Revista eletrônica de musicologia

Volume XII - Março de 2009

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O Samba no Morro da Fonte Grande - Vitória (ES): 1889-1955*


Leonardo Coelho Duarte*

 

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo elucidar o processo de consolidação em Vitória (ES) do samba, tradição conhecida e cultuasda até os dias de hoje, vinda do Rio de Janeiro em meados do século XX. Movimento que aqui não será abordado limitado apenas como gênero musical, mas como fenômeno que abrange os diversos aspectos da vida em comunidade, regulando e estabelecendo normas de convivência e de reconhecimento e valorização das culturas populares frente à sociedade contemporânea. A análise partirá do Morro da Fonte Grande, local onde foi fundada a primeira escola de samba do estado, “Escola de Samba Unidos da Piedade”, a fim de demonstrar o alcance da disseminação e influência do samba carioca e suas vertentes em localidades regionais distintas, como o Espírito Santo, tomando configurações próprias, resultantes da miscigenação cultural. E que através dos meios de comunicação, como rádio e impressos, coroaram o Morro da Fonte Grande como “berço” do samba capixaba, como podemos constatar nas entrevistas realizadas com antigos moradores e fundadores da escola, que ainda vivem na comunidade.

Palavras chave: tradição; samba; Morro da Fonte Grande; Espírito Santo; sociedade; cultura; História.

Abstract: The purpose of this paper is to explain the consolidation process in middle 20th Century in Vitória (ES) of samba, a tradition that is known and cultivated to this day. This process will be approached here not limited to the musical genre, but as a phenomenon that comprises various sides of life in community, regulating and establishing principles of sociability, and recognition and value of popular cultures in face of the contemporary society. The analysis will depart from Morro da Fonte Grande, the location in which the first Escola de Samba of the state, “Escola de Samba Unidos da Piedade”, was founded, in order to show the reach and influence of the samba from Rio de Janeiro and its various trends in different locations, such as Espírito Santo, adopting local configurations as a result of cultural miscegenation. Communications, such as radio and printed media, crowned Morro da Fonte Grande as the “cradle” of samba in Espírito Santo, as we may observe in the interviews held with old residents and founders of the Escola de Samba that still live in the community.

Keywords: tradition, samba, Morro da Fonte Grande, Espírito Santo, society, culture, History.

1. Introdução
Desde as pinturas rupestres, o homem vem deixando representações simbólicas que contribuíram para o fortalecimento das identidades que mais tarde serviriam de elementos constitutivos dessas sociedades. Essas manifestações podem ser consideradas fruto de idealizações e mitificações dos povos, transmitidas de geração a geração, que atraíram e envolveram cada vez mais adeptos e seguidores, fazendo com que essas se transformassem em ritos e tradições.
Pensamos muitas vezes que os rituais estão sempre vinculados ao mundo primitivo, às sociedades ágrafas, ou então a momentos de cunho religioso, mas na verdade, como o antropólogo Roberto da Matta[1] propõe em seu livro Carnavais, malandros e heróis, o ritual pode estar vinculado a tudo aquilo que se transforma em momentos de grande repercussão, tornando este instante “eterno”[2]. Com o passar dos tempos a assimilação popular o converte em tradição, e essa por sua vez, irá se transformar em símbolo de identidade sócio-cultural de cada povo. É através desses rituais que certas comunidades e grupos sociais, esquecidos e marginalizados pela sociedade moderna, conseguem ser reconhecidos e identificados, consolidando suas manifestações culturais e artísticas como costumes de uma determinada região, ou mesmo, de uma nação inteira. Da Matta diria que:
[...] o estudo dos rituais não seria um modo de procurar as essências de um momento especial e qualitativamente diferente, mas uma maneira de estudar como elementos triviais do mundo social podem ser elevados e transformados em símbolos, categorias e mecanismos que, em certos contextos, permitem engendrar um momento especial extraordinário. [...]. É neste processo que as “coisas do mundo” adquirem um sentido diferente e podem exprimir mais do que aquilo que exprimem em seu contato normal.[3]

O carnaval é um exemplo bastante peculiar de ritual que, juntamente com sua própria tradição, tem sido mantido por muito tempo como a manifestação popular de maior destaque. É considerado ritual por manter uma certa “estrutura”, tais como periodicidade, fantasias, música típica, dentre outras, resultado da junção de elementos responsáveis pela caracterização e formação cultural dos povos que o cultuam. É no seio da cultura cristã que as festividades carnavalescas nascem e se espalham pelo mundo, marcadas nos calendários religiosos antecedendo a Quaresma. Em suas manifestações a dicotomia católica é pregada de maneira forte, são três dias de brincadeiras pagãs, onde as classes se misturam e as culturas se unem.
Ao final do século XIX, dentro do contexto de transição da Monarquia para a República, e sentindo os impactos da recém abolida escravidão, o Rio de Janeiro atrai para seu centro urbano grande contingente populacional, proveniente de áreas cafeeiras do Vale do Paraíba, que se encontrava em declínio produtivo. Uma característica importante é a composição das origens dos trabalhadores rurais que estiveram ocupados do cultivo de café nessa localidade. Podemos encontrar um grande contingente de escravos advindos da região nordeste, notadamente dos antigos engenhos de açúcar pernambucanos, alagoanos e baianos[4]. Daí se destacam manifestações culturais que influenciaram a prática carnavalesca encontrada no Rio de Janeiro e que lá se desenvolveu e tornou-se a festa como ficou consagrada. Os batuques, a capoeira, os ranchos e as “chulas” de origem baiana, são alguns dos elementos precursores para a construção do samba.

A princípio, a palavra samba designava as festas de dança dos negros escravos, sobretudo na Bahia do século XIX. Com a imigração negra da Bahia para o Rio de Janeiro, as comunidades baianas se estruturaram de forma espacial e cultural e tiveram nas “tias”, velhas senhoras que exerciam um papel catalisador na comunidade, o seu elo central. A primeira geração do samba, João da Baiana, Donga e Pixinguinha, entre outros, tinham a marca do maxixe e do choro, e a partir das comunidades negras do centro do Rio, principalmente nos bairros da Saúde e da Cidade Nova, irradiou esta forma para toda a vida carioca e, posteriormente, para toda a vida musical brasileira.[5]

