterogêneo, mais rapidamente navegável e integrado; e 2) estimular a tomada de consciência em relação à diversidade de conceitos, grafias e usos na Teoria, de modo a estimular a flexibilidade e criatividade no fazer teórico. A pesquisa apresenta o potencial de, em momentos futuros, estender seu escopo à comparação entre análises diferentes das mesmas obras musicais e, finalmente, a teorias inteiras.
A ideia do desenvolvimento de uma teoria musical “comparada” (“comparada” neste caso implica que o que é comparado não são as músicas abordadas pela Teoria, mas as próprias Teorias e, neste sentido, podemos falar em “metateoria musical”), ainda aparece timidamente na literatura especializada. A referência a uma teoria “comparativa” é mais comumente encontrada: duas ocorrências em JSTOR para o termo “comparative theory” (Grant et al 1977 e Nketia 2002 [1]), por vezes com aplicações distintas das apresentadas aqui (no caso de Nketia, que compara teorias da música e da linguagem verbal) e outras vezes apenas implícita em abordagens de análise musical (Keiler 1978 e Phipps 1983 [2]), embora em outros contextos a proposta de comparação entre sistemas musicais distintos seja mais frequente, por ex. no tratado de Daniélou (1959) e no próprio nome antigo da etnomusicologia, “musicologia comparada”. Entretanto, é certo que a proposta deste artigo difere radicalmente do discurso etnomusicológico mais antigo, no sentido de que não enfatiza a oposição “nós vs. eles”, ou “música ocidental vs. não-ocidental”, em vez disso apontando a pluralidade e os pontos de conflito detectados num só conjunto de teorias, geralmente agrupadas sob a alcunha de “Teoria Musical (do Ocidente)”, de outro modo visto como homogêneo. Obviamente, é possível adotar tal metodologia para outros conjuntos de teorias e outros sistemas musicais.
Embora possa ser de interesse para o docente/pesquisador, este artigo se destina primeiramente ao aluno, sobretudo de graduação, que em face da torrente de termos desencontrados e sobre os quais não há consenso entre autores, acaba por tomar a Teoria Musical como uma disciplina obscura e enfadonha. Ímplicito na presente abordagem está o intuito de se tornar claro, direto e sintético o fazer teórico, ao mesmo tempo em que evitando a “obscuridade” que em certas didáticas funciona como mero instrumento de “opressão” (Freire 1987 [1970]). 



2.Rascunhos (propostas) de Teoria Musical Comparada.

2.1. sobre a grafia do modo (maior ou menor) dos acordes: Hindemith (1998 [1944]: 1) adota nomes de notas com letra inicial maiúscula ou minúscula para representar acordes maiores e menores, respectivamente (ex.: “Dó” para o acorde perfeito de dó maior e “lá” para o acorde perfeito de lá menor); entretanto, Hindemith (1998 [1944]: 3) adota numerais romanos maiúsculos para representar tanto acordes maiores quanto menores, o que resulta em ambiguidades severas ao longo de seu manual, por ex., tanto a subdominante maior quanto a menor são representadas por meio de “IV”, o acorde de sexta napolitana e o da supertônica são ambos representados por meio de “II”, tanto o relativo menor quanto o bVI são chamados de “VI” (ver especialmente a pág. 76 [3]) ; Schoenberg (1969 [1954]: 4) também adota algarismos romanos maiúsculos tanto para acordes maiores quanto menores, mas adota a diferenciação entre maiúsculas/Maior e minúsculas/menor, quando se trata de indicar “regiões”, ou desvios em relação à tonalidade de uma peça (ex.: “t” corresponde à tônica menor, “T” à tônica maior,  “m” à mediante, etc.); em raros exemplos, sempre no interior de um texto escrito (mas nunca ao longo das análises harmônicas sob a partitura), Schoenberg (1969 [1954]: 58) adota numerais romanos minúsculos para acordes menores; Berry (1987 [1976]: 31, 34) adota sistematicamente letras maiúsculas para acordes maiores e minúsculas para menores, tanto quando se trata de numerais romanos (ex.: i, I, iv, IV, etc.), quanto no que se refere a funções harmônicas (ex.: sm, SD, st, D, etc.); Koellreutter (1978: 9) adota o “M” maiúsculo para acordes maiores e o “m” minúsculo para acordes menores; aqui a incompatibilidade com a notação de Schoenberg (1969 [1954]: 24) se torna evidente, já que este emprega “m” para a mediante; no contexto da harmonia funcional (1978: 31-32), Koellreutter, por exemplo, adota “+” e “ o ” colocados à esquerda da letra indicativa de função harmônica para indicar acordes maiores e menores, respectivamente.

