Revista eletrônica de musicologia
Volume XII - Março de 2009
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Experimentação na Notação e nos Procedimentos Composicionais
Neder José Nassaro
Em meio à pluralidade de expressões artísticas da atualidade, sejam sonoras, visuais e de multimídia, ainda nos sentimos herdeiros de algumas das descobertas e posturas experimentais do século XX. Nossa produção composicional para instrumentos convencionais e a voz humana aborda questões como a notação, a exploração das potencialidades sonoras e a postura composicional aberta à participação ativa do intérprete na execução da obra. O objetivo desse texto é abordar tais questões, onde serão apontados tipos de procedimentos composicionais e a conjugação entre uma escrita experimental e as opções estéticas do autor.
Nossa produção atual é grafada numa notação experimental, onde a escrita pouco determinista privilegia gestos livres, texturas baseadas em fluxos, com a participação ativa dos intérpretes no resultado final da composição, e o emprego de técnicas estendidas , isto é, a aplicação de técnicas não-convencionais de execução em instrumentos tradicionais. Esse tipo de composição permite a utilização de um vocabulário sonoro amplo, além da sonoridade convencional dos instrumentos tradicionais; tendo interesse maior em um universo sonoro que busque sonoridades de espectro harmônico complexo: uma “estética do ruído”. Essa postura é influenciada pela música experimental constituída no século XX, além de nossa experiência em compor no universo da música eletroacústica [1]. Nossa composição busca uma sintaxe poética que conjuga certos modelos formais da tradição musical do ocidente, processos sonoros caóticos (isto é, processos não previsíveis, nos quais não se percebe um padrão), modelos calcados em movimentos e sons produzidos pela natureza, e pelas atividades humanas.
A partir de um desejo, ainda constante, de experimentação, passamos a explorar as possibilidades e potencialidades de uma escrita menos determinista. Adotamos, então, a escrita gráfica como objeto de estudo em nossa pesquisa de doutoramento, e como estratégia para a criação musical. Esse tipo de notação se mostra, então, como um auxílio eficiente no momento da elaboração e experimentação de materiais e recursos sonoros para a música vocal e instrumental.
Na busca de ampliação do vocabulário sonoro e de uma concepção mais abrangente do fenômeno musical, esse tipo de escrita se alinha a uma tendência da música de concerto da segunda metade do século XX que faz uso de uma notação que rejeita a precisão, permite a indeterminação dos parâmetros, a improvisação, a ambigüidade e o acaso na interpretação; aqui, Cage é o expoente dessa corrente experimental. No Brasil, podemos destacar a participação de Koellreutter com sua produção intelectual e composicional baseadas em suas idéias sobre o impreciso, no qual a falta de rigor visa o indeterminado e o vago; e o paradoxal, onde o uso da contradição permite que os opostos participem da mesma realidade [2]. Esses tipos de postura propiciam também um envolvimento do intérprete cada vez maior em decisões composicionais no decorrer da obra, e no resultado final da composição.
Assim, em uma escrita experimental, a partitura, mais do que um documento impositivo de ações pré-estabelecidas, torna-se um estímulo visual e a sua decodificação, pelo intérprete, um fato sonoro. Além disso, a representação gráfica permite certa variedade de interpretações, novas leituras e novas percepções a cada montagem.
Em nossas obras é evidente a busca pela exploração de novos recursos sonoros dos instrumentos e da voz. Além das sonoridades características de cada instrumento, enfatizamos a produção de materiais sonoros com técnicas não-convencionais, gerando sons ruidosos, sem definição de altura. Há uma tendência nessa produção em não se privilegiar as alturas definidas; tanto pelo uso de desses sons ruidosos, como pela oscilação constante das alturas, com o emprego de glissandos , frullatos e certa variedade de vibratos .
Em relação à partitura das obras, onde nossa experimentação com a notação ainda se limita a uma produção de câmara, todos os integrantes recebem a mesma parte contendo a grade geral. Isto porque a marcação dos eventos é feita, de modo geral, por uma escrita proporcional e em vários momentos esses eventos são delimitados pela ação de um ou vários executantes. A percepção visual e auditiva, aqui, se torna primordial. E, como percebemos durante as montagens de obras com esse tipo de escrita, a execução, no transcorrer dos ensaios, se torna cada vez mais “orgânica” e fluente.
As durações dos eventos usados nas obras são escolhidas subjetivamente pelo intérprete ou combinadas pelo grupo; não possuem uma medida cronométrica. Além disso, há a predominância do ritmo não-pulsativo, com sugestões espaciais (na partitura) de continuidade e de articulação, através de uma escrita proporcional (sem uma precisão gráfica), interpretadas, também subjetivamente, pelos executantes.