O samba compreendido aqui não é limitado apenas ao gênero musical em si, mas como um movimento que abrange toda a expressão cultural de uma comunidade, incluindo suas dimensões religiosa, econômica, política, moral, estética e ideológica[6]. Regulando a convivência social e as normas éticas da comunidade.
Exemplo das redes de convivência social promovidas pelas festas populares ao final do século XIX, no Rio de Janeiro, a Festa da Penha pode ser encarada como avant- première do Carnaval. Dentro dessa manifestação de caráter religioso, os habitantes da cidade aproveitavam o momento para se divertirem, uma vez que tal confraternização estava aberta a todos, independente de classe social e raça, com barracas servindo comidas típicas, bebidas, música, e tudo aquilo que torna a festa um meio lúdico de divulgação da cultura popular[7]. Muitos negros libertos subiam os caminhos íngremes da Penha para poder aproveitar o festejo. Junto com eles, subiam também seus costumes e rituais, e por serem a grande maioria entre os freqüentadores da festa, faziam daquele terreno uma extensão de suas casas. As “tias baianas”, figuras importantes desse momento, que promoviam encontros musicais em suas casas, e impulsionavam o nascente movimento, levavam para a festa iguarias de sua terra. Crianças brincavam de roda, homens jogavam capoeira e batiam sambas e batuques, com pandeiros, violões, e outros instrumentos resultantes da miscigenação cultural da festa. Foi ainda na Festa da Penha, que começaram a surgir os primeiros blocos carnavalescos, palco para grandes nomes da música popular, como Heitor dos Prazeres, Donga, Sinhô, Pixinguinha, entre outros, divulgarem composições que seriam sucesso no decorrer dos carnavais[8].
A repressão policial, marca das festas populares, se fez presente, pois, mesmo se tratando de uma manifestação cristã, existia um grupo de pessoas da classe alta da sociedade, que juntamente com a Igreja, pediam a intervenção da polícia, para que reprimissem aquelas manifestações, por julgarem que eram primitivas, vulgares, indecentes. Mas como era grande a resistência popular, não foi possível suprimir a expressão de seus costumes.
Já no início do século XX, o Rio de Janeiro começa a passar por um momento de modernização, desejado pelas classes industriais e que refletiu determinantemente nos hábitos da sociedade. Na Belle Époque, a classe dominante da cidade procurava “acelerar a modernização e a higienização da cidade, através de sua remodelação urbanística”[9]. Nesse momento, prezava-se a cultura erudita marcada principalmente pela influência francesa nas artes e na arquitetura. Isto fez com que se tentasse, a qualquer custo, eliminar de vez os traços da cultura das classes inferiores, consideradas atrasadas e “sujas”[10]. A Praça Onze era o palco das manifestações populares dentro desse novo contexto, ali se encontravam negros e brancos, ricos e pobres, palácios e barracos, toda a diversidade estampada nos arredores da praça, um ao lado do outro, sem restrições.
Os entrudos, desde os tempos da Monarquia, uniam no Carnaval todos os segmentos sociais em uma batalha brutal de limões-de-cheiro, de pós e água, fazendo das ruas um espetáculo de foliões “loucos”. Constavam também dos Zé-pereiras, dos cordões, que surgiram ainda na década de 1880, originados das classes baixas cariocas e da cultura africana, que saíam às ruas com os seus grupos de cucumbis, afoxés e embaixadas, exclusivamente masculinos, e que logo depois se transformariam nos cordões compostos por valentões e capoeiras, ao lado de brancos e mulatos reunidos em blocos mais bem comportados, graças à presença de mulheres. Os ranchos também desfilavam, com a característica de serem mais organizados que os cordões, traziam muitas vezes à sua frente a organização e o requinte das famosas “tias baianas” da Praça Onze, e que a partir do movimento cultural no interior de suas casas, resistiram ao preconceito, fortalecendo ainda mais a cultura afro-brasileira. Foram nesses redutos que nasceram e foram criados os filhos e netos da nossa música popular brasileira[11].
A partir da dissolução de proeminentes blocos carnavalescos da cidade na década de 20 do século passado, surgem as Escolas de Samba, refletindo a realidade urbana que se impunha, transformando toda a estrutura do carnaval e do samba, passando a ser organizado dentro das comunidades, não apenas em morros e favelas, mas atingindo a sociedade carioca, e conquistando todo o país através da divulgação pelos meios de comunicação de massa, como jornais e posteriormente o rádio, tornando o samba ritmo brasileiro, expressão máxima de nossa nacionalidade, reconhecida por todos os indivíduos e pelas nações estrangeiras.
Um processo semelhante pode ser percebido no Espírito Santo, onde, devido à proximidade geográfica com o Rio de Janeiro, constantes trocas econômicas e populacionais contribuem para a formação de um movimento carnavalesco aos moldes da capital do país.
O poeta capixaba Anselmo Gonçalves, em seu livro Carnaval Cem Anos[12], faz um resgate histórico do centenário do carnaval do Espírito Santo, abordando as manifestações populares dessa festa, na capital da antiga província e seus arredores, a partir de 1885. Ele analisa os documentos mais antigos sobre o carnaval capixaba, onde se destacam os jornais: “Correio de Vitória”, “Comércio do Espírito Santo” e “Cachoeirano”, que trazem amplas informações das tradições carnavalescas cultuadas nessa localidade do Império.
Pode-se perceber nessa obra a imensa importância que a população da cidade de Vitória, nos tempos imperiais, atribuía aos movimentos sociais que as festas de carnaval propiciavam. A mobilização em torno da compra de fantasias e adereços, a preocupação em garantir um lugar nos bailes e na preparação para as manifestações de rua faziam desses três dias momentos de alegria, sociabilidade, desprendimento moral e bagunça. Uma das brincadeiras difundidas e praticadas pelos populares que não participavam dos bailes fechados da elite era o entrudo,
[p]aralelo a todos os chiquês parisienses, das então luxuosas ruas de Vitória, um outro carnaval, o carnaval periférico, acontecia no final da Capixaba e na chamada Cidade de Palha, hoje Vila Rubim. Aí, nesses dois locais [...] a manifestação pública ultrapassava a alegria comum e ajuntamentos adversários ordenavam-se em grupos armados de bagas (mamona), e, em luta às vezes demorada, atiravam-se, uns aos outros em movimentos rápidos e fulminantes. Normalmente, a “guerra” descambava para a violência maior e pinicos de urina e fezes faziam as vezes da inocente semente dos vegetais nativos do Beco dos Cachorros.[13]

Com a Proclamação da República e o fim da escravidão, a cidade de Vitória sofrerá mudanças significativas em todas as áreas, e sua relação com o agora Distrito Federal Rio de Janeiro, fica cada vez mais próxima. A construção da Estrada de Ferro Sul, que liga a região central de Vitória ao sul do estado, irá facilitar o intercâmbio entre essas cidades, principalmente na área da cultura.
Os costumes do carnaval vão tomando formas diferentes, o entrudo vai sendo proibido e com penas cada vez mais severas para quem ousasse continuar com a brincadeira. No lugar das “guerras” de mamona, surge a “batalha de confetes”, diretamente de Paris, tomando “aspectos organizados e sempre estavam à frente delas, senhoras da sociedade”[14]. O relato deixa claro que essa “batalha” era constituída, na maioria das vezes, por foliões da alta sociedade, já que muitos participavam do carnaval de rua, para depois adentrarem aos festejos fechados dos clubes. Como acontecia na famosa Praça Onze do Rio de Janeiro, onde todos – ricos e pobres – se misturavam em meio à diversão e à folia, o mesmo acontecia em Vitória, onde a Praça Oito era o local mais disputado nos dias de carnaval.
Em 1910 surgem os primeiros carros na cidade, e vão servir também de atrativo durante o carnaval. A passagem dos veículos pelas ruas de Vitória arrancava demorados aplausos da impressionante massa do povo que se acotovelava ao longo desses logradouros públicos. Conhecido como “corso”, o desfile dos carros trazia consigo mulheres da sociedade, que passavam pelas ruas atirando confetes e serpentinas no povo. Nesse momento, a população mais pobre da cidade, vendo o charme e o glamour do desfile das “madames” em seus carros, cercadas de luxo em suas fantasias, começa a se organizar e a formar pequenos blocos, com um baliza, porta-estandarte e abre-alas, que seriam então os primeiros passos para a estrutura das Escolas de Samba. As músicas de carnaval, até então ligadas aos tangos e polcas começam a tomar outros rumos, e os ritmos de marcha e samba surgem para transformar mais uma vez as comemorações do carnaval.

