Revista eletrônica de musicologia
Volume XII - Março de 2009
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Joaquina Lapinha, atriz. Da sua participação na cena lírico-dramática luso-brasileira*
Alexandra van Leeuwe
(UNICAMP)
Edmundo Hora
(UNICAMP)
Resumo
Como resultado parcial de uma pesquisa sobre a cantora Joaquina Lapinha, na presente comunicação, propomo-nos a identificar os aspectos mais específicos de sua atuação como atriz. Desta forma, apresentamos os resultados obtidos de acordo com recente investigação realizada em diversos arquivos portugueses. Tais dados nos permitem acrescentar novas informações com relação ao cenário artístico luso-brasileiro, possibilitando ainda a correção de eventuais discordâncias.
Introdução
Em recentes investigações sobre a brasileira Joaquina Maria da Conceição Lapa – a Joaquina Lapinha –, consultamos diversos arquivos portugueses, que nos levaram a identificar novas informações com relação à sua participação também como atriz. Mais reconhecida no cenário artístico luso-brasileiro, entre fins do século XVIII e início do XIX, como cantora, Lapinha protagonizou ainda relevantes trabalhos na área teatral. A fim de identificar outros aspectos referentes a essa atuação no teatro, tanto no Brasil quanto em Portugal, recorremos, inicialmente, às fontes secundárias ou ainda a relatos de viajantes – que, em nosso caso, referem-se ao relato do viajante sueco Carl Israel Ruders (1761-1837) – e, a partir destes, procuramos localizar as fontes primárias. Assim, em nosso texto, apresentamos os resultados iniciais obtidos acerca deste assunto, destacando o material consultado nos seguintes arquivos: Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), Biblioteca Nacional da Ajuda (Lisboa), Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (Lisboa), Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa (Vila Viçosa) e Coleção Dr. Jorge de Faria (Coimbra).
A atriz no cenário luso-brasileiro.
Sobre a participação de Lapinha em um elenco português, Ruders [1] relata:
A terceira actriz chama-se Joaquina Lapinha. É natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente porém remedeia-se com cosméticos. Fora disso tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático (RUDERS, [1800] 2002, v. 1, p. 93-4).
Ao realizar uma descrição das atividades no Real Teatro de São Carlos, por volta de 1800, [2] o viajante transcreve, em um primeiro momento, a situação anterior, na qual os castrati dominavam a cena lírica, dentre os quais ele destaca a presença do sopranista Girolamo Crescentini (1766-1846). E, posteriormente, o autor se refere à introdução da participação feminina aos espetáculos no São Carlos. Segundo ele: “Três actrizes, umas após outras, obtiveram licença de Sua Alteza Real para se exibirem no Teatro Italiano, o que, visivelmente, contribuiu para a fortuna dele” (RUDERS, 2002, v. 1, p. 88). Ainda sobre essas três atrizes e uma dançarina, Ruders (2002, v. 1, p. 92) afirma que foram contratadas por seis meses, mediante autorização do príncipe regente. É interessante notar que, somente com relação à Lapinha, o viajante apresenta um comentário elogioso tanto no que diz respeito ao canto quanto à representação. Mariana Albani, por sua vez, é descrita como uma atriz e cantora “bastante medíocre” (p. 92), enquanto Luísa Gerbini (ca. 1770-?), uma virtuose da rabeca, seria uma “boa e segura cantora”, mas como atriz conduziria a ação com “frieza e falta de vida” (p. 93). Até o presente momento – mesmo de conhecimento geral, que existisse uma proibição de D. Maria I à participação das mulheres nos espetáculos públicos em Portugal –, não foi possível identificar nenhum documento que permitisse indicar a data de tal proibição, nem tampouco com relação à revogação da mesma. [3] No Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo foram realizadas outras investigações, em busca de mais informações acerca das prováveis autorizações emitidas em favor das atrizes