Revista eletrônica de musicologia



Volume XIII - Setembro de 2010


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OS DEFENSORES DO ENSINO DE MÚSICA NA ESCOLA BRASILEIRA DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

 

Wilson Lemos Júnior



Resumo: Durante a história, vários filósofos, intelectuais, pedagogos, músicos ou mesmo leigos defenderam o ensino de Música como parte integrante da educação. Este artigo trata de três defensores do ensino de Música no Brasil na primeira metade do século XX: o professor Veríssimo de Souza, o pedagogo Fernando de Azevedo e o músico e compositor Heitor Villa-Lobos, sendo este um dos maiores responsáveis pela inclusão da disciplina de Canto Orfeônico nas escolas brasileiras. Busca-se analisar no discurso destes personagens, as suas idéias a respeito do ensino de Música, assim como as suas finalidades, suas vantagens e sua relação com a escola moderna.

Palavras-chave: Educação Musical, Canto Orfeônico, História das Disciplinas.


Introdução

Com o advento da República no Brasil em 1889, os discursos sobre os rumos da sociedade e da cultura brasileira voltaram-se a idéia de mudança, especialmente no que dizia respeito à exaltação do progresso. Este discurso incluía modernizar não só a política do país, mas também as mais variadas vertentes da sociedade, como por exemplo a arte e a educação. Dentro do âmbito educacional, surgiu um discurso em prol da Educação Musical, pois esta disciplina casava com a idéia de uma escola moderna, que tinha como objetivo, a busca pelo equilíbrio na formação das faculdades cognitivas, físicas e morais dos indivíduos. A partir do século XX, estas discussões se tornaram ainda mais intensas e, consequentemente o ensino de Música conseguiu cada vez mais espaço dentro dos currículos escolares brasileiros.  
Serão abordados aqui três discursos de diferentes grupos de defensores do ensino de Música na primeira metade do século XX. O primeiro deles é de Veríssimo de Souza, um professor de História que publicou artigos sobre a educação musical no início do século XX na revista paranaense A Escola. O segundo deles é Fernando Azevedo, que através de sua obra Novos caminhos e novos fins: a nova política da educação no Brasil, lançada em 1937, relatou as premissas do grupo de educadores que se auto-intitulavam os defensores da escola nova. E por último, Villa-Lobos, responsável direto por inserir o Canto Orfeônico nas escolas ginasiais brasileiras, além de ser oficialmente considerado o grande organizador deste ensino no Brasil, encontrando no governo de Getúlio Vargas, o apoio político para tal empreitada.


Veríssimo de Souza: um defensor do ensino de Música na Escola Paranaense

O ensino de Música encontrava-se presente nos currículos das escolas normais paranaenses desde 1882. No entanto, foi apenas na primeira década do século XX que este ensino passou a ser discutido como uma realidade concreta nas escolas primárias paranaenses. Em 1910, na publicação do artigo Educação Esthetica, da revista A Escola, o autor Veríssimo de Souza apresentava-se como pioneiro da discussão do ensino de música na escola primária paranaense: “(...) Eu tenho a honra de ter sido o primeiro que no Paraná aventou a idéia de ensinar-se a música na escola primária, essa disciplina que só agora o novo regulamento inclui no programa do ensino, o que muito me alegra” (SOUZA, 1910).
O fato de Veríssimo de Souza comemorar a inclusão da disciplina de Música na escola primária paranaense assumia um paralelo direto com o discurso em prol da modernidade na educação. Sob este prisma, o ensino de Artes e Música surgia como parte integrante da educação moderna.
O advento da República no Brasil trouxe uma necessidade de renovar o quadro educacional do país, em busca uma educação compatível aos novos tempos vividos pela sociedade brasileira. Sendo assim, pensava-se numa reorganização do ensino, partindo da premissa de que a educação era a maior responsável pela formação de cidadãos adaptados às modernidades da nova sociedade brasileira.
O caminho a ser traçado pelos republicanos, no que dizia respeito à educação moderna, deveria ser espelhado nos exemplos de países europeus. Isto pode ser percebido no discurso de Veríssimo de Souza no artigo O ensino de Musica publicado em 1907, também na revista A Escola:

(...) entre as sabias medidas que ella [Comissão que estudaria e sugeriria alterações ao Governo sobre a Legislação escolar vigente] vae suggirir aos Poderes Constituídos do Estado, inclua, a da fazer parte do curso primario o ensino de rudimentos de Musica, a exemplo do que se pratica em Allemanha e outros paizes cultos.
    Está claro que o ensino desse ramo das bellas artes nas escholas publicas só se deve exigir dos professores que seguem o curso da Eschola Normal, cujo programma comprehende tambem a referida arte [grifos meus] (SOUZA, 1907).

Além de Veríssimo de Souza inspirar-se nas escolas européias, em especial, a alemã para justificar o ensino de Música na escola primária, ainda ressaltava a importância da disciplina na escola normal. Para isso, defendia a utilização de bons métodos de ensino para uma formação mais adequada dos normalistas. A música aparecia ainda atrelada a sua função higienista, pois era capaz de equilibrar as atividades de trabalho mental através de seu caráter lúdico: “(...) A adoção da Musica nas escolas primarias, além de outras diversas vantagens, produzirá a de suavizar as agruras do trabalho mental a que se entregam quotidianamente as crianças, durante cinco horas, esforço que debilita as suas energias, ainda embrionárias” (SOUZA, 1907).
A discussão introduzida por Veríssimo de Souza sobre a educação musical como forma de “descanso”, assume um paralelo com o que acontecia em São Paulo, conforme relatou Rosa Fátima de Souza em seu estudo sobre a implantação da escola primária graduada de São Paulo no período de 1890 a 1910: “Para manter-se um equilíbrio entre a atividade e a atenção que as crianças têm de manter, os exercícios eram geralmente intercalados de marchas entre bancos, de canto ou de ginástica, que constituem verdadeiros períodos de recreio, em que as crianças descansam o espírito, predispondo-se para novos exercícios” (SOUZA, 2000, p.58).
A relação do ensino de Música com a função de “descanso do espírito” no relato destes autores, traz um apelo ao discurso higienista que se propagava entre médicos e educadores. Neste discurso a escola era pensada como importante veículo de formação harmônica entre o intelectual, o moral e o físico. Isso era flagrado no discurso de Veríssimo de Souza no momento que relacionava a música na escola como um elemento capaz de aliviar o cansaço causado pelas disciplinas que requeriam um maior esforço intelectual. Neste sentido, o ensino de Música assumia uma função de equilíbrio na escola, ou seja, para um melhor desenvolvimento do aluno, era necessário oferecer disciplinas que trabalhassem com atividades prazerosas, além daquelas de caráter científico.  
Possivelmente de forma comparativa aos países europeus, Veríssimo de Souza atacou os compêndios de Música, que não se adequavam à realidade escolar:
Sou pelo ensino da musica em as escolas primarias, não pelo ensino completo da arte, e menos ainda pelos péssimos compêndios que conheço, em que já na 2ª lição se ensinam os modos maior e menor, quando um aprendiz nem faz idéia do que é um fá sustenido(...) ensinada de modo recreativo nos intervalos de outras lições, não só é de mui fácil aprendizagem como também é atraente. (...) Os cânticos, principalmente marciais, devem ser usados freqüentemente, como exercícios estáticos e como incitamento ao civismo’ (SOUZA, 1910).

     Veríssimo de Souza aliava o ensino de Música aos ideais cívicos, enaltecendo os cantos marciais que também assumiam na opinião do autor, uma função estética. Vale ressaltar que Veríssimo de Souza era professor de História, o que demonstra a importância do ensino de Música para a educação, que era defendido até mesmo por educadores de outras áreas do conhecimento. É certo que no início do século XX não havia a especialização em áreas para os educadores, ou seja, a importância de um professor de História não se limitava à História, mas ao compromisso educacional em seu todo. Estes ideais cívicos na educação já eram encontrados na Europa e nos Estados Unidos desde o século XIX, tendo surgido daí interesses na inclusão de disciplinas como Arte e Música e Educação Física nos currículos escolares (KAMENS e CHA, 1999, p. 65).
A educação musical no Brasil passava pelas duas finalidades do ensino vivenciadas anteriormente na Europa: a de “higiene moral” e a do “estímulo à cidadania”. Para isso tornava-se imprescindível um ensino para as massas, necessário para a formação de uma República em busca de uma identidade nacional.