Como tradicional vizinho do Rio de Janeiro, capital da República e centro irradiador de todas as inovações, o Espírito Santo absorveu as novidades da eletrônica (o rádio, o gramofone) e incorporou-se rápido ao mundo musical daquela cidade. E os maxixes, os lundus e os sambas, já presença nos carnavais de lá, passaram a ser também obrigatórios nos nossos eventos, com os seus ritmos e sonoridade marcando definitivamente a presença afro nos nossos costumes carnavalescos, até agora com indução inteiramente francesa e sem contestação.[15]

É claro que, mesmo em momentos anteriores, segundo Gonçalves, a cultura afro era manifestada, mas por se tratar, principalmente nessa época, de uma cultura baixa e atrasada ao olhar da elite capixaba, era rechaçada e muitas vezes proibida e punida pela polícia. Porém, como vimos anteriormente, essa mesma cultura, com o passar do tempo, tomará força extraordinária, tornando-se símbolo da cultura popular do Espírito Santo, juntamente com outras manifestações populares, como o Congo e a Folia de Reis. E é a partir desse momento que o Morro da Fonte Grande começa a construir sua tradição. Formado por trabalhadores urbanos, o carnaval do Morro descerá às ruas de Vitória mostrando sua organização e seu valor diante da sociedade capixaba.

2. Morro da Fonte Grande: Carnaval, samba e comunidade.


O presente trabalho só foi concebido graças à paciência e boa vontade de seis pessoas que são, a meu ver, figuras fundamentais e de grande importância para a história da cultura popular capixaba. Aloísio Abreu, conhecido como Aloísio Parú, 77 anos, pintor, 1° Mestre de Bateria da Escola de Samba Unidos da Piedade; Aroldo de Oliveira, 65 anos, hoje aposentado, 1° Mestre Sala da Escola; Nazaré de Oliveira Santos, 77 anos, estivador, Tesoureiro da Escola; Edson Monteiro, 79 anos, pintor, Locutor da Piedade; Maria dos Anjos Martins, conhecida como dona Anjinha, 82 anos, doméstica e costureira das fantasias da Escola e, por último, Carlos Augusto Viera, conhecido como Lajota, 61 anos, músico. Todos eles nasceram e vivem no Morro da Fonte Grande, menos Lajota, que foi criado em Gurigica, na Praia do Canto, mas que tem uma enorme paixão pelo Morro. Através de seus depoimentos, gravados e transcritos, de suas lembranças e experiências de vida pude coletar informações que serviram para delinear o tema deste trabalho, e traçar uma linha histórica dos acontecimentos e fatos que marcaram os aspectos culturais da comunidade e os momentos que fizeram do Morro da Fonte Grande o ponto inicial da construção e manutenção da tradição no Espírito Santo de um movimento que até hoje é consagrado e conhecido como símbolo da cultura popular brasileira: o samba.
Para a análise dos depoimentos, foi utilizada a metodologia da História Oral onde, a partir do material audiovisual coletado, busca-se evidências históricas antes impossibilitadas devido à frieza encontrada em fontes impressas e manuscritas, muitas vezes oficiais ou jornalísticas, que impedem de captar o teor humano que os acontecimentos históricos deixam na memória daqueles que transmitem a história, mantendo-a viva. Não existe na história oral um julgamento da veracidade dos acontecimentos, e sim a análise da memória individual ou coletiva de determinada pessoa ou comunidade, buscando traçar a história vivida por estes personagens, suas culturas, tradições, etc. Também busquei indícios sobre o tema levantado através do jornal “A Gazeta”, no período de dezembro a março de 1950.
O recorte temporal da pesquisa foi traçado entre os anos de 1950 a 1955, ano em que se dá a fundação da Escola de Samba Unidos Da Piedade.

2.1. Aspectos Demográficos do Morro da Fonte Grande

O Morro da Fonte Grande começou a ser ocupado ainda no final do século XIX. Em conversa com Aloísio Abreu, este destaca que: “A falação aí era a Chácara do Vintém”. Não foi encontrado nenhum documento que comprove que o Morro antes era uma propriedade particular.
Na verdade, o Morro da Fonte Grande possui este nome por que ali se encontravam nascentes usadas para abastecer a cidade de Vitória, que se concentrava onde hoje é Vila Rubim, Parque Moscoso, Cidade Alta até o Forte São João. Em 1909, Jerônimo Monteiro inaugura o serviço de abastecimento de água encanada da região. Por muito tempo essas fontes foram utilizadas pelos moradores do Morro para uso geral, pois não existia saneamento na região: “A gente buscava água lá na fonte, porque nós não tinha água não” (depoimento de dona Anjinha). Também foi motivo de inspiração para uma manifestação cultural conhecida como “canto das Lavadeiras”, que se juntavam ao redor dos poços para lavar roupas e cantar.
No início do século XX, com a crise do café e com a busca por melhores condições de vida, o Morro da Fonte Grande foi sendo “ocupado” gradativamente por pessoas originadas das regiões próximas, principalmente do interior do estado.

Meu pai é de São Mateus, minha mãe é de São Mateus (Nazaré)
Fui nascida e criada em Tangoá, Cariacica (dona Anjinha)
Eu nasci no interior de São Mateus, em Rio Preto (Edson Monteiro)

A maioria dos ocupantes não possuía emprego fixo, desta forma encontravam dificuldades para comprarem uma moradia, ou mesmo alugar um imóvel na região, uma vez que não conheciam quem os pudesse ajudar.

