Revista eletrônica de musicologia

Volume XIII - Janeiro de 2010

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O serialismo na Sonata 1942 de Claudio Santoro:
movimento Lento

 

Adriano Braz Gado * 

 

 

Resumo: Este estudo tem como objetivo investigar o uso dos ordenamentos seriais e de doze sons no movimento Lento da Sonata 1942, tida como a primeira peça para piano de Cláudio Santoro em que se utilizou a técnica de doze sons. Verificou-se a utilização da série em contínua circulação de suas alturas, o uso de recursos de alterações em seu ordenamento e a redisposição dos elementos da série para a formação de tríades na textura. Com este trabalho, espera-se contribuir para o entendimento do uso do serialismo em Cláudio Santoro.

 

Palavras-Chave: Cláudio Santoro; Serialismo; Técnica de doze sons; Música brasileira para piano

 

Abstract: This analytic study aims to investigate the use of serial and twelve-tone sets ordainment in the Lento movement from Sonata 1942, considered the first piano piece in the twelve-tone music by Claudio Santoro. As a result, it was verified the employment of the sets in continuous circulation of their pitches, the use of the alteration in the sets ordainments and the rearrangement of the elements of the sets in order to form triads in the texture. With this paper one hopes to contribute to the understanding of the use of serialism in Claudio Santoro's work.

Keywords: Cláudio Santoro; Serialism; Twelve-tone technique; Brazilian piano music

 

Introdução

 

Em 1908, na Alemanha, Arnold Schoenberg intensificou suas tentativas para obter novas ordenações do material de alturas na sintaxe pós-tonal, até que por volta de 1925 chegou à ordenação de doze sons na Suite para piano, Op. 25. Essa ordenação, que consiste no princípio da técnica de doze sons, se caracteriza no emprego de uma série como referência para toda peça. E seus intervalos, considerados absolutos, têm as propriedades de gerar frases e motivos construtivos. “A série base funciona como um motivo”, e é utilizada de maneira análoga a uma escala: “a escala é fonte de muitas figurações, de partes de melodias e de melodias propriamente, de passagens ascendentes e descendentes, e até de acordes fragmentados”. (SCHOENBERG, 1984, p. 219).
A técnica de doze sons expandiu-se para outras regiões além da Alemanha e foi empregada e reinterpretada por compositores dos mais diversos países. Após a segunda Guerra Mundial, a técnica culminaria no Serialismo Integral, onde todos os parâmetros além das alturas (ritmo, dinâmica, articulações instrumentais e timbres) foram serializados. Segundo Eimert, “A técnica de doze sons sofreu múltiplas modificações, de acordo com princípios de estilo, formas, estéticas e temperamentos, demonstrando fecundidade e adaptação a múltiplos critérios individuais. [1]
No Brasil, a partir de 1939, a técnica serial chamou a atenção dos compositores que integraram o movimento Musica Viva, como Hans Joachim Koellreutter, líder do movimento, Cláudio Santoro, Edino Krieger, Eunice Katunda e Guerra Peixe. E logo passaram a utilizá-la com “inteira liberdade na manipulação das normas gerais do dodecafonismo, adaptando-as às suas necessidades expressivas” (NEVES, 1981, 90).
Cláudio Santoro utilizou princípios seriais e de doze sons no decorrer dos anos de 1940, retornando a utilizar nos primeiros anos da década de 60 já com diferenças estilísticas. Estudou com Koellreutter nos anos de 1939 e 1940 e com ele aprendeu e compartilhou o uso da técnica. Foi no segundo movimento da Sinfoniaº 1, de 1940, que utilizou pela primeira vez a técnica de doze sons (o primeiro movimento data de 1939). No entanto, segunda a afirmação do próprio compositor:

“A ‘Primeira Sinfonia para duas Orquestras de Cordas’ é obra de estudante e eu precisava revê-la, [...] a primeira obra escrita nessa técnica, à minha maneira, foi a então publicada Sonata para Violino Solo[1940]. Obra em que procurei com a dodecafonia dar ao violino as mesmas possibilidades de uma oculta polifonia das partitas e sonatas de Bach. As obras mais importantes dessa época são a Música 1943 para Piano e Orquestra, o Primeiro Quarteto 1941, a Segunda Sinfonia 1945 ”. (SANTORO, apud MENDES, 1999, p. 6) [2]

Na Sonata 1942, Santoro emprega o ordenamento da série quase sempre de forma não ordenada ou até mesmo fragmentada, diferenciando-se da técnica utilizada pelos compositores tidos inventores da técnica – a citar Arnold Schoenberg , Josef Matthias Hauer e Herbert Eimert, como veremos a seguir.

