Revista eletrônica de musicologia



Volume XIV - Setembro de 2010


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Análise da Sonata em Sol menor (Hob XVI – 44) de Franz Joseph Haydn

   

Daniel Ribeiro Medeiros*


Resumo: Este trabalho apresenta uma análise da Sonata em Sol menor (Hob XVI/44) do compositor austríaco Joseph Haydn através de conceitos estabelecidos na Sonata Theory, desenvolvida por James Hepokosky e Warren Darcy. Através do processo dialógico, um dos princípios fundamentais desta teoria voltada à forma sonata, pretende-se investigar como Haydn dialoga – através da Sonata em Sol menor (Hob XVI/44) - com o universo normativo da forma sonata disponível em sua época.
Palavras-chave: Teoria e análise musical; Franz Joseph Haydn; Sonata Theory; Forma sonata.


Analysis of Franz Joseph Haydn’s Sonata in G minor (Hob XVI – 44)

Abstract: This article presents an analysis of Joseph Haydn’s Sonata in G minor (Hob XVI/44) in the light of dialogical process involved in the considerations of sonata form proposed by James Hepokosky and Warren Darcy in Elements of Sonata Theory: Norms, Types and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata.
Palavras-chave: Theory and Musical analysis; Franz Joseph Haydn; Sonata Theory; Sonata form.



Considerações sobre a Sonata Theory


A Sonata Theory é uma abordagem analítica basicamente voltada ao estudo da forma sonata nos séculos XVIII e XIX. Desenvolvida por James Hepokosky e Warren Darcy, suas bases estão apresentadas no livro Elements of Sonata Theory: Norms, Types and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata. Conforme os autores, uma de suas premissas está na

[...] convicção de que devemos procurar compreender a cortina de fundo [backdrop] dos procedimentos normativos dentro das diferentes zonas ou espaços de ação [action-space] das sonatas do final do século XVIII (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.9, tradução nossa).

Para tal, é proposta uma abordagem que considera o processo dialógico entre uma determinada obra - ou grupo de obras - e seu universo formal/normativo. Tal processo “parte da premissa de que uma composição individual é uma expressão musical que é definida (pelo compositor) através de um diálogo com normas implícitas” (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.10, tradução nossa). Mais tarde, os autores reforçam: “A essência da Sonata Theory reside em descobrir e interpretar o diálogo de uma peça individual com o conjunto de normas de fundo” (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.11, tradução nossa). Como se pode notar, o foco destina-se preponderantemente ao contexto que permeia aspectos puramente musicais, ou seja, são considerados através de uma perspectiva histórico-estilística.
Portanto, a Sonata em Sol menor (Hob XVI/44) de Haydn será investigada através desta perspectiva analítica proposta por Darcy e Hepokosky, ou seja, dentro do processo dialógico, serão discutidos aspectos referentes ao relacionamento desta sonata com seu “meio” formal/normativo.


Considerações iniciais

Darcy e Hepokosky, ao longo do livro, apresentam basicamente 5 tipos normativos de sonatas. Dentre estes, a peça de Haydn se relaciona diretamente com a sonata de tipo 3. Conforme os autores, este modelo articula uma estrutura binária reexpositiva (rounded binary structure) em grande escala, apresentando três espaços de ação que são organizados da seguinte maneira (FIG.1):


FIG.1: Exemplo de como Darcy e Hepokosky consideram a articulação da estrutura em larga escala da forma sonata.


Ambas as partes podem apresentar ritornellos ou não; o compositor, por exemplo, pode eliminar a repetição da parte 2 ou, sob algumas circunstâncias, eliminar as duas repetições (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.20-22). Além disso:

Cada um dos três espaços é usualmente sujeitado à diferenciação temática e textural. Cada uma é marcada por diversos temas e texturas sucessivas, as quais são normalmente reconhecíveis como genericamente adequadas para suas localizações específicas. Estes três espaços podem ser vistos como expansões das três fases da continuous rounded binary form (a estrutura de rounded binary em que a primeira parte termina em uma tonalidade secundária) (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.16, tradução nossa).