Eles vieram porque existia espaço desocupado e fizeram a casinha e ficaram lá como dono e até hoje é deles, mas não compraram. Tinha facilidade, o morro não era tão habitado. A pessoa chegava não sei daonde e ficava, arranjava umas tábua de caixote, ia emendando, fazendo o barraquinho, de estuque. (Aroldo de Oliveira)

O que demonstra a ocupação desordenada do Morro e a fragilidade social que se encontravam seu moradores

A maioria [das casas] era tudo de estuque, de palha. Não tinha quase uma casa de tijolo. Tudo zinco, palha. Não tinha escadaria, não tinha nada. (seu Aloísio).
Melhorou muita coisa daquela época pra cá. As ruas lá de cima, eram tudo barreiro, alguma coisa plana que tinha, muito estreita, muita lama, iluminação quase não tinha [...] As melhores casas que tinha na época eram de lajota sem reboco e casa de madeira, de estuque. Casa de lajota em sem reboco, era casa boa. (seu Aroldo)

Por muito tempo o Morro esteve carente de serviços básicos como moradia, saneamento básico e energia elétrica, dificultando ainda mais a vida dos moradores que não esquecem dos momentos que passaram.
A questão racial está presente no Morro, através das falas percebe-se que aí se concentrava um número relevante de afrodescendentes, podendo, muitos deles, serem herdeiros de ex-escravos que após a Abolição fixaram residência nesta região.

Meu pai era filho de escravo [...], minha avó era escrava. (seu Nazaré)
Na [batucada] Chapéu do Lado só tinha branco, e aqui [na Mocidade da Fonte Grande], só tinha preto. E eles não se misturavam, cada um pro seu lado. (dona Anjinha)
Mas os brancos que tinha no Morro eram considerados preto. (seu Aloísio)

Este depoimento abre novamente a discussão acerca das condições desfavoráveis em que se encontravam os moradores. E, de certa forma, essa mesma condição fazia com que se unissem, trazendo à tona a partir das relações sociais o aspecto comunitário, de união, como se todos tivessem algum grau de parentesco, como se fosse uma família. Isto poderia trazer certa segurança, certo conforto para aquelas pessoas, tirando pelo menos um pouco, o peso e o incômodo que carregavam nas costas, por sentirem excluídos e esquecidos pela sociedade.

O Morro era um bairro de gente muito pobre, mas um amigo do outro. Não tinha violência. População pequena, todo mundo conhecia. Todo mundo família. (seu Edson)

Quando perguntado aos entrevistados se sofriam algum tipo de discriminação social por parte da sociedade, as respostas são unânimes: “Sim”. Seu Aloísio comentou que na época do carnaval, o bloco Amarra o Burro descia “na marra” para desfilar no centro da cidade, e que eram visados e vigiados o tempo inteiro pela polícia, mas que não chegaram a sofrer nenhuma violência física.
Esse preconceito, como podemos observar em escritos de diversos autores, é uma proposição geral, e percebida ainda nos dias de hoje. Uma questão que os depoentes chamam a atenção e enfatizam é o fato de existir uma diferenciação entre os próprios moradores. Neste caso não se tratava somente da diferenciação racial, mas também de um preconceito cultural, já que o samba não era bem visto para muitos no Morro.
Seu Aroldo evidencia essa postura em sua fala a respeito do conhecimento da existência, nos anos da década de 1950, da Escola de Samba Unidos da Piedade, por parte da sociedade de Vitória:

[...] não é só o pessoal da elite não. No pessoal das nossas comunidades tinha muita gente que também não conhecia, já passaram a saber depois que ela foi formada, aliás, mais depois do Amarra o Burro. Na fase do Amarra o Burro, já era samba. Nós fomos discriminados por muita gente aqui do morro [preferiu não continuar falando, para não gravar]. Mas a gente aqui no morro, a escola de samba no começo era discriminada à beça. Muitas pessoas chamavam nossas pastoras de prostitutas, só por que eram domésticas. Porque antigamente, empregada doméstica podia ter muito mais valor do que qualquer uma madame de hoje, mas era tratada assim, motorista de fogão, mas eram pessoas decentes. Até nós homens mesmo eles tratavam de vagabundo.

Na verdade, ele mesmo aponta o distanciamento entre as entidades carnavalescas que se encontravam nos Morros da Fonte Grande e Piedade:

Nós passamos a ter quase no mesmo reduto três entidades: duas batucadas e uma escola de samba, que nenhuma delas se juntavam. As três viviam uma vida separada, cada uma com a suas coisas. Até o próprio pessoal não se misturava, por que a escola de samba já aqui, com nossa sede aqui, nosso barraco aqui, ela se mantinha com pessoas mais aqui de baixo, mais pessoas não sociais, com empregadas domésticas, mas naquela época eram pessoas muito decente, pessoas de muito carinho com a gente, pessoas de muito respeito. Hoje é diferente né? A gente fazia tudo com elas. E já o pessoal das duas batucadas aqui, já era mais o pessoal da comunidade, mas que não se misturavam não. Era cada um para o seu canto.

Neste depoimento apontamos um costume comum na época: a participação de mulheres no desfile da Escola de samba. E seu Nazaré vai reforçar este assunto:

Aqui no Morro não tirava as meninas daqui do Morro, nem Chapéu do Lado [...] E as meninas que desfilava com nós, naquela época um preconceito danado, chamava “graxeira”. As meninas que desfilava naquele tempo.

Perguntando quem eram as “graxeiras”, seu Nazaré responde que constituíam nas mulheres que trabalhavam como empregadas domésticas nas casas das “madames”, e sofriam preconceito por serem as únicas mulheres que tinham vontade e coragem de participar dos desfiles dos blocos e Escolas de samba; um mundo, na época, dominado pelos homens.
Podemos dizer que tais características são fruto da condição sócio-econômica em que se encontravam os habitantes do Morro, já que a maioria vivia de “bicos”, ou seja, profissionais autônomos sem emprego fixo, como pintores, pedreiros, costureiras, etc. Fora estes, o que restava era uma minoria que conseguira se instalar como estivadores (devido à proximidade do Porto de Vitória) e servidores públicos. É interessante destacar que estas características são semelhantes às dos morros do Rio de Janeiro, e que, de certo modo, contribuirão para a construção da identidade cultural do Morro da Fonte Grande, o que veremos mais adiante.

2.2 As Batucadas e Blocos

Segundo fomos informados a famosa batucada Chapéu do Lado, sediada nos pícaros [sic] do morro da Fonte Grande, está em grande forma para se apresentar na sensacional Batalha dos Lords do próximo sábado, na Praça Oito. Reina grande animação entre os “chapeleiros” para se apresentarem ao público da cidade, a fim de que possam, confirmando “performances” anteriores, comprovar que de fato, eles são os tais.[16]