Fernando de Azevedo: o ensino de Música na Escola Nova

No final da década de 1920 e início da década de 1930, ganha força no Brasil, um grupo de educadores que se intitulavam “os defensores da escola nova”, que pregavam uma educação única e que pudesse abranger as camadas mais carentes da sociedade (“educação para todos”).
A presença marcante de alguns intelectuais como Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira no mercado editorial, assim como nas gestões dos sistemas de instrução pública e até mesmo na formulação de políticas educacionais, fez com que as idéias destes educadores fossem propagadas por todo o país. Tais intelectuais se preocupavam com o ensino de Música, tanto para as escolas primárias como para as secundárias:

Segue-se, na então Capital do país, a Reforma de Anísio Teixeira, em 1932, que já encontrou estruturada a de seu antecessor, Fernando de Azevedo, a qual, em virtude da Revolução de 1930, não pôde ter o desenvolvimento almejado. Na Reforma de 1932, a Música e as demais Artes têm um lugar proeminente, como um dos mais preciosos alicerces da Escola Nova. Além da programação para Escolas Elementares, Jardins de Infância e Ginásios, é criada a Cadeira de Música e Canto Orfeônico no Instituto de Educação e que foi ministrada pela Professôra Ceição de Barros Barreto (...) (JANNIBELLI, 1972, p.42).

O projeto escolanovista defendia uma educação para as massas, e a Música era considerada uma parte integrante deste olhar sobre a educação. Essa relação se dava exatamente no poder de despertar a cidadania. Na obra “Novos Caminhos e Novos Fins: A nova política da educação no Brasil. Subsídios para uma história de quatro anos”, com primeira edição no ano de 1937, Fernando de Azevedo analisou a reforma educacional planejada e executada por ele, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1927 a 1930, e assim como havia feito Veríssimo de Souza defendeu o ensino das artes apoiado no poder recreativo deste ensino: “(...) A educação nova quebraria o ritmo da unidade essencial da vida, se, no seu propósito social, não abrangesse, para desenvolver o bem-estar do indivíduo e da comunidade, as poderosas inspirações da arte, nos seus aspectos educativos e recreativos”. (AZEVEDO, 1958, p.119).
Se por um lado, Fernando de Azevedo considerou importante um espaço para as artes dentro da educação nova, compreendendo as suas mais diversas manifestações (desenhos manuais, música, teatro e dança), por outro apresentou uma visão utilitarista da arte na escola, em que esta não assumia um papel essencial pelo seu lado técnico e teórico, mas sim pela sua capacidade recreativa. O ensino das artes era apresentado como um poderoso meio de educação, capaz de promover um dos valores essenciais para o homem da década de 1920: a sociabililização. Esta de fato era uma preocupação dos intelectuais da escola nova que procuravam promover uma educação que preparasse o indivíduo para o convívio harmônico na sociedade. Desta forma, descartavam os ideais de uma educação tradicionalista que visava apenas a instrução, ou seja, a simples transmissão de conhecimento. A respeito das diferentes artes (música, teatro e dança), Fernando de Azevedo complementa:

(...) No novo código de educação, as representações dramáticas, a música e a dança não entraram apenas como divertimento nos programas de festas e reuniões escolares, mas se integraram, como num corpo de doutrina, no novo sistema com que a escola, aproveitando a arte na sua função social, como um auxiliar maravilhoso na obra de educação, poderá contribuir para aprofundar e consolidar as bases espirituais de nossa formação, abrindo a sensibilidade da criança as atividades ideais, capazes de despertá-la e desenvolvê-la, sem prejuízo, antes como proveito das práticas cotidianas. (AZEVEDO, 1958, p.128-129).