No que diz respeito à diferença de concepções da forma sonata entre alguns autores e/ou teóricos, é interessante destacar aqui - em contraposição à concepção de Darcy e Hepokosky - a maneira como Arnold Schoenberg considerava a divisão das partes da forma sonata como um todo. Segundo Schoenberg, em Fundamentos da Composição Musical (1991): “A forma allegro-de-sonata, [...], é essencialmente uma estrutura ternária. Suas divisões principais são: exposição, elaboração e recapitulação” (SCHOENBERG, 1991, p.243). Embora haja diferenças nas concepções dos autores referentes à divisão das partes, assim como de ordem terminológica (desenvolvimento para Darcy e Hepokosky; elaboração [Durchfürung] para Schoenberg), as considerações referentes aos materiais que comumente são trabalhados na parte B são muito parecidas. Para Schoenberg (1991, p.243), a elaboração (Durchfürung) “é quase exclusivamente devotada a elaborar a grande variedade do material temático ‘exposto’ na primeira divisão [Parte 1 - exposição]”. Darcy e Hepokosky possuem uma consideração semelhante:

Em termos de suas estratégias retóricas, os desenvolvimentos podem ou não ser totalmente ou parcialmente rotacionais [rotational] (que é, guiados em grande parte pelo padrão de ordenação temática estabelecido na exposição). Os desenvolvimentos frequentemente se referem a uma ou mais idéias da exposição, mais comumente selecionadas, como acontece, da primeira metade da Rotation 1’s (P e TR) [os autores se referem aos materiais contidos no espaço referente ao tema e à transição]. [Geralmente], estes módulos tomados e trabalhados através do desenvolvimento são apresentados na ordem em que apareceram originalmente na exposição [...]. [...] o significado de tudo que acontece no desenvolvimento deve ser considerado em comparação com o que aconteceu na exposição (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.19, Tradução nossa).

A diferença entre a concepção binária (Darcy e Hepokosky) e ternária (Schoenberg), talvez, esteja no fato de que os primeiros consideram em grande medida a participação fundamental do processo harmônico dentro do desenvolvimento, considerando como aspecto primordial a interrupção harmônica no V que ocorre no final a desta parte. Esta visão possivelmente venha do fato de que os autores consideram as concepções de teóricos dos séculos XVIII e XIX [1]. Embora ambas as concepções observem as ocorrências da Parte B em um relacionamento íntimo com a exposição, Schoenberg somente destaca que a elaboração (Durchfürung) “tende a ser modulatória”, terminando “com o estabelecimento de um acorde ‘anacrúsico’ apropriado, ou por uma retransição”, os quais preparam a recapitulação (SCHOENBERG, 1991, p.249).

Allen Forte e Steven E. Gilbert, em Introducción al Análisis Schenkeriano (1992), apresentam uma interessante discussão em torno da forma sonata no que diz respeito às considerações ternárias e binárias:

Em primeiro lugar, é forma binária ou ternária? As grandes seções aparecem designadas como ABA [...], seções que habitualmente se chamam exposição, desenvolvimento e reexposição (recapitulação). Assim, a forma parece ternária. Entretanto, quando se indicam as repetições, parece uma forma binária reexpositiva: ||:A:||:BA:||. Os dois tipos estão representados no repertório tonal. A forma binária reexpositiva com, a repetição do desenvolvimento e reexposição, é característica de Haydn, Mozart e do primeiro Beethoven (FORTE; GILBERT, 1992, p.331-332).

Após as considerações destacadas acima, finalizam:

Entretanto, há muitos que acham convincente e conveniente considerar a forma sonata como uma forma a três partes, com a exposição, o desenvolvimento e a reexposição compreendendo as distintas partes. Este é o ponto de vista adotado neste livro (FORTE; GILBERT, 1992, p.332).