2.2. sobre a grafia de inversões de acordes em análises de harmonia tradicional (algarismos arábicos anexados a numerais romanos): Hindemith (1998 [1944]: 13) usa o algarismo arábico “6” subescrito e ao lado do numeral romano para representar acordes em primeira inversão e adota o “7” e o “2” subescritos e “6/4”, “6/5” e “4/3” centralizados para indicar as demais inversões (p. 19, 26); Berry (1987 [1976]) usa o mesmo sistema, porém com algarismos arábicos sempre subescritos; Schoenberg (1969 [1954]) também adota o mesmo sistema, exceto pelo “6” sobrescrito (p. 6); em casos raros e específicos, geralmente para frisar mudanças de inversão entre acordes com a mesma fundamental, Schoenberg usa o “3” subescrito e ao lado do numeral romano para indicar a primeira inversão (pág. 109, ex. 120g);

2.3. sobre a grafia de acordes diminutos: Schoenberg (1969 [1954]: 6) não imprime distinção entre grafias de acordes maiores, menores ou diminutos; como o acorde diminuto não recebe indicação especial (ex.: “VII6”), há momentos em que a ambiguidade na grafia se faz evidente, por ex., quando dois acordes contíguos e distintos, construídos sobre o sétimo grau da escala menor natural e sobre a sensível, respectivamente, recebem a mesma indicação, i.e., “VII” e “VII” (p. 27); Berry (1987 [1976]: 135) adota o símbolo de diminuto para diferenciar acordes diminutos dos demais (ex.: “ vii° ” e “ ii° ”); no contexto da harmonia funcional, Koellreutter (1978: 21-23) usa a letra “D” (indicativa da função harmônica de dominante) cortada por uma barra diagonal e com um “7” ao lado para designar tríades diminutas (construídas sobre a sensível da escala maior ou menor harmônica) e a mesma letra “D” cortada por uma barra diagonal e com um “9” ao lado para designar acordes de sétima da sensível, ou de sétima diminuta (a interpretação alegada é que trata-se, na verdade, de um acorde de nona da dominante sem a fundamental, daí a sétima do diminuto ser interpretada como nona da dominante); tal interpretação já constava em Schoenberg (1969 [1954]: 16, nota de pé de página, 25, ex. 45.b e 35, ex. 50.d); Schoenberg (1969 [1954]) chega a tachar a interpretação destes acordes como acordes de sétima construídos sobre a sensível como nonsense, embora justifique sua asserção com base no fato de que seu próprio sistema harmônico não reserva grafias específicas para dominantes secundárias (p. 35).

2.4. sobre a grafia de tríades aumentadas: Berry (1987 [1976]: 53) é o único dos autores incluídos neste artigo a adotar o símbolo de “+” para diferenciar tríades aumentadas das demais, por ex. “III+” no caso da tríade construída sobre o IIIo grau da escala menor harmônica.