Desta forma, Fernando de Azevedo criticava a arte dentro da educação tradicional.
A arte, que até então se hospedava, retraída, nos programas artificiosos de festas escolares, para deleite dos pais, no seu encantamento pelos filhos, incorporou-se ao sistema de educação popular, como um dos principais
fatores educativos e uma das mais poderosas forças de ação, de equilíbrio e de renovação da coletividade (AZEVEDO, 1958, p.118).

Para Azevedo, as atividades artísticas e musicais dentro da escola nova deveriam ser abordadas utilizando uma educação popular inspirada em motivos da vida infantil, da flora, da fauna e do folclore nacionais, o que tornava necessário também o recolhimento e a pesquisa dos cantos e canções populares provenientes do folclore. A utilização da arte folclórica na escola teria sua força maior na relação educativa com o aluno, e menor para apresentações em reuniões e festividades escolares.
O autor apresenta um ponto importante para a análise da Música na escola, uma vez que ressaltava que durante a educação tradicional, os rituais e festividades escolares serviam apenas como “vitrine” e eram realizadas apenas para deleite dos pais. Mais tarde, Villa-Lobos também se preocuparia com esta questão, uma vez que relatou que o excesso de apresentações poderia ser prejudicial para o trabalho do professor em sala de aula. O sentido de “renovação da coletividade” aparece no texto de Fernando de Azevedo, demonstrando novamente a afirmação de uma educação em busca da sociabilidade entre os estudantes. A ênfase em atividades em conjunto tornava-se então um dos elementos centrais para uma educação que privilegiava o ensino para as massas.   
Assim como os defensores do ensino de Música do início do século XX, os intelectuais da escola nova também se inspiravam nos modelos de escolarização de países europeus. Percebe-se, por exemplo, que algumas das idéias de Fernando de Azevedo assumem um paralelo com a obra de um pedagogo francês chamado Chasteau em Lições de Pedagogia (livro para o uso dos alunos da escola normal), publicado originalmente em 1899 na França. Segundo este manual:
    
A música eleva o espírito, estimula a sensibilidade, sôbre a qual se pode edificar todo o plano educativo. Representando o lado puramente estético da educação popular, até sôbre êste aspecto merece ser muito apreciada. – Depois, sob o ponto de vista moral, a música apresenta, para a juventude, uma poderosa couraça contra os perigos doutros prazeres, e isto pelo sentimento puro e elevado que ela cultiva. Finalmente sob o ponto de vista disciplinar, o canto que acompanha as marchas, os exercícios, as saídas e as entradas dos alunos, impede a desordem e o tumulto, ao mesmo tempo que ministra um alimento salutar à actividade nativa dos alunos, distraindo-os, alegrando-os, facilitando-lhes poderosamente o seu trabalho. É por isso que até o ensino de gimnástica costuma ser acompanhado dum canto bem ritmada (CHASTEAU, 1899, p. 370).

Publicada e traduzida no Brasil, para o uso das escolas normais ainda em 1899, a obra de Chasteau de certa forma expressava uma das necessidades fundamentais para a formação de uma República. Ciente disso, Fernando de Azevedo nunca negou a influência direta das obras dos europeus. Neste sentido, algumas comparações entre Chasteau e Azevedo se tornam inevitáveis, como por exemplo, a valorização do lado estético e moral. É certo que existem algumas diferenças, já que em nenhum momento Azevedo apresenta diretamente a música como forma de conter a desordem ou contra os perigos doutros prazeres. No entanto, a música assume abertamente uma função de controle tanto no discurso de Chasteau, quanto no discurso de Azevedo, pois poderia oferecer essa elevação espiritual por meio de um ensino recreativo, capaz de distrair e alegrar os alunos, contendo assim a energia dos mesmos. A semelhança entre os discursos dos europeus e dos brasileiros como Veríssimo de Souza e Fernando de Azevedo, foi muito comum neste período de busca pela renovação educacional.