Para compreendermos como se consolidou a tradição do samba no Morro da Fonte Grande, iniciaremos a análise dos carnavais a partir da década de 1930, período que começam a desfilar nas ruas de Vitória as primeiras Batucadas. Mas o que as batucadas têm a ver com o samba?
Roberto Moura (2004) propõe que o conjunto de sentimentos e vivências exercidos principalmente no decorrer de uma roda de samba faz do samba uma forma de expressão que extrapola os limites musicais, e que mesmo se pensarmos o samba dentro destes limites, ele pode e deve ser inscrito para além do especificamente musical, na categoria mais abrangente do evento múltiplo[17]. O samba será visto neste estudo como um movimento, uma manifestação cultural comunitária, onde não se destaca uma figura principal, mas sim o Morro como protagonista deste evento. Sendo assim, um dos grandes expoentes desse momento foi Nestor Lima, músico, compositor, carnavalesco e fundador de uma das primeiras batucadas da cidade de Vitória, A Mocidade da Fonte Grande. Segundo o próprio Nestor, a denominação “batucada” foi utilizada pela primeira vez no Espírito Santo para designar grupos de foliões e músicos que saíam às ruas no carnaval, ao contrário de outras regiões, onde se chamavam blocos, ranchos, escolas de samba, etc[18].
Nestor Lima, nessa época, trabalhava nos correios e também como cantor da Rádio Espírito Santo, cantando sambas do Rio de Janeiro e suas próprias composições. Foi também o primeiro violonista a fazer parte de uma orquestra no estado, integrando o grupo do trompetista Mundico, no Clube Álvares Cabral, entre 1946 e 1948[19]. Na sede da Batucada Mocidade da Fonte Grande, com sua família eram os anfitriões das festas do Morro, onde “batia samba” e comia-se feijoada (depoimento de dona Anjinha). Os freqüentadores dessas “rodas” eram, na maioria, os próprios moradores do Morro, mas em entrevista com dona Anjinha, revela-me que “muita gente rica lá de baixo vinha para a sede [da Batucada]”.

O Nestor Lima era cantor e chefe da Mocidade [da Fonte Grande]. Tocava banjo e violão. Tinha até cavaquinho! Batucada era forte, cavaquinho, violão, era bom [...] (seu Nazaré)
Nestor Lima era negro. A família toda cantava. Tinha um conjunto de samba só de irmãos. (dona Anjinha)

Osmar Silva, em seu livro Música Popular Capixaba destaca que entre 1932 e 1934 surge, na Fonte Grande a primeira Batucada de Vitória, a Chapéu Do Lado. As batucadas Mocidade da Fonte Grande e Chapéu do Lado eram concorrentes rivais no carnaval, e foram fundadas praticamente no mesmo lugar, já que seus “barracos” eram próximos, e se encontravam justamente entre os morros da Fonte Grande e Piedade.
Em entrevista a Osmar Silva, em 1977, já com seus 58 anos, Nestor Lima destaca a organização das Batucadas, que eram compostas de uma estrutura que mais adiante influenciaria as Escolas de Samba:

Quando eu tinha pouco mais de vinte anos fui convidado por alguns primos para fazer parte dela [Chapéu do Lado], mas acabei me juntando a um grupo para formar a Mocidade da Fonte Grande da qual fui o primeiro presidente, que surgiu para competir com a Chapéu do Lado. Entre as pessoas que ajudaram a formar a Mocidade posso citar Heliodoro Ribeiro e Francisco Martins, que tocavam banjo, Flório Fernandes e Milton Lima, o último meu irmão já falecido, ambos violonistas, Asdrúbal Nunes, que era porta-voz do grupo, o equivalente em nossos dias às funções de puxador de Escolas, e Olimpio Nascimento, o coordenador, também já falecido.[20]

Desde o início, as Batucadas desfilavam acompanhadas dos instrumentos de percussão, como também de alguns instrumentos de cordas, como violão e cavaquinho. E outra característica era em relação ao ritmo, como comenta seu Nazaré, fazendo um paralelo com a Escola de Samba:

Naquele tempo, nas Batucadas, aí tava assim: violão, um tamborim, umas tinha caixa. Depois, nas Escolas de Samba, aí era tamborim, surdo, uns negócio todo assim. E era mais... um ritmo mais quente. E as Batucadas só toca assim, marcha, pouco samba, e já o ritmo da Escola de Samba era muito diferente. Ih! Muito diferente mesmo.

Como a maioria dos participantes não tinha dinheiro para comprar seus instrumentos, fabricavam artesanalmente, como seu Aroldo e seu Aloisio destacam, respectivamente:

As batucadas também usavam. Mas os instrumentos das batucadas, como o nosso também, a gente usava barrica. Essas de vinho. A gente montava tudo ali, botava o couro na boca e fazia o surdo né, daquilo. Pra afinar tinha que ser no fogo.
Era barrica de mate, dessas barricas de coisa e tamborim a gente fazia de madeira, encaixava um no outro, pandeiro também. Enfim, quase não tinha daqueles que nós compra agora [...]

Uma grande diferença entre as Batucadas para as então recentes Escolas de Samba será em relação à música cantada no decorrer dos desfiles. Ao contrário das Escolas que no início desfilavam ao som de sambas oriundos do Rio de Janeiro, as Batucadas possuíam seus próprios enredos, cantados por todos os integrantes devido à falta de recursos na época:

Eles tinha suas músicas, tinha quase igual um enredo. Tinha as marchas deles mesmo. (seu Nazaré)
A Batucada era todo mundo em fila e antigamente não tinha esses negócios de a música cantada no microfone, era no gogó. Saía daqui cantando e voltava cantando. (seu Edson)

Em 1938, o jornal “A Tribuna” vai organizar o primeiro concurso de Batucadas, tendo como juiz o primeiro Rei Momo de Vitória, conhecido como Chico Muzulo[21]. Entre as décadas de 1930 e 1950 ocorrerão concursos ligados às Batucadas, como a Batalha dos Lords e a taça João Capuchinho. Estas competições serão destaques da coluna social e carnavalesca do jornal “A Gazeta”, também patrocinador do evento.

[...] Lord Pagé, “o maior”, já selecionou os “elementos” convocados para formar o “escrete” encarregado de julgar e premiar os foliões e demais conjuntos carnavalescos que participarem da BATALHA DOS LORDS de amanhã, a partir das 20 horas até o sol raiar, na Praça Oito de Setembro, sob o patrocínio de “A Gazeta” e alta colaboração do comércio da cidade.
A referida comissão, integrada dos mais representativos da nossa terra, está assim constituída:
Prefeito Álvaro de Castro Mattos, DD. Prefeito Municipal de Vitória; Cel. Anísio Ferreira de Souza, DD. Chefe de Polícia da Capital; Sr. Francisco Garcia de Araújo, DD. Gerente de “A Gazeta”; Sr. Edgard Rocha, abastado e próspero comerciante nesta capital; Sr. José Luiz Holmeister, DD. Redator Secretário de “A Tribuna” e Sr. Antenor de Carvalho, DD. Presidente da UESEC.[22]

Figura responsável por tais acontecimentos, Hermógenes de Lima da Fonseca, mais conhecido no meio carnavalesco como Lord Fonseca, foi o criador da União das Batucadas do Espírito Santo, a UBES. Osmar Silva aponta-o como primitivista, valorizando as manifestações das culturas populares[23], contudo é visto pelos criadores da Unidos da Piedade como grande incentivador da fundação desta Escola no município de Vitória. Contador, nascido no dia 12 de dezembro de 1916, em Conceição da Barra, Espírito Santo, Hermógenes foi vereador na Câmara Municipal de Vitória, diretor do jornal “Fôlha Capixaba”, colaborador dos jornais “A Gazeta” e “A Tribuna” e membro do Centro Capixaba de Folclore e da Comissão Espírito-santense de Folclore (ES - Nossa Gente. Fundo Editorial do Espírito Santo, Vitória, 1969.). Ou seja, importante divulgador do movimento carnavalesco no momento de inserção da Escola de Samba Unidos da Piedade no cenário cultural do Espírito Santo.
No decorrer da década de 1950, com o surgimento das primeiras Escolas de Samba, as Batucadas começam a se desfazer, extinguindo-se por vez ainda nessa mesma época.