para que pudessem atuar. [4] Sabendo que Joaquina Lapinha realizara um concerto no São Carlos, em 1795, anterior à sua presença no elenco deste mesmo teatro, por volta de 1800, buscamos identificar uma suposta permissão, entretanto, nenhum documento mais específico a esse respeito foi localizado. Desta forma, o relato de Ruders é ainda o único no qual identificamos uma menção à atuação de Lapinha como atriz em terras lusitanas. Porém, outras referências já estão relacionadas à sua participação no cenário dramático brasileiro. Outrossim, destacamos que tivemos acesso a documentos que possibilitam, ao menos, situar o período em que a cantora brasileira permaneceu em Portugal, confirmando assim a sua participação no elenco português a despeito de não termos identificado outra documentação diretamente relacionada ao teatro. Assim, por meio de pedidos para que fosse emitido licença ou passaporte necessário para o trânsito entre Brasil e Portugal, podemos inferir que Lapinha esteve, neste último, entre os anos de 1791 e 1805. Estes documentos, [5] presentes no Arquivo Ultramarino, em Lisboa, são os seguintes:
- Ofício do Secretario de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao Vice-Rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luis de Castro, comunicando que fora concedida a licença solicitada por Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria da Conceição [Lapinha] para irem ao Reino. 1791, Maio, 16.
- Oficio de Tomé Barbosa a José Manoel Plácido de Moraes, solicitando Passaporte para o Rio de Janeiro para Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria Lapinha duas libertas Eva e Inacia. [6 de agosto de 1805] [6]
Tais documentos, além de esclarecerem a questão das datas, apresentam outros dados significativos, como: o nome da mãe de Joaquina Lapa, Maria da Lapa; o fato de quê esta a acompanhou durante o período em que esteve em Portugal; e, ainda, a presença de duas escravas libertas em seu retorno. Esta última informação nos permite admitir que Lapinha e sua mãe desfrutassem de uma condição econômica abastada. Como afirmamos anteriormente, referências mais específicas, quanto à atuação de Lapinha como atriz, estão relacionadas à sua participação no teatro carioca. Entretanto, a documentação primária existente só nos permite confirmar a sua presença no período posterior à sua volta de Portugal. Desta forma, tanto os libretos, que descreveremos a seguir, quanto as obras musicais executadas pela Lapinha, pertencentes ao acervo da Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa (Portugal), datam do início do século XIX; à exceção de um pastiche de Demofoonte , de autoria desconhecida, presente neste último arquivo e possivelmente executado na última década dos setecentos. Esta obra contém a indicação do nome da Snr. Joaquina em partes cavadas, e apresenta características de um material do final do século XVIII. [7] Dentre as fontes secundárias, encontramos referências à atuação de Lapinha no elenco criado “[...] pelo vice-rei Luís de Vasconcelos (1779-1790), sob a direção do tenente-coronel de Milícias, Antônio Nascentes Pinto” (SOUZA, 1960, p. 292). Outros autores, dentre os quais Ayres de Andrade (1967) e Cleofe P. de Mattos (1997), corroboram com esta informação e acrescentam a participação da cantora entre os artistas que integravam a companhia do Teatro de Manuel Luiz, como era conhecida a Ópera Nova, que, após a chegada da família real portuguesa em 1808, adquiriu o status de Teatro Régio. A. de Andrade nos fornece descrição mais detalhada relacionada à participação de Lapinha no teatro, já no Rio de Janeiro em 1811. Este autor destaca que:
[...] vamos encontrar Lapinha [...] como primeira atriz do Teatro Régio, de Manuel Luís. Seu grande sucesso era em Erícia ou A Vestal , tragédia de Dubois Fontenelle, traduzida do francês pelo poeta português Manuel de Barbosa du Bocage, diziam que expressamente para ela em 1805 (ANDRADE, 1967, v. 2, p. 185).