Villa-Lobos: a busca de um projeto nacional para o ensino de Música

Apesar do sucesso como músico, instrumentista e compositor, o maestro Heitor Villa-Lobos manteve um forte interesse pela educação, sendo decisivo no projeto de implantação e divulgação do Canto Orfeônico nas escolas brasileiras. Durante a década de 1920, antes da sua segunda viagem à Europa, o maestro Villa-Lobos já possuía a idéia de criar coros populares nacionais, como demonstra um cronista na Folha da Noite (Rio de Janeiro) de 03 de novembro de 1925:
    
Espírito de fina observação, Villa-Lobos notou que o costume admirável de cantar em coros ainda não penetrou nos povos latinos, sendo um hábito antigo na raça teutônica. Na Alemanha, cada indivíduo tem a sua voz determinada, com seu repertório de canções nacionais e, na primeira reunião em que se encontra, sabe executar a sua parte num concerto vocal. Na França já se começa a educar o povo com as músicas a vozes, sendo um exemplo incipiente o hino dos estudantes em greves, num cortejo qualquer pelas ruas de Paris.
É necessário que, também aqui, se intente o mesmo, começando pelas escolas, único ponto de seguros efeitos nas vindouras gerações de moços. Em lugar de encher a cabeça das crianças com os famosos hinos que nas escolas se cantam, de letra e de música estúrdias, sem a menor compreensão por parte, muitas vezes, até dos professores, é preciso que se ensine os pequenos a cantar as nossas canções apanhadas entre o povo, conseguindo que eles aprendam, cada qual a sua voz determinada, de modo que, no primeiro momento em que se encontre um grupo reunido, se possa, muito naturalmente, passar umas horas de agradável música. Mas a criança não poderá reter uma composição de várias vozes... Pois que não seja de muitas vozes, mas de duas apenas. E os nossos cantos, já estão fixados? Temos já canções nossas? Canções, temo-las e muitas; falta-nos somente quem as ame e as queira cantar. Da sistematização delas se encarregou o próprio Villa-Lobos e, muito breve, ouvi-las-emos nos seus adoráveis concertos. Dos coros passou a falar da nossa nomenclatura musical, dizendo que vai tudo muito errado, jamais sendo tango ou tanguinho o que hoje com tais nomes se publica (FOLHA DA NOITE citado por KIEFER, 1986, p.142-143).

    Desde a década de 1920, a discussão que colocava o ensino musical distante da mera execução de hinários já se encontrava presente. O ensino de elementos do folclore, na busca de resgatar uma identidade nacional, mostrava-se como preocupação principal. Neste momento, nota-se a “invenção” de uma tradição nacionalista para o Brasil, resultado de uma República emergente em busca de uma identidade cultural. O conceito de Hobsbawn sobre a “tradição inventada” pode contribuir no entendimento desta questão:
    
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, trata-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWN, 1997, p.9).
    
A disseminação da formação de uma cultura nacional se deu através das artes, da educação, da imprensa e do Governo, atendendo ao critério da “repetição” exposta por Hobsbawn. Essa relação com o nacionalismo não era uma exclusividade da música, uma vez que artistas das mais diversas áreas se empenhavam em divulgar a arte nativa brasileira, a cultura indígena e folclórica: Tarsila do Amaral, Anita Malfati e Di Cavalcanti na pintura; Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira na Literatura, e outros, que também estiveram empenhados no “resgate” da cultura brasileira.
Após a Semana de Arte Moderna, o maestro Villa-Lobos manteve certa receptividade de público e crítica paulistana. Este impacto rendeu-lhe uma bolsa para estudar na França, onde “(...) os viajantes e turistas brasileiros, desejosos de tomar o tradicional ‘banho de civilização’ em Paris, descobriram o quanto era ‘importante’ e ‘genial’ a cultura da população que os envergonhava pela miséria, ignorância e matiz da pele e que tanto seduzia os franceses” (SVECENKO, 2000, p.278-279).
Quando voltou ao Brasil, no ano de 1930, o consagrado compositor deparou-se com uma realidade musical bem diferente daquela que ele havia vivenciado na Europa. Se por um lado notava um público numeroso para a Música, por outro percebia que este público se encontrava aprisionado em “esquemas rígidos e manipulado ao sabor das conveniências dos empresários” (NÓBREGA, 1970, p.11). Isso levaria Villa-Lobos a apresentar à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo um plano de educação musical por escrito (mesmo documento que havia sido apresentado e ignorada anteriormente a Júlio Prestes, então presidente de São Paulo e candidato à presidência da República).
Após a Revolução de outubro de 1930, ano em que Getúlio Vargas assumiu a presidência da República, Villa-Lobos manteve ativas suas tentativas de reconstrução da educação musical brasileira, utilizando em seu discurso um forte apelo nacionalista, associado a defesa da música brasileira de raiz (canções folclóricas). Em 12 de janeiro de 1932, Villa-Lobos entregava ao presidente Getúlio Vargas um memorial sobre o ensino de Música e Artes do Brasil. Neste documento, Heitor Villa-Lobos problematizava a questão artística do Brasil no âmbito educacional, comparando-a novamente com as experiências realizadas em outros países. Além disso, o maestro apresentava a Música como a melhor e mais eficaz propaganda do Brasil para o exterior.
Para Villa-Lobos, a Música e as demais artes apareciam como elementos que deveriam ser valorizados por um Governo preocupado com a formação de seus cidadãos. Ao justificar suas intenções no trecho inicial da carta, Villa-Lobos acentuava o discurso nacionalista:

No intuito de prestar serviços ativos a seu país, como um entusiasta patriota que tem a devida obrigação de por à disposição das autoridades administrativas todas as suas funções especializadas, préstimos, profissão, fé e atividade, comprovadas pelas suas demonstrações públicas de capacidade, quer em todo o Brasil, quer no estrangeiro, vem o signatário, por este intermédio, mostrar a Vossa Excelência o quadro horrível em que se encontra o meio artístico brasileiro, sob o ponto de vista da finalidade educativa que deveria ser e ter para os nossos patrícios, não obstante sermos um povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da suprema arte. (VILLA-LOBOS, 1932).    

O problema levantado por Villa-Lobos e a forma apresentada para a sua solução (exaltação ao nacionalismo) pareciam ser as melhores justificativas para a realização do seu projeto. Elevar a arte a um símbolo de potencial da Nação se tornava o principal argumento utilizado pelo maestro para conseguir atingir seus objetivos. Villa-Lobos sintetizava e defendia aquilo que já era realidade na Europa: o vínculo do ensino de Música com uma função utilitarista para a sociedade.
A expansão em âmbito nacional do ensino do Canto Orfeônico teve sua origem na década de 1930, e contou com o apoio dos representantes da Escola Nova. Na Reforma de ensino de 1932, de autoria de Anísio Teixeira, na capital do país, a Música e as demais Artes tinham lugar destacado dentro dos currículos escolares. Na UDF (Universidade do Distrito Federal), havia o curso de Formação de Professores Secundários de Música e Canto Orfeônico, com várias Cadeiras culturais e pedagógicas. Em 1933, foi criada a Superintendência de Educação Musical e Artística, transformada em SEMA (Serviço de Educação Musical e Artística) no ano de 1939. Este também foi o ano em que Villa-Lobos apresentou sua proposta de ensino musical para os demais estados brasileiros:
    
Aos interventores e diretores de instrução de todos os estados do Brasil foi enviado em 1933 um apelo no sentido de que se interessassem pela propagação do ensino da musica nas escolas e pela organização de orfeões escolares, apresentando-se ao mesmo tempo uma exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional, da prática coletiva do canto orfeônico, calcada numa orientação didática uniforme.
Foi êsse apelo acolhido com interesse e simpatia em muitos Estados que desde então se preocuparam em torna-lo uma realidade. Assim, resolveu-se aceitar a matrícula de professores estaduais nos cursos especializados, para pequenos estágios onde êles pudessem adquirir os conhecimentos básicos imprescindíveis. (VILLA-LOBOS, 1946, p. 528).