2.3. A Unidos da Piedade

Para dar início a esta parte da história foi destacado um trecho da entrevista realizada com seu Aroldo, onde se encontram elementos que serão de grande importância para analisarmos o discurso de tradição ligado à possível idealização do Morro da Fonte Grande como a região que deu origem o samba capixaba.

Seu Aroldo:
Então em 52, nós tínhamos muitas festas. Nós tínhamos congo, quadrilha junina depois em agosto também. Na época a nossa comunidade era mais chegada, há um egoísmo entre essas três comunidades Fonte Grande, Piedade e Moscoso que houve uma separação. Mas nessa época [1952], a gente se juntava como se fosse uma coisa só.
O que acontece: chegou um primo meu do Rio, Zé Purê, um cara carioca, acostumado a andar com aqueles blocos lá, Boca da Onça, sei lá o quê. Ele veio passar uma temporada aqui, e participava de todos os eventos com a gente. O samba aqui não existia. Até carnavais de rua eram marchinhas, muito confete, serpentina, lança-perfumes.

Entrevistador: Era em clube?

Seu Aroldo: Era em clube, mas aqui na Costa Pereira também tinha. Aqui tinha o Clube Vitória, ali perto do Cinema, que depois passou para o parque Moscoso; tinha os taquara na Vila Rubin. Era só marcha. Algumas músicas de samba se cantavam, mas vindo do Rio, mais em clube.
Esse primo meu Zé Purê veio do Rio, todo cheio de jogada, carioca, aquele cara muito saliente, e falou “ah, vamos montar um bloco por que o pessoal tem que fazer samba. Foi aí que nós montamos o “Amarra o Burro”, mas foi muito antes da escola de samba. Eu acho que já era por volta de 53. Era só samba, mais samba do Rio.

Entrevistador: Se cantava samba do Rio?

Seu Aroldo: Do Rio. Aí o samba começou a aparecer mais através desse bloco, o Amarra o Burro, que existe ainda hoje.
O bloco foi crescendo, crescendo, crescendo, a gente ia pra Vila Velha. Pegava a lancha ali em Paul, pegava o ônibus, o bonde lá do outro lado, ia pra Festa da Penha, depois voltava e ia lá pra Santo Antônio, a gente rodava isso aqui tudo.
O bloco foi crescendo, quando foi no final de 54 o mesmo Zé Purê: “Por que não fundar uma escola de samba? Pois o bloco já está grande, já tem pessoas que dá pra montar uma escola”. Aí foi aonde que se deu o nome de Escola de Samba Unidos da Piedade. Porquê? Tudo o que acontecia se concentrava na comunidade da Piedade, mesmo com o envolvimento das duas comunidades Moscoso e Fonte Grande.
Aí fundamos a Escola, [...] aí a escola foi registrada no dia 15 de abril de 1955.

Entrevistador: Tem no registro assinado e tudo da existência da escola?

Seu Aroldo: Tem.
Nós não tínhamos comissão julgadora, jurados, não tinha outra escola de samba para competir, e nosso primeiro desfile foi no Estádio Governador Bley, lá no gramado com em média 170, 200 pessoas.

Entrevistador: Em 55?

Seu Aroldo: É! Isso! Em 55. Mas só que, o samba, escola de samba nessa época era discriminado, por que não havia, não existia. Então o pessoal taxava até de prostituição, malandragem. Foi aí que apareceu o Rominho, um cara trabalhador, inteligente, esperto. Ele não participava de todo o movimento com a gente, mas por que pegamos ele como presidente? Por que ele era inteligente, vivia num meio social bom. Ele foi o primeiro presidente da Escola. A primeira sede nossa foi aqui no posto, aqui na Fonte Grande. Porquê? Não foi por falta de espaço na Piedade não, onde ela nasceu, foi por que convivia com a gente o “Lopinho”. O “Lopinho” vivia com a gente em todas as situações e falou: “olha eu tenho um terreno desocupado, pode se montar a sede lá. Eu não vou dar o local para a escola, mas enquanto a escola viver, eu não vou mexer com aquilo”. Aí nós fizemos um barracão, um barracão grande que eu acho que na época era de palha. Aí depois as coisas foram mudando, foram aparecendo outras escolas de samba através da Piedade. Apareceu a Novo Império, e eu tenho dúvida se a Novo Império é a segunda escola ou a Acadêmicos do Moscoso, acho que as duas vieram ao mesmo tempo.
[...] Em 57 nós já tínhamos e passamos a ter o nosso samba enredo. Era só cantado samba do Rio, mesmo já como escola de samba era cantado escola de samba do Rio. Em 57, nós já tínhamos nosso samba pronto e até alegoria, por que já havia uma competição. A Piedade com mais duas escolas de samba, Acadêmicos do Moscoso e a Novo Império. Aí nós desfilamos no Estádio Governador Bley, nós desfilamos na Beira-Mar, nós desfilamos umas três vezes na Jerônimo Monteiro ali perto do Hotel [...].

Entrevistador: Nessa época, você falou que nasceu em 43, na fundação da escola de samba você então tinha 12 anos?

Seu Aroldo: Era isso mesmo. É por que, quando o Zé Purê chegou para movimentar essa história de samba aqui, a minha mãe tinha um boteco lá em cima, onde hoje é a creche. Aí ela pegou uma parte do barraco para a gente montar um boteco, Nesse boteco que começou aparecer o samba. Cachacinha, às vezes um churrasquinho, às vezes um gatinho.

Entrevistador: Então, o senhor não participava das batucadas?

Seu Aroldo: Não. Eu assistia. Principalmente por que na época em que fundou o samba eu tinha pouca idade e eu já me criei dentro dele. Eu podia até antes de ter escola de samba, eu até que saía para ver os desfiles das batucadas, mas não vivia dentro delas não. Era muito menino e não vivia dentro dela não.
Por que eu me envolvi com o samba? Por que quando Zé Purê veio aqui e minha mãe cedeu uma parte do barraco, e ele fez o boteco, eu passei a ser caixeiro dele. Quando eles traziam a pele de boi lá do matadouro eu tinha que limpar, pra fazer as barricas [de mate] pra poder fazer os instrumentos. Tinha que botar a pele no cal pra poder amolecer o pêlo para depois passar a gilete, para poder limpar. Eu tinha que fazer isso tudo, tinha que fazer os chocalhos, pegar madeira, botar prego e depois as chapinhas do lado da madeira pra poder fazer o movimento. Tudo isso a gente fazia [...].