A partir desta citação, que nos fornece uma clara alusão a uma obra, procuramos obter informações mais específicas. Desta forma, quando tivemos a oportunidade de realizar uma consulta pessoal aos arquivos portugueses, identificamos a existência do libreto de Ericia , datado de 1811, presente na Coleção Jorge de Faria – que integra o acervo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal. [8]
(FIG. 1) Figura 1. Bocage. Ericia ou A Vestal . Frontispício.
Neste libreto encontramos a seguinte citação: “Para se representar no Beneficio de Joaquina Lapinha, primeira Actriz do Real Theatro do Rio de Janeiro”. Tal informação confirma uma parte do que afirmara Ayres de Andrade, mas não justifica a declaração de que o libreto tenha sido traduzido expressamente para a Lapinha. Ainda no mesmo acervo da Coleção Jorge de Faria, foi possível consultar a versão de 1805 – que se trata da primeira impressão da tradução realizada por Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) –, entretanto, não há qualquer referência à Lapinha nesta versão. Sendo assim, não podemos confirmar o que dissera Andrade. Por outro lado, lembramos que, de acordo com os documentos identificados anteriormente, a cantora permanecia em Portugal até o ano de 1805, o que, no entanto, não exclui a possibilidade de algum tipo de relação com o poeta.
Ericia : suas diferentes versões, a questão da autoria e a presença de Lapinha.
Em busca de maiores detalhes acerca de Ericia ou a Vestal , percebemos a existência de questões relativas às datas e ainda à autoria do libreto original, uma vez que o libreto a que nos referimos trata-se de uma tradução do francês realizada por Bocage. Anteriormente, esclarecemos a questão das datas ao identificar duas impressões do libreto: uma primeira versão impressa em Lisboa, em 1805, e a versão brasileira de 1811, que contém indicação sobre a participação de Lapinha. [9] No que diz respeito à autoria da obra original francesa, verificamos a sua atribuição a diferentes escritores. Em impressão posterior, de 1825, da tradução de Bocage, pela Imp. da Rua dos Fanqueiros, a tragédia é atribuída a Mr. d'Arnaud, ou seja, o poeta francês François Thomas Marie de Baculard d'Arnaud (1718-1805), entretanto, no Diccionario Bibliographico Portuguez (SILVA, 1862, tomo VI, p. 50) encontramos que esta informação não possui fundamento. Outro possível autor, como aparece indicado em Obras de Bocage (1968, p. 1940), seria o francês Mr. d'Anchet, que identificamos como Antoine d'Anchet (1671-1748). E, por fim, o já citado Dubois Fontenelle, que, corretamente, seria Joseph-Gaspard Dubois-Fontanelle (1727-1812). [10] Em consulta ao catálogo da Biblioteca Nacional da França, foi possível confirmar a autoria deste último poeta, uma vez que somente ele foi identificado como autor da obra intitulada: Ericie ou la Vestale, tragédie en trois actes et en vers... , ou seja, título original da tragédia Ericia ou a Vestal , posteriormente traduzida por Bocage. Da mesma obra, encontramos uma primeira publicação, datada de 1768 e impressa em Londres e Paris; outra impressão do ano seguinte; traduções de diferentes autores para o holandês, datadas de 1770; e ainda, uma versão revista e corrigida pelo próprio Fontanelle, de 1798. Sobre esta obra, Theophilo Braga afirma que:
Entre as traduções de Bocage encontra-se a tragedia intitulada Ericia ou a Vestal ; é uma d'essas obras medíocres da segunda metade do seculo XVIII, que generalisavam a revolução philosophica dos Encyclopedistas. Como tal é que deve ser comprehendida a intenção de Bocage. A Ericia ou a Vestal , escripta por Dubois-Fontanelle, litterato medíocre, era um protesto contra os conventos de mulheres, á sombra de um thema classico. [...] Era por 1763; Fontanelle apresentou á policia a sua tragédia; a policia ou Marin, farejou allusão aos conventos catholicos [...]. É claro que os parochos e os doutores opinaram pela interdicção da peça, de que resultou multiplicarem-se as copias manuscriptas da Ericia ou a Vestal , alcançando uma fama que o seu valor artistico lhe não dava. [...] Aqui está a obra que seduziu o genio do Bocage; vinha revestida do prestigio revolucionário, e em paiz de frades e freiras era na verdade um protesto, e um germen de revolta lançado nos espiritos (BRAGA, 1902, p. 423-4).