2.5. sobre os nomes dos graus de uma escala (e dos acordes/regiões/funções harmônicas relativos a eles): Schoenberg (1969 [1954]: 20) chama o VIo grau de “submediante”, Berry (1987 [1976]: 48) de “R” (relativo) ou “sm” (submediante) e Koellreutter (1978: 10) de “mediante inferior”; Schoenberg (1969 [1954]: 56) classifica o termo subdominante como ilógico, o termo subdominante menor como errado e o termo dominante menor como nonsense, preferindo chamar este último de “cinco-menor”, v (“five-minor”); no contexto da harmonia funcional, Koellreutter (1978: 27) chama de “relativos” e “anti-relativos” os vizinhos de terça inferior e superior às funções harmônicas principais, anexando as letras minúsculas “r” (para “relativo”) e “a” (para “anti-relativo”) às letras maiúsculas indicativas das funções harmônicas principais “T”, “S” e “D” (donde resultam: “Tr”, ou “relativo da tônica”, Am em Dó Maior; “Ta”, ou “anti-relativo da tônica”, Em em Dó Maior; “Sr”, ou “relativo da subdominante”, Dm em Dó Maior; e assim por diante); note que o “Ta” de Koellreutter (anti-relativo da tônica) em um tom menor corresponde a um sentido da transformação “L” (Leittonwechsel) nos neo-Riemannianos; Schoenberg (1969 [1954]: 30) chama o bVII (advindo da escala menor natural) de “subT”, ou “subtônica”, enquanto Berry (1987 [1976]: 50) evita declaradamente este uso, preferindo “SD/SD”, isto é, “subdominante da subdominante”; outro ponto de divergência entre ambos diz respeito à grafia de funções compostas: o sistema adotado por Schoenberg (1969 [1954]: 69) se lê da direita para a esquerda (seguindo a lógica do emprego da apóstrofe na língua inglesa), por ex. “SDSM” significa “submediante [tornada] Maior da subdominante Maior”, enquanto que o sistema usado por Berry (1987 [1976]: 50) se baseia em frações, ou seja, é lido do numerador para o denominador (de cima para baixo, ou da esquerda para direita), por ex. “r/D” significa “relativo menor da dominante”.

2.6. sobre o nome e a grafia dados às dominantes dos demais graus da escala (dominantes secundárias): Hindemith (1998 [1944]: 84) as chama de “dominantes secundárias” ou “auxiliares”; por vezes, Schoenberg (1969 [1954]: 6) as indica sem distinção com relação a seus correspondentes diatônicos (ex.: usa “III2” para indicar uma dominante do relativo menor, ou “V/vi”), embora ele geralmente reserve para estas dominantes a classificação específica de “dominantes artificiais” (p. 17), no contexto mais amplo dos “acordes artificiais”, i.e. acordes alterados; contudo, ele não cria uma grafia especial para estas “dominantes artificiais”, grafando-as com numerais romanos cruzados horizontalmente (p. 16), ou seja, com a mesma grafia usada para qualquer “acorde artificial”, um grupo que ultrapassa em muito o âmbito das dominantes secundárias, incluindo todo e qualquer acorde “alterado” (o que no dizer Schoenberguiano inclui diminutos, aumentados, sexta napolitana, etc.); Berry (1987 [1976]: 31, 53) as chama de “dominantes secundárias”, nome que justifica através do conceito de “níveis tonais secundários” e as grafa sempre como “V” do grau a que estão relacionadas (ex.: “V/iv” para a dominante da subdominante menor); no contexto da harmonia funcional, Koellreutter (1978: 28-29) chama tais dominantes de “dominantes individuais” e as indica com a letra “D”, que designa a função harmônica de dominante, colocada entre parênteses, ou seja “(D)”, para os casos em que ela seja seguida por seu respectivo acorde de resolução; ou através do mesmo símbolo sublinhado por uma seta apontando para a esquerda, nos casos em que ela seja antecedida por seu respectivo acorde de resolução; Koellreutter (1978: 29) reserva um símbolo especial para a dominante da dominante (ou “segunda dominante”), duas letras “D” em corrente e dispostas em diagonal, e outro símbolo especial para a subdominante da subdominante (ou “segunda subdominante”), duas letras “S” que se tangenciam e dispostas em diagonal.   

2.7. sobre o nome dado às cadências: Hindemith (1998 [1944]: 57) chama a cadência interrompida de “cadência quebrada”; Schoenberg (1969 [1954]) a chama de “progressão deceptiva” ou “falsa” (p. 8, 192); Koellreutter (1978: 29) a chama de “cadência interrompida ou de engano”; Hindemith (1998 [1944]: 102) chama a cadência frígia também pelo nome de “semicadência”; Schoenberg (1969 [1954]: 14) reduz a importância de cadências frígias (II-III) e plagais (IV-I ou II-I) a meros meios de expressão estilística, sem importância estrutural.