Sonata 1942 – Lento [3]

Série

A FIG. 1 mostra a série base utilizada neste movimento. Apesar da preferência de séries simétricas por grande parte dos compositores seriais, aqui, Santoro escolhe uma série não simétrica. Verifica-se o uso de classes intervalares (CI) distintas, com maior emprego da classe intervalar 4 e prescindindo da classe intervalar 6. No primeiro hexacorde há o predomínio da CI 1 e no segundo, o predomínio da CI 4 e 5. [4]


Figura 1 – Série e classes intervalares (CI)

Na FIG. 2a é mostrado o segmento inicial na forma da série Original-0 (O-0). [5] O contorno da frase compreende um movimento em direção ao grave no motivo horizontal (h) do Fa# ao Reb (FIG. 2b). A classe intervalar 6 (trítono), ausente na série, é destacada na textura através da acentuação e ligadura – Fa# e Do (FIG. 2b). Já o motivo vertical (v), encerra um apoio rítmico com maior densidade e volume, e finaliza com gesto descendente, curto e resoluto em região grave (Mi). A textura, através dos motivos horizontais e verticais é sistematicamente empregada. As relações entre gestos ascendentes e descendentes e também a rítmica, materiais apresentados no segmento inicial, sofrerão variações no decorrer de todo o movimento. O vigor do elemento rítmico é fundamental para garantir a consistência do discurso.
Para o presente trabalho focaremos o aspecto das alturas, verificando os empregos de recursos de ordenação e não-ordenação da série.



Figura 2 – a) Segmento inicial; b) Segmento inicial em motivos horizontais (h) e verticais (v)

 

Ordenamento da Série

Os elementos da série são mantidos em contínua circulação de suas alturas, embora nem sempre a série inicie em sua primeira Ordem Numérica. O material apresentado na forma da série Original (O-0) será reapresentado e variado nas formas da série O-10 e O-11 (esta última em maior proporção). Não ocorrem quaisquer outras transposições das formas da série e também não há o uso das formas Invertidas ou Retrógradas.
Na maior parte da textura ocorrem alterações no ordenamento da série. Este é um procedimento comum na escrita de Cláudio Santoro, e parece ter sido baseado no estilo de seu mestre Koellreutter, conforme veremos a seguir. [6]

Em sua Música 1941 Koellreutter utilizou diferentes processos no tratamento da série. Entre eles, destacam-se as alterações no ordenamento das alturas: 1) a omissão de alturas da série no interior do segmento; 2) a permutação de alturas da série; 3) a repetição de elementos no interior da série [7]. Na Sonata 1942 Santoro utilizou os mesmos recursos de alterações:


Omissão de altura – Na Música 1941. a série que inicia o movimento II compreende as ordens numéricas (ON) de 2 a 11, há a omissão da ON 4 (FIG. 3a). Veja-se na Sonata 1942 o segmento com as ordens numéricas de 1 a 12, porém, com a omissão da ON 2 (FIG. 4a).


Permutação – Em segmento completo, Koellreutter permuta a ON 9 após a sucessão dos sons 10 e 11 (FIG. 3b). Na Sonata 1942 a ON 9 é precedida pela ON 8 (FIG. 4b).


Repetição - No movimento III da Música 1941 a série está completa. No entanto, a ON 1 (MI) reaparece na seqüência entre as ordens numéricas 5 e 6 (FIG. 3c) causando a ampliação do segmento. Já na Sonata 1942 a série está completa, mas a ON 10 é antecipada em permutação do ordenamento da série, mas é reapresentada logo após em seu ordenamento natural. (FIG. 4c) .


Na análise de segmentos seriais em 4 Epigramas p/ Flauta Solo, de 1942, Sérgio Mendes verificou o uso dos três processos citados acima e conclui que “as permutações aplicadas à série alcançarão níveis bem mais elevados de alteração” (MENDES, 2007, p. 5).