Embora não tenham sido aqui expostas considerações de vários outros autores sobre este ponto, nota-se que, no mínimo, o assunto apresenta diferenças que, em um nível de abordagem mais aprofundado, podem destacar contraposições bastante consistentes entre as concepções binária e ternária.

Vale mencionar uma das características que mais chama a atenção no que diz respeito aos conceitos que permeiam a Sonata Theory: a de que os autores, conforme colocado anteriormente, levam em consideração algumas concepções de forma sonata de alguns teóricos contemporâneos a Haydn, Mozart e Beethoven. As descrições destes teóricos eram bastante variáveis; Darcy e Hepokosky fazem questão de reiterar esse aspecto [2]. Entretanto, a consideração destas concepções dentro da Sonata Theory é de fundamental importância para o processo dialógico que os autores propõem. Dessa forma, pode-se ter uma leitura mais contextualizada da forma sonata dentro deste período, assim como permite ter a idéia dos processos normativos que a norteavam.


Análise

Um dos principais interesses da abordagem analítica da Sonata Theory é a consideração e discussão em torno do conceito de deformação (deformation), bem como sua manifestação em uma determinada obra. Geralmente, tais deformações se apresentam como expansões, alterações ou substituições dos espaços de ação (action-spaces) dos modelos normativos da forma sonata. Através desta leitura, nota-se que a sonata de Haydn não apresenta uma deformação (deformations) em larga escala. Entretanto, veremos, através de um processo dialógico interno na Sonata em Sol menor de Haydn, como se dá a articulação da primary-theme zone (P) em direção à secondary-theme zone (S) na exposição e na recapitulação.

Conforme os modelos normativos apresentados por Darcy e Hepokosky, a sonata de Haydn enquadra-se no tipo 3 (FIG. 2):



FIG. 2: Modelo genérico apresentado por DARCY e HEPOKOSKY (2006, p.17).




Entretanto, dentro do processo comparativo entre o modelo apresentado acima e o gráfico da Sonata em Sol menor de Haydn, nota-se que na recapitulação o espaço de ação (action-space) referente à transição (TR) é eliminado (FIG. 3):

FIG. 3: O círculo destaca a eliminação da transição (TR).


Através da comparação entre os gráficos, nota-se que o diálogo da sonata de Haydn com o modelo normativo (tipo 3) apresenta uma pequena deformação (deformation) que não se dá no nível de expansão ou substituição das opções disponíveis, mas sim, no nível de eliminação de um espaço de ação (action-space) que possui importante papel na exposição [3].

Conforme William E. Caplin, em Classical Form: A theory of formal functions for the instrumental music of Haydn, Mozart and Beethoven (1998), a transição possui a seguinte função:

No centro do drama tonal na exposição de uma forma de movimento completo (sonata, concerto, rondó, etc.) reside o conflito entre a tonalidade principal e sua tonalidade subordinada rival. As funções formais do tema principal e do tema subordinado são responsáveis por estabelecer e confirmar estas tonalidades. Localizada entre estas funções está a transição, que serve para desestabilizar a tonalidade principal, de modo que a tonalidade subordinada possa emergir como uma tonalidade concorrente na exposição. Além disso, a transição desamarra a forma estabelecida pelo coeso tema principal, conferindo uma maior continuidade rítmica e impulso para o movimento, e, especialmente em direção ao seu fim, liquida as características do material melódico-motívico a fim de “limpar a cena” para a entrada do tema subordinado (CAPLIN, 1998, p.125, tradução nossa).

Darcy e Hepokosky, por sua vez, comentam que:

O que hoje chamamos de transição foi, provavelmente, nada mais do que a convenção de seguir uma idéia inicial com um apropriado, um intensificado movimento adiante – um conjunto de etapas de continuações modulares que aceitaram a P-idea precedente como base para uma sonata e que trouxe a música para a próxima zona genérica do processo sonata (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.93-94, tradução nossa).