Não pretendemos nos delongar sobre os aspectos literários da obra. De qualquer forma, não podemos deixar de mencionar a relevância de Bocage como tradutor, pois, apesar de não se tratar de sua vertente mais reconhecida, este seu trabalho é significativo, incluindo traduções de textos clássicos latinos e obras francesas, caracterizadas “pelo rigor e pela originalidade” (PIRES apud PAIS, 2008, p. 1). Lembramos ainda que a obra relacionada apresenta um Prólogo escrito pelo autor. Segundo Carlos Castilho Pais (2008, p. 5): “O prólogo, [...], é a manifestação mais evidente da reivindicação da autoria da tradução. [...] faz-se acompanhar da referência aos atributos do escritor”. Ericia relata a história de uma jovem, que por imposição de seu pai deve se tornar uma Vestal, porém, ela se apaixona pelo jovem Afranio e, em um momento de paixão, permite que o fogo sagrado do templo de Vesta se apague. Ela é então condenada à morte por seu pai, o Grão Sacerdote, que preside o seu suplício. Desta maneira, percebemos que o papel-título, interpretado por Lapinha, apresenta uma forte carga dramática, que verificamos ser uma característica comum aos seus personagens. Esta é uma qualidade que agregamos à figura desta cantora e atriz, a qual, como afirmara Ruders (2002, p. 94), possuía “muito sentimento dramático”. Destacamos também que o fato desta obra se representar em benefício [11] da atriz, indica que toda a renda obtida com sua apresentação foi revertida para a artista. Cranmer [12] nos remete ainda ao fato de que “[...] era habitual o beneficiário escolher o repertório da sua noite de benefício”. Desta maneira, a própria Lapinha seria, possivelmente, responsável pela escolha de Ericia , um papel no qual ela poderia expor os seus dotes dramáticos.
Ulissea libertada: novas informações.
Outra referência à atuação de Joaquina Lapinha como atriz, encontramos no libreto Ulissea libertada , existente na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Este libreto corresponde à edição do Rio de Janeiro, de 1809 e contém a significativa informação de que a Lapinha foi responsável por dois papéis. Segundo a descrição dos atores, ela interpretou o papel declamado de Ulissea e o papel cantado de Genio de Portugal . No frontispício deste libreto, encontramos o seguinte: ULISSEA LIBERTADA: / DRAMA HEROICO / COMPOSTO / POR / MIGUEL ANTONIO DE BARROS / PARA SE REPRESENTAR NO REAL THEATRO DO RIO / DE JANEIRO EM O DIA DE S. JOAÕ 24 DE JUNHO / DE 1809 EM APPLAUSO AO NOME DE / S. A. R. / O / PRINCIPE REGENTE / NOSSO SENHOR. / [brasão real] / RIO DE JANEIRO. / 1809. / NA IMPRESSÃO REGIA. / Com Licença de S. A. R . Desta obra, já conhecíamos a sua participação como cantora, uma vez que, no arquivo de Vila Viçosa, anteriormente mencionado, encontramos a partitura autógrafa para o Drama Eroico homônimo, de autoria do Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Contudo, a novidade é a sua atuação também como atriz, e, assim como observamos em seus papéis como cantora, em um papel de destaque, no caso, o de protagonista. Segundo David Cranmer – que nos forneceu a transcrição do frontispício e da relação de personagens –, percebemos, pela observação do libreto, que há tempo suficiente para a troca de roupas de um personagem para outro. Já pela análise da parte musical (BERNARDES, 2002), composta pelo Pe. José Maurício, verificamos ser constituída por um coro inicial com solo do Gênio de Portugal, um recitado e uma ária também para este papel, entremeados por um Coro das Ninfas (cena 3) e, para encerrar, um Finale (com coro acompanhado a voz) . Assim, os outros papéis indicados , além daqueles que a Lapinha executou, seriam declamados, quais sejam: O Nume Tutelar