2.8. sobre a origem dos acordes bIII, v, bVII, iv, bII, bVI e bVII (em tons Maiores) e ii, IV, v e VII (em tons menores): Hindemith (1998 [1944]: 76) atribui a origem de ii e IV (em tons menores) à escala menor melódica ascendente e a origem de v e VII à escala menor melódica descendente (ou menor natural); Schoenberg (1969 [1954]: 10) apresenta interpretação semelhante à de Hindemith, embora divirjam no que diz respeito à utilização de acordes de sétima assim derivados; Koellreutter (1978: 32) atribui a origem de bIII, v e bVII (em tons Maiores) ao modo menor eólio, a origem de ii e IV (em tons menores) ao modo menor dório, e interpreta bII e bVI (em tons Maiores) como anti-relativo e relativo da sub-dominante menor, respectivamente. 

2.9. sobre a grafia (e interpretação) do acorde de sexta napolitana: Webern (1984 [1932-33]: 117) o interpreta como “sexto grau da subdominante menor” ou “segundo grau rebaixado de dó maior”; Hindemith (1998 [1944]) o interpreta como um acorde alterado sobre o II° grau e o indica através de “II nap.” (p. 77), “nap. II6” (p. 84), “Nap. 6” (p. 109), ou “II Nap.” (p. 113); Schoenberg (1969 [1954]) o interpreta como um empréstimo proveniente do acorde inalterado de VI do tom da subdominante menor, ou sd, por ex. em Dó Maior, o VI da sd (fá menor) é o acorde de Db Maior (p. 35); Schoenberg o integra aos “acordes artificiais” e usa por vezes a indicação “(neap.)” sob (p. 26) ou ao lado (p. 101) do numeral romano “II” cruzado horizontalmente para indicá-lo; quando em estado fundamental, Schoenberg (1969 [1954]: 36) o chama de “tríade Napolitana”; no contexto da harmonia funcional, Koellreutter (1978: 33) emprega “ oSa ” para indicar tal acorde, o que implica a interpretação “anti-relativo da subdominante menor”.

2.10. sobre a grafia (e interpretação) de acordes de sexta aumentada: Webern (1984 [1932-33]: 118) chama o acorde de Sexta Alemã de “acorde de quinta e sexta aumentada”[4] ; Hindemith (1998 [1944]: 91-92) os interpreta como formas alteradas de acordes de sétima da dominante, chamando-os de “Sexta Alemã” (ou 6/5 aumentado), “Sexta Francesa” (ou 6/4/3 aumentado) e “Sexta Italiana”; Schoenberg (1969 [1954]: 35) os interpreta como “transformações”, i.e. acordes alterados, construídas sobre o IIo grau (p. 35, ex. 50e e 50f) e os indica através do numeral romano “II” cruzado horizontalmente (p. 36, ex. 51c; p. 178, ex. 165); Berry (1987 [1976]: 75) indica tais acordes através de abreviações de seus nomes geográficos (ex.: “G6” para o acorde de sexta aumentada “alemã”); no contexto da harmonia funcional, Koellreutter (1978: 40), na única vez em que os cita, emprega o símbolo “ ” para indicar tal acorde (em sua versão germânica), o que implica a seguinte interpretação: “subdominante com a sexta aumentada”. 

2.11. sobre a grafia de acordes alterados: Hindemith (1998 [1944]: 77) anexa a abreviação “Alt.” a qualquer acorde obtido através da alteração cromática de notas da escala (ex.: “VII Alt.” para um bVII); Schoenberg (1969 [1954]: 9) utiliza numerais romanos cruzados (ex.: “ ” para um acorde construído sobre o III° grau com terça tornada Maior) para indicar o que ele chama de “acordes artificiais”, ou seja, acordes alterados pelo uso de “notas substitutas”, i.e., notas emprestadas de outros modos (p. 15) ou estranhas à escala (p. 18); Schoenberg (1969 [1954]: 35) também chama acordes alterados de “transformações”; Koellreutter (1978: 32) emprega “<” para alterações cromáticas ascendentes e “>” para alterações cromáticas descendentes, por ex., “D5>” para uma dominante com alteração descendente da quinta, “D5<” para uma dominante com alteração ascendente da quinta, e assim por diante. 