Arnold Schoenberg observa que:

O propósito de uma transição não é, apenas, o de introduzir um contraste; ela já é em si mesma, um contraste. Ela pode iniciar, ao final de um tema principal, com novas formulações; ou pode acontecer também que o tema principal seja temática ou harmonicamente modificado, de modo a se transformar em um segmento conectivo. [...] A estrutura de uma transição inclui, basicamente, quatro elementos: estabelecimento da idéia transitória (através de uma repetição freqüentemente seqüencial), modulação (em vários graus), liquidação das características motívicas e estabelecimentos do acorde ‘anacrúzico’ conveniente (SCHOENBERG, 1991, p.215-216).

Como se pode ver, o papel genérico da transição é o de estabelecer uma eliminação gradual de características motívicas referentes à primary-theme zone (P) e de direcionar harmonicamente à região tonal da secondary-theme zone (S). Vejamos na figura abaixo (FIG. 4) a primary-theme zone (P) e a transição (TR) na exposição da sonata de Haydn:


FIG. 4: Primary-theme zone (P) e transição (TR) na Sonata de Haydn.


O espaço de ação da primary-theme zone (P) (c.1-4) está estruturado através de um modelo de período bastante usual, ou seja, conforme Schoenberg (1991, p.51), com o antecedente terminando no V (final do c.2) e o conseqüente terminando no i (terceiro tempo do c.4).

Sobre a constituição do período, Caplin (1998) comenta:

Se uma unidade inicial que termina com uma cadência fraca [meia cadência ao V] está repetida e leva a um fechamento cadencial [aqui, o autor parece sugerir um fechamento cadencial completo, tais como: V-I; V/III-III; etc], podemos dizer então, [...], que a primeira unidade é um antecedente para o seguinte conseqüente. Juntas, as duas funções de antecedente e conseqüente se combinam para criar a theme-type normalmente chamada de período (CAPLIN, 1998, p.12, tradução nossa).

Assim como na primary-theme zone (P), a transição (TR) da sonata de Haydn também apresenta características já destacadas nas palavras de Caplin (1998), Darcy e Hepokosky (2006) e Schoenberg (1991): o estabelecimento gradual da nova região tonal (se dirige de forma clara a III:HC); apresentação variada do tema (com novo direcionamento) com posterior dissolução de características do tema principal através do processo de liquidação [4]; etc. Entretanto, todas estas colocações servem meramente para reforçar o entendimento de como se constituem e quais as funções formais destes módulos.

A título de recapitulação de conceitos, vejamos o significado do termo deformação (deformation), proposto por Darcy e Hepokosky. Segundo os autores, refere-se ao “[...] alargamento de um procedimento normativo aos seus limites máximos esperados ou mesmo além destes [...]” (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.614, tradução nossa), ou, em outras palavras: “significa apenas uma realização propositadamente deslocada [deformation] ou não-normativa de um espaço de ação musical [...]” (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.11, tradução nossa). Entretanto, conforme dito anteriormente, a deformação (deformation) nesta sonata de Haydn não ocorre através de expansões, alargamentos, etc, mas sim, através da eliminação da transição (TR) na recapitulação. Vejamos a figura abaixo (FIG. 5):



FIG. 5: recapitulação: sem transição (TR).


A respeito dessa eliminação, Caplin (1998) comenta:

A transição é a seção da recapitulação mais provável de ser alterada. Se a transição original é modulatória, na recapitulação deve ser tonalmente ajustada para permanecer na tonalidade principal. O ajustamento pode estar acompanhado por qualquer número de expedientes harmônicos e de estruturação de frases, e podem ocorrer em qualquer lugar da transição. Frequentemente, a região de subdominante é tonicizada, promovendo assim [...] uma sucessão lógica para a dominante no final da transição (CAPLIN, 1998, p.163, tradução nossa).

Como se vê nas palavras de Caplin (1998), a transição é geralmente modificada por razões de lógica e compreensibilidade. Porém, mais adiante, o autor destaca que além destas, “algumas outras alterações são regularmente encontradas” (CAPLIN, 1998, p.163, tradução nossa), reforçando a manifestação do processo de exclusão de um módulo de ação. Sob o subtítulo Delections and compressions (Supressões e compressões), comenta:

A transição na recapitulação frequentemente apaga ou comprime uma porção substancial do material usado na exposição (Nos casos mais extremos, a transição inteira pode estar eliminada) (CAPLIN, 1998, p.164-165, tradução nossa).