d'Inglaterra , interpretado por Elias Anselmo; O Nume Tutelar de Hespanha , por Domingos Botelho; e a Discordia , por Rita Feliciana. No libreto referido constam ainda, na relação de personagens, o Coro de Fúrias e o Coro de Ninfas e há menção à música: Do Padre José Maurício . Segundo Sérgio Dias (2004, p. 122-4), a música de Nunes Garcia incluiria ainda uma ouverture , que Leopoldo Miguez revelava trazer – em um conjunto de partes cavadas extraviado – o seguinte título: Ouverture ou Introdução que Expressa Relâmpagos e Trovoadas com Violinos, Viola, Violoncello, trompas, trombe lunghe, flautas, fagote e basso . Dias desenvolve uma série de considerações, as quais nos levam a crer que esta obra seria aquela que conhecemos hoje como Abertura Zemira . Já no que diz respeito ao libreto, até então, esse autor identificara somente a versão de 1808, localizada por ele na Biblioteca Nacional de Lisboa, o que não permitia reconhecer os atores atuantes na representação brasileira. Destacamos ainda que, em parte separada para o canto, existente em Vila Viçosa, é possível observar a anotação do nome de Joaquina Lapinha.
(FIG. 2) Figura 2. Parte para o Gênio de Portugal. Ulissea .
É interessante notar que no libreto deste drama, composto por Miguel António de Barros (1772-1827), em sua versão de 1808, representada no Teatro do Salitre em Lisboa, os papéis da Ulyssea [13] e do Genio de Portugal foram interpretados, respectivamente, pela Srª. Claudina Roza Botelho e pelo Sr. Antonio Chiaveri [14] (DIAS, 2004, p. 125). Tais informações vêm confirmar aspectos da prática artística brasileira, já que o papel assexuado do Gênio foi, no Brasil, executado por uma mulata e, mais uma vez, confirmamos o destaque de Joaquina Lapinha, que aparece como a prima donna do canto e também como a atriz principal do elenco. Ainda sobre essa presença em diferentes papéis, Cranmer (2008) [15] afirma que: “Dramaticamente também faz um certo sentido, visto que Ulissea representa simbolicamente o País de Portugal, cativo e depois libertado, tal como o Génio de Portugal [16] o representa”.
Considerações finais
O desenvolvimento de nossa pesquisa nos permitiu, em um primeiro momento, identificar os acervos portugueses que contêm fontes significativas para a compreensão da prática artística brasileira, entre o final do século XVIII e início do XIX. Percebemos ainda que, na tradição desse período, tanto em Portugal quanto no Brasil, a música e o teatro foram atividades estreitamente relacionadas. Em concordância com esta prática, Sérgio Bittencourt-Sampaio (2008, p. 32) confirma a presença de Lapinha “[...] ora como atriz, ora como cantora lírica, ou ambos simultaneamente”. Este mesmo autor complementa que: “De acordo com o local e com a obra, ela podia atuar em qualquer uma dessas atividades, o que nos dificulta determinar exatamente qual o seu papel em cada ocasião, diante da falta de detalhes nos documentos da época” (p. 32). Nesta última citação, verificamos uma referência às lacunas existentes devido à falta de documentação mais específica. É exatamente neste aspecto que consideramos a relevância de nosso trabalho, pois, pela identificação dos libretos, partes musicais e outros documentos primários, concernentes à atuação de Lapinha, foi possível relacionar alguns “detalhes”, antes ignorados. Desta forma, nossa pesquisa, que inicialmente visava à participação desta cantora no cenário musical, estendeu-se à sua presença como atriz. Assim, as informações que, gradativamente, acrescentamos aos nossos estudos – mesmo que, a princípio, não apresentassem uma relação direta com a linha de pesquisa desenvolvida –, possibilitaram esclarecer aspectos do panorama lírico-dramático brasileiro.