 

Figura 3 – Alterações no ordenamento - Música 1941 (Mov. I, II e III)

 

 


Figura 4 Alterações no ordenamento – Sonata 1942 (Lento)

Outro recurso de alteração no ordenamento da série diz respeito aos segmentos que utilizam repetições de elementos intervalares da série base. A FIG. 5 mostra um exemplo de redisposição das alturas para formar combinações intervalares características. No caso, as classes intervalares 4 e 5 são repetidas formando um segmento com sonoridades similares. A textura tem por base o segmento inicial, utilizando motivos em horizontal (h) e em vertical (v), num contorno descendente e ascendente.


Figura 5 – Conjuntos de Classes Intervalares 4 e 5

 

Ao analisar a Sonata para violino solo (1940), Marques de Oliveira verifica um procedimento análogo ao utilizado nos compassos acima: a “recorrência de intervalos ou conjuntos de intervalos entre diferentes segmentos da série”. Tal recurso parece ser um procedimento constante no estilo serial de Santoro. Oliveira conclui que as peças de Santoro compostas na década de 40 revelam uma espécie de “atonalismo organizado – segundo normas dodecafônicas – mas utilizado de forma pessoal e não ortodoxa”. (OLIVEIRA, 2005, p. 109, 141).

Outro segmento que utiliza a redisposição de alturas da série é verificado na formação de grupos de alturas de natureza triádica. Nos compassos 9 a 15 são verificados três conjuntos triádicos: o conjunto a para as tríades diminutas, o conjunto b para as tríades maiores e o conjunto c para as tríades menores (FIG. 6 – indicado no sistema inferior). Note-se que os conjuntos geram motivos na dimensão horizontal da textura em 3 vozes. Embora também ocorram na dimensão vertical (nos compassos 12, 13 e 15). As tríades mais exploradas são as diminutas (conjunto a) e as maiores (conjunto b).

Verifica-se que a série base (FIG. 1) só permite a formação de tríade maior com as ordens numéricas 7 - 8 - 9 (Sol, Mib e Sib). Nos demais sons adjacentes não há nenhuma relação triádica possível. É importante notar que o uso de tríades neste contexto não implica em relações tonais como pretendem, por exemplo, as estruturas de Alban Berg[8], mas apenas a referência isolada de tríades em estilo atonal livre.


Figura 6 – Relações Triádicas a, b, c

 


Considerações finais

O presente trabalho investigou o uso de segmentos na Sonata 1942, da primeira fase serial dodecafônica do compositor. Verificou-se o uso do serialismo com recursos individuais da série, demonstrando coerência e originalidade em seu uso da textura.
Em resumo, através de textura predominantemente polifônica, a série é utilizada de forma fragmentada, envolvendo diferentes números de alturas inferiores a doze e com alterações em seu ordenamento. Os segmentos seriais, derivados da série base, exploraram as formas da série O-0, O-10 e O-11 (este com maior emprego) e foram amplamente utilizados com seus sons em contínua circulação. Verificou-se o emprego de recursos de não-ordenamento da série tal como fizera Koellreutter em sua Música 1941. Tais recursos são de: a) omissão de altura; b) permutação de alturas; c) repetição de alturas. Outros segmentos que não seguem a ordenação da série se caracterizam pela redisposição de seus elementos para a formação de intervalos de mesma classe de altura. Além disso, verificaram-se redisposições de alturas para formar agrupamentos triádicos (tríades diminutas, maiores e menores) sem a intenção de relacionar aspectos de tonalidade, mas de caráter atonal livre.
O uso da técnica serial em Cláudio Santoro busca uma síntese entre o tradicional europeu e a busca de novas perspectivas do material musical conforme os ideais de renovação difundidos pelo movimento Música Viva, no decorrer da década de 1940. Conclui-se, portanto, que o compositor utiliza tratamento individual do serialismo demonstrando fertilidade e originalidade em lidar com o material.