O fato de Caplin considerar a eliminação da transição (TR) como um “caso extremo”, reforça o caráter de deformação (deformation) – conceito proposto por Darcy e Hepokosky - na recapitulação da sonata de Haydn. Porém, o que mais chama a atenção não é o simples fato da eliminação deste espaço de ação (action-space), mas sim, a maneira como Haydn conecta a primary-theme zone (P) e a Secondary-theme zone (S). Este aspecto leva à necessidade de discutir sobre a re-elaboração que o período sofre na recapitulação.

Conforme dito anteriormente, a primary-theme zone (P) apresenta um período organizado de maneira bastante usual. Conforme Schoenberg:

A estruturação do início [antecedente] determina a construção da continuação. O período difere da sentença pelo fato de adiar a repetição. A primeira frase não é repetida imediatamente, mas unida a formas-motivo mais remotas (contrastantes), perfazendo, assim, a primeira metade do período: o antecedente. Após este elemento de contraste, a repetição não pode ser muito adiada, a fim de não colocar em perigo a compreensibilidade; daí o fato de a segunda metade [,] o conseqüente, ser construída como uma espécie de repetição do antecedente (SCHOENBERG, 1991, p.51).

O período na exposição da Sonata em Sol menor de Haydn apresenta-se da seguinte maneira (FIG.6):


FIG. 6: período na exposição (c.1-4).


É interessante notar como Haydn estabelece a variação da segunda metade do período. Através da perspectiva analítica schenkeriana, nota-se que a figura abaixo (FIG. 7) destaca uma transferência de registro de uma voz interna. Com isso, Haydn estabelece a variação da segunda metade do período. Mesmo assim, não retira o aspecto de repetição mencionado acima:



FIG. 7: transferência de registro de voz interna.


Conforme Orlando Fraga, em Progressão Linear: uma breve introdução à Teoria de Schenker (2009), a transferência de registro se caracteriza como uma técnica de progressão linear, na qual ocorre uma mudança do “registro agudo para o grave ou vice-versa” (FRAGA, 2006, p.50) através de uma determinada voz. Mais especificamente, a transferência de registro destacada acima se caracteriza como uma superposição. Na observação do mesmo autor, a “superposição acontece quando uma ou mais vozes internas aparecem acima da voz principal ou registro obrigatório“ (FRAGA, 2006, p.53). Como veremos mais adiante, essa superposição possui um papel importante dentro da reelaboração do período na recapitulação.

Conforme mencionado anteriormente, a reorganização da prymary-theme zone (P) na recapitulação apresenta-se como um aspecto fundamental no que diz respeito ao processo de eliminação da transição (TR). Pode-se dizer que ocorre uma espécie de “deformação” (deformation) na estrutura do período se estabelecermos uma leitura dialógica através do que ocorre na exposição. Observando comparativamente a FIG. 4 e a FIG. 5, nota-se um alargamento da estrutura do período em dois compassos (recapitulação). O direcionamento harmônico final, também é modificado.

O alargamento ocorre através da amálgama entre o segmento inicial da frase conseqüente e um segmento apresentado anteriormente no final da exposição. Este último segmento possui um papel conectivo, ou seja, ele estabelece tanto a conexão do final da exposição com o seu reinício, bem como com o início do desenvolvimento (FIG. 8):



FIG. 8: Segmento do final da exposição e sua re-elaboração na recapitulação.


O segmento final da exposição se caracteriza por seu direcionamento harmônico às meias-cadências tanto de Sol menor (i:HC – quando retoma o início da exposição) como de Dó menor (iv:HC – quando se dirige ao início do desenvolvimento). Este direcionamento harmônico ao V, ou seja, a meia-cadência (HC), é mantido quando o segmento é utilizado na estrutura do período na recapitulação.