Este projeto somente foi possível com a Superintendência que reunia cerca de 200 professores que ministravam o ensino da Música e Canto Orfeônico nas escolas de diversos níveis. Entre as realizações de Villa-Lobos dentro do SEMA destaca-se a atuação em defesa do Canto Orfeônico, por meio das concentrações orfeônicas promovidas durante o Governo de Getúlio Vargas. Após cinco meses na instituição, foi realizada uma demonstração pública com uma massa coral de 18.000 vozes, constituídas por alunos de escolas primárias, das escolas técnico-secundárias, do Instituto de Educação e do Orfeão de Professores.
Em 1943, o Maestro Villa-Lobos deixou a superintendência do Distrito Federal e fundou O Conservatório Nacional do Canto Orfeônico, de âmbito federal, com a finalidade de formar professores e de orientar o ensino musical em todo o país. Dessa forma, o maestro se preocuparia em oferecer as diretrizes para o ensino da Música e Canto Orfeônico nas escolas brasileiras. Villa-Lobos manteve uma posição de destaque no ensino de Canto Orfeônico do país, sendo citado em diversos livros didáticos da disciplina, como por exemplo, na obra Noções de Música e Canto Orfeônico, voltado para a 1ª série do curso ginasial, de Maria Elisa Leite Freitas, no ano de 1941, que apresenta Villa-Lobos como

(...) uma das maiores glórias da música nacional, aquele que, segundo Alberto Nepomuceno, achou a chave da verdadeira música brasileira, enquanto que êle achara apenas a porta, devemos, portanto a organização definitiva do ORFEÃO, na capital do Brasil, dum orfeão único que deverá, mais tarde, unir num só côro todas as vozes brasileiras para, sob uma só e mesma orientação, aprender a cantar as grandezas da Pátria e saber cantando defende-la e glorifica-la pelo trabalho honesto e inteligente, cumprindo assim, o compromisso ditado por Roquette Pinto e assinado por todos os orfeonistas: PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A’ARTE, PARA QUE O BRASIL POSSA, NO FUTURO, TRABALHAR CANTANDO [grifos no original] (FREITAS, 1941, p.18)

A idéia de trabalhar cantando relacionava-se a uma outra grande preocupação do governo getulista: o trabalho. A Música serviria como uma forma de compensação ao trabalho. Villa-Lobos também pretendia atingir os operários, que eram freqüentemente convidados a participar das concentrações orfeônicas promovidas pelo maestro durante as décadas de 1930 e 1940.


Conclusão

Nos discursos analisados, nota-se alguns pontos centrais no que diz respeito ao ensino de Música e Canto Orfeônico durante a primeira metade do século XX. O primeiro ponto trata da prática do Canto assumindo seu caráter disciplinador e sociabilizador, atendendo assim a um dos objetivos da escola moderna. O ensino do canto encontrava-se justificado como uma prática social, útil à vida e à convivência em grupo. Sendo, assim, as grandes festas e concentrações orfeônicas formadas por estudantes secundaristas eram formas de atingir a esta finalidade da escola, pois para o sucesso destes eventos, havia a necessidade de ensaio o que certamente necessitava de cooperação em grupo. Tanto Veríssimo de Souza e Fernando de Azevedo, quanto Heitor Villa-Lobos concordavam com o caráter sociabilizador da música. Em nenhum momento a formação de músicos profissionais foi a principal função da escola. A idéia era de que a escola pudesse formar cidadãos aptos a viver com as novas tendências do mundo, recorrentes do avanço tecnológico e também da grande onda nacionalista que tomava o mundo. Questões como a importância do trabalho, do estudo, da Pátria e da harmonia social tornavam-se essenciais para o crescimento da nação, justificando assim o ensino de Música nos colégios brasileiros.
Outro ponto recorrente no texto dos autores é a exaltação ao civismo, o que certamente é uma consequência do pensamento sociabilizador acima citado. A diferença é que tanto no discurso de Fernando de Azevedo, quanto no de Villa-Lobos há um forte apelo na questão de utilizar os elementos da fauna e flora brasileira no repertório privilegiado para o ensino de Música. Já no discurso de Veríssimo de Souza, nota-se uma valorização dos cantos marciais, mais preocupados com a disciplina moral do que propriamente com a formação de uma identidade cultural brasileira.  
Certamente estes não foram os únicos defensores do ensino de Música no Brasil na primeira metade do século XX, porém nos dão claras evidências do pensamento dos intelectuais da época sobre os do ensino de Música nas escolas brasileiras.



FONTES


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