2.12. sobre a indicação de tons ao longo de uma análise: Hindemith (1998 [1944]: 17) escreve o tom com a letra inicial maiúscula para tons maiores e minúscula para menores (ex.: “Dó” para o tom de dó maior e “lá” para o tom de lá menor) sob o sistema ao qual ele pertence; a prática de se escrever apenas a letra correspondente ao tom sob o sistema ao qual ele pertence, seguida de dois pontos, maiúscula para tons maiores e minúscula para menores (ex.: “C:” para o tom de dó maior e “a:” para o tom de lá menor) é usada por Schoenberg (1969 [1954]: 44), geralmente em trechos curtos, e por Berry, em todas as ocasiões (1987 [1976]: 31); Koellreutter (1978: 57) escreve o nome do tom por extenso, por ex. “SOL b – MAIOR” por sobre o sistema ao qual ele pertence.
Dentro da concepção de “monotonalidade”, Schoenberg (1969 [1954]: 101) escreve os tons de destino de todas as modulações (“regiões”) sempre em relação ao tom principal do trecho; assim, um trecho predominantemente em Dó maior, onde se trafega de Dó Maior para Mi menor, receberá as indicações “T” (tônica) e “m” (mediante menor) (ver pág. 20 da mesma publicação para abreviações nas diversas regiões).
Nas análises de música altamente cromática do final do século XIX, onde as tônicas Maior e menor passam a ser intercambiáveis, Schoenberg (1969 [1954]: 105) usa o símbolo “t/T” para indicar a região da tônica (Maior ou menor); com um intuito análogo, Berry (1987 [1976]: 31, 33 nota) usa letras maiúsculas e minúsculas separadas por vírgula (sem espaço), indicando que tanto o modo maior quanto o menor são relevantes para a análise a seguir (ex.: “D,d:” para ré Maior/menor).

2.13. sobre a conceituação e nomenclatura relativas à modulação: Hindemith (1998 [1944]: 103-108) usa os termos “tonalidade original (tonalidade de origem)”, “eixo da modulação”, “zona comum a ambas as tonalidades” ou “zona intermediária” (sendo que esta zona “pode consistir num só acorde comum a ambas, ou num grupo de acordes com significado tonal comum”) e “tonalidade de destino”; Schoenberg (1969 [1954]: 3, 44) distingue entre “modulação” e “harmonia errante, ou itinerante” (“roving” ou “vagrant harmony”), devido ao fato de que nesta é impossível detectar uma sucessão de três acordes que expresse uma região ou tonalidade inequivocamente; o tradutor Carlos Kater usa o termo “acordes vagantes” no mesmo contexto em Webern (1984 [1932-33]: 70); Schoenberg (1969 [1954]: 19) propõe que não se deve falar em “modulação” a não ser que uma tonalidade tenha sido abandonada definitivamente e por tempo considerável, além de que outra tonalidade tenha sido estabelecida tanto harmônica quanto tematicamente; desta asserção, resulta o conceito de “monotonalidade”, segundo o qual toda digressão em relação à tônica é considerada como estando ainda no interior da tonalidade, seja direta ou indiretamente, relacionada próxima ou remotamente; em outras palavras, existe apenas uma tonalidade em cada peça e todo segmento previamente considerado como outra tonalidade é apenas uma região, um contraste harmônico no interior daquela única tonalidade; ele conclui que o conceito de “monotonalidade” inclui o de “modulação” (no sentido de “movimento em direção a outro ‘modo’ e mesmo estabelecimento deste outro modo”), porém, monotonalidade implica que tais desvios sejam considerados como regiões da tonalidade, subordinadas ao “poder central” de uma tônica – e deste modo, a compreensão da unidade harmônica de uma peça é alcançada; a partir daí, ele estabelece que para que haja modulação entre regiões, deve haver pelo menos uma “harmonia” (i.e., acorde) comum a ambas as regiões (p. 22); Schoenberg (1969 [1954]: 67) recomenda “acordes naturais comuns” como bastante efetivos nas “transições” entre regiões, embora em alguns exemplos de análise harmônica também considere acordes de sexta napolitana, tríades aumentadas e sétima diminuta como acordes comuns; Schoenberg (1969 [1954]: 103) utiliza o conceito de “remodulação”, ou seja, modulação de volta ao tom de origem logo após uma modulação; Berry (1987 [1976]) usa os conceitos de tônicas “primária” e “secundárias” (p. 48) e o de “componentes” de um “sistema tonal genérico” (p. 47, 50) quase no mesmo sentido em que Schoenberg usa o de “regiões” em um contexto “monotonal”, embora ele observe que a existência de apenas um sistema primário, ou tônica primária, em uma estrutura tonal específica (i.e., a “monotonalidade” de Schoenberg) é apenas uma das possibilidades à mão [5] (p. 52) ; Berry (1987 [1976]: 29, 33) usa o conceito de “tonicização” (“tonicization”) para se referir ao potencial de surgimento de um novo tom; Koellreutter (1978: 37) usa os termos “tom original (tom de partida)”, “acorde modulante” (que corresponde ao “acorde-pivô” em outros autores, exceto pelo fato de que também inclui a dominante do tom para o qual se modula como possível “acorde modulante”) e “tom de chegada”, além de classificar modulações não confirmadas por uma cadência perfeita como “modulações passageiras”.