Conforme dito anteriormente, a superposição possui um papel importante no sentido de que facilita o encaixe entre o primeiro segmento da frase conseqüente com o material extraído do final da exposição (ver FIG. 7 e FIG. 8).

Levando em conta o alargamento que ocorre na estrutura do período no início da recapitulação, surge a seguinte pergunta: considerando a modificação da estrutura harmônica e o encaixe do segmento final da exposição, pode-se dizer que nos c.52-57 se mantém a forma de período? Ou se estabelece, por exemplo, a forma sentença? Para responder tais questões, será necessária uma breve discussão sobre o que Caplin (1998) denomina “hybrid themes”. Conforme o autor:

Muitos temas são difíceis de classificar dentro dos modelos de sentença ou período. Para ter certeza, alguns comportam pequena relação a cada forma; contudo, um número considerável combina características de ambos os tipos. Esses últimos temas têm recebido pouca discussão teórica. Na melhor das hipóteses, alguém familiarizado com as idéias de Schoenberg pode observar que um determinado tema está [construído] ‘mais como uma sentença do que um período’ (ou vice-versa), mas não poderia descrever precisamente como o tema se encaixaria dentro de uma estrutura teórica que consiste exclusivamente de dois tipos fundamentias (CAPLIN, 1998, p.59, tradução nossa).


Caplin (1998) desenvolve uma discussão em torno de temas que “podem exibir características tanto sentenciais quanto periódicas” (CAPLIN, 1998, p.59, tradução nossa). Sendo assim, é interessante notar que o espaço de ação (action-space) que vai do c.52 ao c.57 apresenta, num primeiro momento, uma característica híbrida, ou seja, sugere aspectos relativos ao período e a sentença. É através desta perspectiva que o trecho pode ser lido.

Conforme Caplin (1998), sobre os temas híbridos (Hybrid 1: antecedent + continuation):

Muitos temas híbridos começam como um período, mas terminam como uma sentença; isto é, são compostos de um antecedente de quatro compassos seguido por uma continuação de quatro compassos (CAPLIN, 1998, p.59, tradução nossa).

Como se pôde ver, a priori, a prymary-theme zone (P) na recapitulação da sonata de Haydn confere com este modelo discutido por Caplin (1998). Para fundamentar melhor este padrão expresso na peça de Haydn, tomemos uma descrição que o autor faz de um exemplo extraído do Andante da Sonata para piano em Dó maior de Mozart, K.330 (FIG.9):

A primeira frase é um antecedente padrão – uma idéia básica de dois compassos seguida por uma idéia contrastante que termina com uma meia cadência. A segunda frase começa com novo material e modula para a região de dominante. Uma vez que a idéia básica não retorne, a frase não pode ser considerada como um conseqüente. Ao invés disso, a frase projeta a mais típica característica da função de continuação – ou seja, a fragmentação das idéias precedentes de dois compassos em unidades de um compasso (CAPLIN, 1998, p.59, tradução nossa).


FIG. 9: Exemplo extraído de Caplin (1998, p.60).


Conforme o autor, este modelo de Mozart se organiza da seguinte maneira: função antecedente + função continuação. De forma similar, Haydn desenvolve tal estruturação na primary-theme zone (P) da recapitulação:



FIG. 10: Primary-theme zone (P) na recapitulação.



Considerações finais


Através da abordagem acima, pode-se fazer as seguintes considerações:

Embora a sonata de Haydn apresente uma deformação (deformation) através da eliminação da transição (TR) na recapitulação, acredita-se que este aspecto não se apresenta como algo essencial a ser discutido. O que se trouxe à tona através desta abordagem foi a maneira como o compositor equilibrou estruturalmente a recapitulação em decorrência da eliminação de tal espaço de ação (action-space). Para tal, Haydn optou por realizar uma reelaboração do período apresentado na exposição. Através da mudança de funções (antecedente – conseqüente (exposição) para antecedente – continuação (recapitulação)), o compositor parece ter estabelecido um equilíbrio na forma, mais especificamente no sentido de que não deixa perder a expectativa criada pela meia-cadência (HC) que leva a secondary-theme zone (S) – como se fosse uma substituição à meia-cadência (HC) ao final da transição (TR). Talvez - e aí se entramos em um campo mais especulativo - o compositor também tenha optado por essa elaboração no sentido de não enfraquecer a sensação de fechamento da ESC (essencial structural closure) no c.63;