O primeiro elemento importante para abrir esta discussão será a origem, ou melhor, a chegada do samba no Morro, pois como aponta seu Aroldo, ele não foi criado, mas sim trazido do Rio de Janeiro para esta localidade. Ainda destaca que através de seu primo, o Zé Purê[24], que por muito tempo esteve morando no Rio, que o samba começa a ser divulgado no Morro.
Alguns entrevistados apóiam essa hipótese e o colocam como o criador do bloco “Amarra o Burro”, e que deste partiu para a fundação da Escola de Samba Unidos da Piedade.
Um fator importante é que alguns dos principais fundadores da Escola tiveram um breve contato com o Rio de Janeiro, como foi o caso do seu Aloísio:

Fui servir o exército no Rio e lá eu vim conhecer o samba, ai fiquei gostando, depois vim aqui pra Vitória, os colega também já tinham um pouquinho de conhecimento, nos animamos, ai formamos a primeira escola, a Unidos da Piedade.

Outro personagem importante – pelo menos para os depoentes – foi Rominho[25], que pelo seu conhecimento sobre o carnaval carioca e por se tratar de uma pessoa que convivia, através do trabalho, com outros segmentos da sociedade, ao contrário dos outros fundadores, e tornou-se o primeiro presidente da Escola:

[...] O Rominho, o finado Rominho, ele não era o mais inteligente, mas era muito organizado. Então ele teve no Rio, quando voltou do Rio, ele falou: “Vamos montar uma Escola de Samba?”. Aí juntou eu, Nazaré, Aloísio e outros mais que já se foram [..] Rominho sempre muito caprichoso, muito organizado e nós obedecia a ele. (seu Edson)


Pelos depoimentos podemos perceber que, com exceção do Rominho, nenhum dos outros fundadores teve um contato mais formal acerca da organização e estruturação de uma Escola de Samba. Rominho, então, serviu de porta-voz da Unidos da Piedade, trabalhando diretamente com pessoas do meio político e comercial da cidade, e como músico nas noites de Vitória:

Rominho foi quem incentivou a gente a se filiar a UBES [União das Batucadas e Escolas de Samba]. Ele arrumou com o [então vereador] Hermógenes e isto com a gente e criou as Escolas de Samba aqui de Vitória. E ele viu a gente formava, por exemplo, no Carnaval, com o [bloco] Amarra o Burro. Ele viu nossa organização, tudo direitinho, aí convidou a gente para saber se a gente queria se filiar a UBES. Aí a gente ficou meio assim, mas também não tinha conhecimento nada disso, ficou empurrando um para cima do outro, aí por causa desse fim que a gente decidiu, né? Aí ele levou, levou à frente e estamos até hoje, na luta. (seu Aloísio)
Ele tocava pandeiro no conjunto de Hélio Mendes. O Rominho, o primeiro presidente nosso. Daí começou a organizar tudo. Ele muito esforçado e foi aproveitando umas pessoas que estava por ali. (seu Nazaré)

Em 1955, data da fundação da Escola de Samba Unidos da Piedade, ainda não existia competição, pois permaneceu como a única Escola a desfilar pelas ruas de Vitória naquele ano. Já nos anos posteriores, com o surgimento de outras Escolas, é que começa a competição, que de início ocorria no Estádio Governador Bley. Até este momento, entre 1955 e 1957, os sambas cantados e tocados pela Escola vinham do Rio de Janeiro. O primeiro compositor a escrever o enredo da Escola será Mário Ramos, conhecido como Mário Reboco:

O primeiro compositor da Piedade, e que o samba saiu da origem foi Mário Ramos [...] Foi também o primeiro a fazer um enredo de Escola. (seu Edson)

Naquela época não existia patrocínio por parte de órgãos públicos ou privados. Por isto, a única forma de conseguir dinheiro para a compra dos panos para as fantasias e instrumentos partia dos moradores ou por arrecadação de fundos feita por parte dos comerciantes do centro da cidade, conhecida como “Livro de Ouro”:

[...] como sempre temos observado, os conjuntos carnavalescos, para saírem à rua, lutam com as maiores dificuldades, pois ninguém ignora que são eles constituídos de gente pobre e que, labutando de sol a sol, durante todo o ano, consegue acumular alguns magros cruzeirinhos para a confecção de uma fantasia, ou para a compra de confete e de um “mirado” lança-perfume de vidro. E para que os referidos conjuntos possam sair à rua durante o período carnavalesco, os “maiorais” organizam então o seu chamado LIVRO DE OURO, buscando auxílio daqueles que admiram o Carnaval e que desejam conhecer como é que se dança e se canta o samba gostoso e quente dos morros e das vilas. Os do “contra”, aqueles que só se sentem bem metidos num “big smoking”, sorrindo, nos clubes, doses e mais doses de uísque, soltando para cima dos “brotinhos” a suas piadas ou fazendo cordão durante 15 minutos (sim, pois um tempo maior será difícil), taxam de vagabundos ou gente que não tem outra coisa a fazer, senão pensar em Carnaval, os condutores dos “Livros de Ouro”.[26]

No depoimento, seu Aloísio aponta que foram em número de vinte os fundadores da Escola de Samba Unidos da Piedade. Contudo há controvérsias entre os depoentes sobre essa questão, o que não fica muito claro devido à falta de documentos como registro em cartório que comprove esta análise. O fato é que, mesmo não existindo assinaturas registradas de todos os fundadores, há alguns nomes que são destacados por unanimidade pelos próprios depoentes: Mário Ramos, Rominho, Aloísio Parú, Nazaré, Edson Monteiro, Tião e Walter Espingarda.
É difícil apontar a gênese do samba, sua “raiz”, assim como de qualquer movimento cultural popular. Mas podemos apontar dentro dessas manifestações, a partir dos acontecimentos históricos, a consolidação de uma tradição, de um momento especial para aqueles que a mantêm, e que mesmo passadas algumas gerações, sofridas algumas mudanças, continua presente não só na memória coletiva de uma comunidade, mas influenciando até mesmo aqueles que não fazem parte diretamente dessa história.
Para terminar, coloco um trecho do depoimento de Carlos Augusto Vieira, o Lajota. Músico da Velha Guarda do Samba do Espírito Santo, criado na Gurijica, podemos notar a influência do Morro da Fonte Grande, da Escola de Samba Unidos da Piedade, por fim, do samba:

Entrevistador - Você via uma comunidade sambista aqui no Espírito Santo, uma referência?

Lajota - A referência era a grande Piedade. Hoje nós poderíamos considerar, apesar de não ser uma escola que está no topo, mas é uma escola que é ainda uma referência, é um patrimônio do samba, por que quem está ali não caiu de pára-quedas. Ali é raiz, é essência. A Piedade é a própria essência do nosso samba. Infelizmente depois que o visual virou quesito, obviamente eles ficaram para trás, até por que se tratando de um local sem espaço para se fazer. Não pensaram na frente, no futuro enquanto outras caminharam.