3. Conclusão

Neste breve artigo, listei treze exemplos embrionários da abordagem metodológica aqui chamada de Teoria Musical Comparada, com o triplo intuito de provocar (ou renovar) a tomada de consciência em relação à instabilidade de conceitos, nomenclaturas e grafias da Teoria Musical mais básica, de estimular a formação de uma rede que cruze e integre corpos teóricos por vezes conflitantes e de tornar a pesquisa (e o fazer teórico de maneira geral) uma atividade navegável, criativa e maleável ao iniciante.
Os exemplos descritos no corpo do trabalho, embora retirados de uma fatia estreita da literatura, já caracterizam o domínio da Teoria Musical como um conjunto/fluxo instável, sugerindo que o ensino/aprendizagem/pesquisa do mesmo seja praticado/conduzido também de maneira flexível, criativa e transformadora.
Os propósitos do grupo de pesquisa no qual este artigo foi gerado nortearão as fases posteriores da investigação no sentido de ampliar as bases metodológicas aqui descritas e exemplificadas para desdobramentos em temas afins, tais como Análise Musical Multimétodo, formas de legitimação em música e Composição Híbrida – além  de propostas composicionais pontuais em música/tecnologia e colaborações com outros grupos de pesquisa em investigações sobre música e estética, música eletroacústica aplicada à musicoterapia, música e neurociência, música e pesquisa evolutiva.


Notas


[*] Este artigo é um sub-produto das atividades do “COMUS – Grupo de Pesquisa em Composição Musical” do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
[1] JSTOR # 843493 e 1519954. Grant et al (1977), por ex., comparam as teorias de Rameau, Kirnberger e Marpurg.
[2] JSTOR # 832663 e 741980.
[3] Hindemith (1998 [1944]) reconhece a deficiência do sistema adotado quando declara que “[o]s acordes alterados não podem ser indicados com algarismos romanos sem risco de confundirem-se com os acordes não alterados, originalmente indicados com [e]stes números” (p. 77)
[4] O tradutor para o português, Carlos Kater, no entanto, adiciona aqui a seguinte nota: “Provavelmente há um engano nesse exemplo: várias possibilidades desse acorde podem ocorrer aqui por enarmonia; porém, uma vez que se indica dó como referência, o fá deve ser bequadro, resultando assim no acorde de subdominante menor com as características mencionadas” (Webern 1984: 120). 
[5] “If in a specific tonal structure there is one, and only one, primary system (Schoenberg’s “monotonality”), it follows that there is among secondary system components a hierarchic arrangement particular to the musical instance.” (p. 52-53) [grifos meus]

 

REFERÊNCIAS

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Hindemith, Paul. 1998. Curso condensado de harmonia tradicional: com predomínio de exercícios e um mínimo de regras. 13a ed. São Paulo: Irmãos Vitale.

Keiler, Allan. 1978. The Empiricist Illusion: Narmour’s beyond Schenkerism. Perspectives of New Music, Vol. 17, No. 1 (Autumn - Winter, 1978), pp. 161-195. New York: Perspectives of New Music.

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