Notas
* Esta pesquisa recebe financiamento da Fapesp.
[1] Ruders esteve em Portugal entre os anos de 1798 e 1802.
[2] O relato sobre os teatros faz parte da carta VIII, dirigida a um amigo do autor na Suécia e datada de 29 de Março de 1800, Lisboa. Acrescentamos ainda que o São Carlos fora inaugurado em 1793.
[3] Sobre essa questão, Ruders ([1800] 2002, v. 1, p. 90) afirma que: “[...] tanto o teatro italiano como o nacional tiveram de lutar, nos últimos tempos, com grandes obstáculos. O principal era a ordem da Rainha proibindo as mulheres de se exibirem em cena”.
[4] Neste arquivo analisamos documentos relacionados aos teatros portugueses entre o final do século XVIII e início do XIX, presentes no fundo do Ministério do Reino (maço 992 e 454) e no Archivo Casa Real (caixa 3507/3508), o qual contém, essencialmente, correspondências relativas ao funcionamento dos Theatros Reaes . Além destes fundos, consultamos ainda os catálogos das Chancelarias de D. José I, D. Maria I e D. João VI, à procura da suposta autorização para que a Lapinha pudesse participar de espetáculos no Real Teatro de São Carlos.
[5] Agradecemos à Rosana Marreco Bréscia, que identificou a existência dos respectivos documentos no Ultramarino de Lisboa e também nos forneceu as transcrições destes.
[6] Os títulos apresentados indicam as referências no Arquivo Ultramarino, ou seja, a forma como o documento é descrito no Catálogo.
[7] Sobre esse material brasileiro presente em Vila Viçosa, principalmente com relação àquele executado por Lapinha, publicamos recentemente um artigo no periódico Per Musi, vol. 17 (2008). Com relação às características que nos permitem datar os documentos, David Cranmer relaciona, dentre elas: o tipo de papel, as marcas d'água, a identificação do copista.
[8] A identificação deste libreto foi possível graças à colaboração do Prof. Dr. David Cranmer, da Universidade Nova de Lisboa, que nos auxiliou em nossas investigações nos arquivos portugueses. Destacamos ainda que a Coleção Jorge de Faria corresponde a um dos acervos mais significativos com relação à literatura de cordel, constituindo uma das mais importantes coleções de libretos.
[9] Posteriormente, esta mesma obra foi reimpressa por mais duas vezes em Lisboa: 1815 e 1825.
[10] Com relação à diferença de grafia de Fontanelle para Fontenelle, encontramos, em uma das diferentes impressões para a obra Ericie , o seguinte título: Ericia, of de Vestaelsche maegd [Texte imprimé] , treurspel, gevolgd naer het Fransche, van den heere de Fontenelle [sic] ... door G. Van Gulik . Assim, na indicação de autoria desta tradução holandesa, datada de 1770, verificamos se tratar de um erro comum de grafia, já presente naquele período.
[11] Acerca desta prática, verificamos que se tornou tão abusiva, que, em nossas pesquisas na Torre do Tombo, identificamos diversas correspondências, dirigidas a Sua Alteza Real pelos empresários dos teatros, solicitando a proibição dos benefícios, os quais interferiam de forma negativa nas contas das casas de espetáculos.
[12] Correspondência por meio eletrônico, em 30 de outubro de 3008.