Conforme dito anteriormente sobre a transferência de registro, mais especificamente da superposição, pode-se dizer que Haydn, através desta elaboração, pôde tornar mais natural a conexão entre a fragmentação da idéia básica (na FIG. 10 nota-se que a fragmentação se dá através de uma seqüenciação do segmento final da idéia básica apresentada no antecedente) e o segmento extraído do final da exposição. Este aspecto mostra a habilidade do compositor em manusear os materiais disponíveis, ou seja, sua capacidade de interconectá-los.

Portanto, pôde-se notar que Haydn não elimina aspectos básicos que envolvem o espaço de ação (action-space) referente à recapitulação. Embora não haja a transição (TR) dirigida à meia-cadência que leva à secondary-theme zone (S), Haydn optou por remodelar a prymary-theme zone (P) (FIG. 11):


FIG. 11: Recapitulação na Sonata em Sol menor Hob XVI/44 de Franz Joseph Haydn.



Notas


[1] Ver p.14-15 de Elements of Sonata Theory: Norms, Types and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata.
[2] Ver (DARCY; HEPOKOSKY, 2006, p.14).
[3] Para uma melhor compreensão do conceito de deformação (deformation), ver pág. 614 a 621 do livro Elements of Sonata Theory: Norms, Types and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata.
[4] Segundo Schoenberg, “a liquidação é um processo que consiste em eliminar gradualmente os elementos característicos, até que permaneçam, apenas, aqueles não-característicos que, por sua vez, não exigem mais uma continuação. Em geral, restam apenas elementos residuais que pouco possuem em comum com o motivo básico” (SCHOENBERG, 1991, p.59).


Referências


CAPLIN, William E. Classical form: A Theory of Formal functions for the Instrumental Music of Haydn, Mozart, and Beethoven. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998.
DARCY, Warren; HEPOKOSKY, James. Elements of Sonata Theory: Norms, Types and Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata. Nova Iorque: Oxford University Press, 2006.
FORTE, Allen; GILBERT, Steven E. Introducción al Análisis Schenkeriano. Trad. Pedro Purroy Chicot. Barcelona: Editorial Labor, 1992.
FRAGA, Orlando. Progressão linear: uma breve introdução à Teoria de Schenker. Curitiba: DeArtes, 2009.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. Trad. Eduardo Seincman. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991.
 
*Daniel Ribeiro Medeiros é Bacharel em Violão pelo Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (2004) sob a orientação do Prof. Ivanov Basso. Durante o curso, foi contemplado duas vezes com Bolsa de Desempenho Acadêmico no projeto Violão Camerístico, atuando como pesquisador de repertório, arranjador, transcritor e recitalista. Como recitalista, atuou como solista e camerista. Destaca-se aqui sua participação no Grupo Camerístico de Violões (Fábio Dalla Costa e Ivanov Basso). No ano de 2006, o trio foi selecionado pela FUNARTE/MinC para a realização do projeto Concertos Didáticos nas Escolas Públicas, com o patrocínio da PETROBRAS. No período de 2006 a 2008 trabalhou como professor substituto no curso de Licenciatura em Música da UFPel, onde ministrou as disciplinas de Violão, Teoria e Percepção Auditiva, Arranjo Vocal e Instrumental, dentre outras. No final de 2006, fez parte da comissão organizadora do V Encontro de Violonistas do Conservatório de Música da UFPel. Atualmente é mestrando em Teoria e Criação pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFPR, sendo orientado pelo Prof. Norton Dudeque.