Notas

[1] EIMERT, 1959, p. 14.
[2] Entre outras peças que figuram na primeira fase serial são: de 1940, a Sonata para violino solo e Sonata nº 1, p/violino e piano; de 1941, Sonata para flauta e piano; de 1942, Sonata nº2 para violino e piano, Sonata 1942, para piano, Quinteto de sopros, Sonata para violoncelo e piano, Adágio para cordas, Sonatina nº3 para flauta, viola e violoncelo e Quatro epigramas para flauta solo. (NEVES,1989, pp. 88-89).
[3] A Sonata 1942 é constituída de três movimentos: Lento; Alegre Brincando e Gracioso; Muito Lento.
[4] Classe Intervalar (CI) é um grupo de intervalos que contêm o mesmo número de semitons e podem ser distribuídos através das transposições de oitava. Uma classe intervalar é formada por qualquer intervalo de até seis semitons, incluindo aí suas inversões, todos os tipos de equivalência enarmônica e formas compostas. (TUREK, 1996, p. 376, 389). Em síntese, pertencem à CI 1 os intervalos de 2m e 7M; CI 2 os intervalos de 2M e 7m; CI 3 os intervalos de 3m, 6M; CI 4 os intervalos de 3Mm e 6mM; CI 5 os intervalos de 4j e 5j; CI 6 os intervalos de 4A e 5º.
[5] Aqui utilizamos o sistema de zero móvel para indicar a série na matriz. Como a série base inicia no FÁ#, indicaremos FÁ#=0, portanto, O-0 (Original 0). Assim, O-10 (Original 10) e O-11 (Original 11) consistem na transposição da série que se iniciam nas notas MI e FA, respectivamente.
[6] Terminado seus estudos com Koellreutter, Santoro compusera a Sonata 1942 para piano (1942). Um ano antes, Koellreutter compusera a Música 1941 para piano (1941), uma de suas peças seriais de maior divulgação. [6] Veja-se em Koellreutter e o serialismo: Música 1941 - Um estudo de análise a maneira peculiar com que Koellreutter utiliza o serialismo, explorando a série através reordenamentos de pequenos motivos e outros recursos que obscurecem o fluxo serial. (GADO, 2006, pp. 163-180)
[6] Em Alban Berg é freqüente o uso de elementos tonais em suas peças de doze sons, diferentemente de Schoenberg e Webern, que sempre procuraram evitá-las. A título de exemplo, ele utilizou tríades cujas fundamentais se relacionam através de quintas, aparecendo com harmonias não ornamentadas em muitos pontos no decorrer da obra. (LESTER, 1989, p. 237)
[7] Veja-se em Koellreutter e o serialismo: Música 1941 - Um estudo de análise a maneira peculiar com que Koellreutter utiliza o serialismo, explorando a série através reordenamentos de pequenos motivos e outros recursos que obscurecem o fluxo serial. (GADO, 2006, pp. 163-180)
[8] Em Alban Berg é freqüente o uso de elementos tonais em suas peças de doze sons, diferentemente de Schoenberg e Webern, que sempre procuraram evitá-las. A título de exemplo, ele utilizou tríades cujas fundamentais se relacionam através de quintas, aparecendo com harmonias não ornamentadas em muitos pontos no decorrer da obra. (LESTER, 1989, p. 237)

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GADO, Adriano Braz. “Koellreutter e o serialismo: Música 1941 - Um estudo de análise ”. ICTUS (PPGMUS/UFBA). v.7, pp.163 - 180, 2006. Disponível em <www.ictus.ufba.br>.

KOELLREUTTER, Hans-Joachim.. Música 1941 . Partitura. Publicación nº14. Montevideo: Cooperativa Interamericana de Compositores, 1942. Piano.

LESTER, Joel. Analytic Approaches to Twentieth-Century Music . London : W. W. Norton & Company, 1989.

MENDES, Sérgio Nogueira. “Cláudio Santoro: Serialismo dodecafônico nas obras da primeira fase (1939-1946)”. In XVII Congresso da ANPPOM , São Paulo, 27- 31agosto, 1989 .

_______________________ . Cláudio Santoro e a Expressão Musical Ideológica . Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1999.

NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira . São Paulo: Ricordi, 1981, pp. 98-99.

OLIVEIRA, Reinaldo Marques de. Claudio Santoro e o Dodecafonismo: Um Procedimento Técnico Singular . Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2005.

SCHOENBERG. Style and idea: selected writings of Arnold Schoenberg . (Leonard Stein,. ed.). Londres: Faber & Faber, 1984.

TUREK, Ralph . The elements of music: Concepts and Application . New York : Mc Graw-Hill, 1996.

 

 

*Adriano Braz Gado - é mestre pela UNICAMP. Atualmente é professor na Universidade Estadual de Maringá (UEM) (adriano.gado@uol.com.br)