[13] Utilizamos a grafia com “y”, uma vez que no frontispício desta versão lê-se: ULYSSEA / LIBERTADA / DRAMA HEROICO / COMPOSTO / POR / MIGUEL ANTONIO de BARROS / [brasão régio] / LISBOA / NA OFFICINA JOÃO EVANGELISTA GARCEZ / Anno de 1808 / Com licença do Desembargo do Paço / Achasse na Casa da Gazeta (DIAS, 2004, p. 125).
[14] Cranmer (1997), no apêndice 2 de sua tese, identifica Chiaveri como o segundo tenor do Teatro do Corpo da Guarda, no Porto, em 1797.
[15] Em correspondência de 03 de outubro de 2008, por meio eletrônico.
[16] Em seu prólogo da tragédia Ericia , Bocage descreve esse personagem como a representação do Espírito Poético da Nação (p. 5).
Referências
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Documentos
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GARCIA, José Maurício Nunes Garcia. Ulissea Drama Eroico . Partitura manuscrita. Rio de Janeiro, 1809. Paço Ducal de Vila Viçosa (cota G prática 13).
INSTITUTO dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, Lisboa:
Archivo Casa Real – Theatros Reaes (1786-1824) – Cx. 3507/3508.
Chancelaria de D. José I.
Chancelaria de D. Maria I.
Chancelaria de D. João VI.
Ministério do Reino – Negócios diversos relativos a teatros (1771-1822) – Mç. 992 (cx. 1113/4).
Ministério do Reino – Teatros e divertimentos públicos (1792-1804) – Mç. 454 (cx. 569).
OFICIO do Secretario de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao Vice-Rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luis de Castro, comunicando que fora concedida a licença solicitada por Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria da Conceição [Lapinha] para irem ao Reino. 1791, Maio, 16. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (AHU_ACL_CU_017, Cx. 141, D. 11029, rolo 159).
OFICIO de Tomé Barbosa a José Manoel Plácido de Moraes, solicitando Passaporte para o Rio de Janeiro para Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria Lapinha duas libertas Eva e Inacia. [6 de agosto de 1805] Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (AHU_ACL_CU_017, Cx. 229, D. 15673, rolo 235).
Alexandra van Leeuwen. Bacharel em música – Regência – pela Universidade Estadual de Campinas (SP). Atua como regente e cantora, tendo participado de diversos festivais e masterclasses nestas áreas. Apresentou comunicação na I Semana de Música Antiga (UFMG-2007), sendo o texto publicado na Per Musi (2008, vol. 17). Atualmente, cursa o Mestrado em Musicologia Histórica no Departamento de Música da UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Edmundo Hora e como bolsista da Fapesp.
Edmundo Hora. Doutor em música, Cravo – desenvolve seu trabalho baseado na interligação das técnicas dos instrumentos antigos de teclado: Cravos, Órgão de Câmara, Clavicórdio e Fortepianos. Graduou-se na Escola Superior de Artes de Amsterdã (1984) e pós graduou-se na Hogeschool Stichting Amsterdam - Sweelinck Conservatorium (1993), orientado respectivamente por J. Ogg, A. Uittenbosch e presidente do júri Gustav Leonhardt. Professor palestrante nos Festivais de Londrina-PR (1984 a 1991), Curitiba-PR (1994 a 2002 e 2005) e Juiz de Fora-MG (1990 a 2002). Participou dos encontros de musicologia: Juiz de Fora-MG (I, V); UNIRIO-RJ (I); Todos os Teclados Mariana-MG (I, II, III, IV); Fundação Cultural de Curitiba-PR (I, II, IV); e dos festivais: SESC-Ipiranga (SP, 1999); ITAÚ de Música Colonial Brasileira (SP, 2000), XV Seminários Internacionais de Música da UFBA (2003), Semana de Música Antiga de Recife (2007). Atua ainda no programa de Pós-Graduação do IA – UNICAMP.