Entrevistador - Vocês viam na época na Fonte Grande um reduto do samba?

Lajota - Nós sempre vimos, não só na época. Grande reduto. Apesar da gente morar muito distante, a gente via os caras que eram envolvidos com o samba, eles tinha a postura de um carioca, os caras eram malandros. Era a grande influência. O que existia em Santa Lúcia, aquilo que você vê hoje na escola de Jucutuquara. Se você hoje entra numa quadra de uma escola de samba como Jucutuquara, você não visualiza caracteres de samba. Você vê outra coisa, meninos marombados que vão ali com outro objetivo. A coqueluche está acontecendo, mas não é um reduto simplesmente samba. Não é e nunca foi. Hoje as coisas acontecem por lá, por que obviamente tá ali, tem mulheres bonitas e tal.


3. Conclusão


Dentro da lógica de discussões apresentadas anteriormente, chegamos à conclusão de que o processo de consolidação da tradição do samba no Morro da Fonte Grande está inteiramente ligada às manifestações do carnaval no contexto de transição das festas de rua e bailes em clubes embalados pelas marchinhas e maxixes para a constituição da instituição de Escolas de Samba, tal como ocorreu com a Escola de Samba Unidos da Piedade.
Os acontecimentos históricos demonstram que o carnaval sempre esteve presente no cotidiano da população brasileira desde os remotos tempos coloniais e com o desenrolar das épocas suas características vão assumindo cores distintas e peculiares a cada momento. O samba é fruto dessas mudanças que a música popular e os festejos carnavalescos sofreram durante a história do Brasil.
O resultado das transformações culturais que podem ser apontadas como geradoras do samba, como gênero musical, pode ser percebido nas mais diversas regiões do país, assumindo traços característicos da localidade em que se desenvolveu. No Espírito Santo apontamos a influência que o Rio de Janeiro exerceu no carnaval capixaba, através da inserção dos sambas cariocas nos bailes, blocos e batucadas, e até o início das atividades da Escola de Samba Unidos da Piedade. Trazidos não apenas por indivíduos em suas viagens, mas também, e principalmente, pela disseminação dos programas de rádio, que executavam muitas composições da época.
Outra proposição interessante elucidada nos depoimentos versa a respeito da formação de uma comissão propulsora de movimentos carnavalescos na cidade de Vitória constituída quase em sua totalidade por pessoas nascidas em terras capixabas, apenas poucos representantes cariocas são apontados pelos entrevistados. Percebe-se então, que o gênero, apesar de vindo do Rio de Janeiro, encontrou no Espírito Santo uma roupagem particular dada pelos moradores do morro da Fonte Grande, que viajavam para comprar utensílios - tecidos para feitura de fantasias, instrumentos, e outros - para o carnaval e lá entravam em contato com o movimento desenvolvido nessa época, trazendo novas idéias para as festas realizadas em Vitória.
Algumas notícias de jornal utilizadas demonstram a maneira como a imprensa esteve ligada aos festejos e comemorações sociais, e nesses discursos é possível perceber a valorização dos blocos de rua, principalmente oriundos de regiões periféricas da cidade, o que inclui a Escola de Samba Unidos da Piedade na data de sua fundação e de suas primeiras atividades. Isso favoreceu a divulgação desses acontecimentos e permitiu que barreiras sócio-econômicas fossem amenizadas, fazendo com que o carnaval e o samba, considerados manifestações marginais, fossem pouco a pouco inseridos na mentalidade coletiva, construindo uma identificação, consolidada nos dias de hoje.
O processo de aceitação e integração do samba como movimento popular por toda a sociedade, e sendo a Escola de Samba Unidos da Piedade e seus integrantes fundadores os pioneiros na inclusão desse gênero nas festas da capital, e ainda tendo sido reconhecido esse fato, pode-se concluir que a tradição do samba na cidade de Vitória esteve intimamente ligada aos trabalhos realizados por essa agremiação e sua comunidade.

6. Referências Bibliográficas

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro, Rocco, 1996.
ES - Nossa Gente. Fundo Editorial do Espírito Santo, Vitória, 1969.
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LEOPOLDI, José Sávio. Escola de samba: ritual e sociedade. Petrópolis, Vozes, 1978.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
MOURA, Roberto M. No princípio era a roda:um estudo sobre samba, partido alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música:História cultural da música popular. (Coleção História &... Reflexões, 2). Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
SILVA, Osmar. Música popular capixaba: 1900-1980. Vitória: DEC/SEDU, 1986.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo, Ed. 34, 1998.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar / Ed. UFRJ, 1995.

* Este trabalho foi desenvolvido dentro do Programa de Iniciação Científica 2007/2008, com orientação da Professora Doutora Viviana Mónica Vermes, docente da Universidade Federal do Espírito Santo.
** Aluno da faculdade de Música – Licenciatura, da Universidade Federal do Espírito Santo.


[1] DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1996.
[2] DA MATTA, 1996, p. 26.
[3] DA MATTA, 1996, p. 76-77.
[4] TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo, ED. 34, 1998, p. 207.
[5] NAPOLITANO, Marcos. História e música: história cultural da música popular. Belo Horizonte, Coleção História & reflexões, vol. 2. Autêntica, 2002, p. 49.
[6] MOURA, Roberto M.. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido alto e outros pagodes. Rio de Janeiro, Rocco, 2004, p. 51.
[7] SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque aos tempos de Vargas. Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 19.
[8] SOIHET, 1998, p. 41.
[9] SOIHET, 1998, p. 48.
[10] VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Zahar/Ed. UFRJ, 1995, p. 63.
[11] SOIHET, 1998, p. 64; TINHORÃO, 1998, p. 219.
[12] GONÇALVES, Anselmo. Carnaval Cem anos, Vitória, ES: 1885-1985. Vitória, Secretaria de Estado e do Comércio, 1985.
[13] GONÇALVES, 1985, p. 19.
[14] GONÇALVES, 1985, p. 23.
[15] GONÇALVES, 1985, p. 29.
[16] Jornal “A Gazeta”, 22 de janeiro de 1950.
[17] MOURA, 2004, p. 68.
[18] SILVA, Osmar. Música popular capixaba: 1900-1980. Vitória, DEC/SEDU, 1986, p. 47.
[19] SILVA, 1986, p. 48.
[20] SILVA, 1986, p. 47.
[21] SILVA, 1986, p. 47.
[22] Jornal “A Gazeta”, 27 de janeiro de 1950.
[23] SILVA, 1986, p. 52.
[24] Como não foi possível obter o nome, será conhecido nessa pesquisa por apenas Zé Purê.
[25] Como o Zé Purê, não foi possível encontrar o nome de Rominho, que segue na pesquisa assim designado.
[26] Jornal “A Gazeta”, 13 de janeiro de 1950.