Na inter-relação entre os instrumentos, podemos destacar alguns tipos de ocorrência comuns em nossas obras:
· ataque-ressonância: quando um dos instrumentos interrompe o silêncio com um ataque curto e outro surge do mesmo (sem um ataque perceptível), constituindo-se um único evento.
· o acúmulo progressivo de linhas de instrumentos até formar uma textura polifônica de sons contínuos ou articulados.
· o ataque de um instrumento que pontua a finalização de outro (ou outros).
· a combinação de instrumentos em paralelo (mesmo movimento direcional) constituindo um único evento.
· a imitação de gestos, como, por exemplo, de glissandos ondulatórios.
· texturas estratificadas, formadas pela sobreposição de planos distintos de execução de cada instrumento.
· adensamento textural, tanto horizontal (por articulações cada vez mais próximas) quanto vertical (pela sobreposição progressiva de gestos); e o seu oposto, rarefação textural.
· a formação de planos constituídos por fluxos contínuos prolongados, compostos pela articulação de só um instrumento ou pela interação entre vários instrumentos.
· o emprego de módulos, como loopings (eventos que se repetem).
· o uso do silêncio como fator expressivo tanto no final de uma rarefação textural, quanto conjugado a momentos climáticos.
· a sobreposição e justaposição de eventos díspares, numa espécie de colagem.
Em relação ao emprego de técnicas estendidas nos instrumentos ou nas vozes, estas, além de compor a textura (como mais um recurso expressivo), se constituem também em um efeito “dramático” no momento da execução, através de atitudes não convencionais, com conseqüente quebra do ritual tradicional do concerto.
Sobre o controle dos materiais sonoros pelo compositor, o uso de uma escrita pouco determinista permite a oscilação entre definir e deixar livre certos parâmetros. Acreditamos que estes graus de liberdade nas informações musicais se constituem em um estímulo para os intérpretes na tomada de decisões em relação à realização da obra; ou, pelo menos, na ampliação de opções de interpretação (pelos executantes) passíveis de ser discutidas posteriormente com o compositor. Ao mesmo tempo, há a necessidade, por parte do compositor, de uma notação própria em função das escolhas expressivas e técnicas não-usuais quando não existe uma notação convencionada.
Nessa relação entre a notação e a atuação dos intérpretes, podemos apontar algumas soluções em nossa produção composicional:
· o emprego de durações proporcionais para os eventos, permitindo ao intérprete definir o tempo de cada ação e, em última instância, a duração da obra.
· a indeterminação quanto ao número de articulações de certos eventos; onde a escrita é meramente ilustrativa, servindo somente como um estímulo visual.
· o uso de informações textuais que funcionam como um estímulo psicológico; tendo relação com as habilidades do instrumentista e as possibilidades técnicas de seus instrumentos. Isto acontece quando são dadas certas instruções, tais como: “o mais rápido possível”; “o mais agudo” ou “o mais grave possível”; começar ou finalizar o evento com niente (nada em italiano); e acelerandos e retardandos gradativos.
· o emprego de glissandos direcionais (ascendentes ou descendentes), sem definição dos seus limites inferiores e superiores; como também, glissandos oscilatórios (regulares ou irregulares), estabelecidos simplesmente pelo estímulo gráfico.
· o uso de módulos, nos quais eventos mais complexos (com várias informações para um ou mais instrumentos) se repetem a mercê do intérprete (e em combinação com o grupo), ou até que alguma pontuação de outro instrumento indique o seu término.
· a utilização de texturas gráficas para estimular execuções que beirem o descontrole, como: “o mais rápido possível”; e quando se requer a execução acelerada de eventos até o momento em que o resultado sonoro se torne “caótico”.
· o uso de informações em forma de texto ao invés de uma notação gráfica.
A realização de obras que empregam técnicas instrumentais ou vocais não habituais, abordadas por uma escrita experimental, exigem além de um exercício imaginativo e criativo, o empenho dos executantes na experimentação sonora e técnica de seus instrumentos, buscando soluções expressivas de acordo com as exigências estéticas e estilísticas da obra.
O advento de novas grafias musicais foi de grande importância na história musical do século XX, mas ainda hoje são utilizadas no campo da composição musical; sendo a escolha de notação de muitos compositores contemporâneos. O nosso próprio interesse pela experimentação e pela utilização de um vocabulário sonoro vasto, nos leva, freqüentemente, a empregar a escrita experimental (aberta, de aleatoriedade controlada ou parcialmente indeterminada) na composição de obras musicais. Além disso, uma escrita indeterminada pode ser o meio mais eficaz de transmissão das idéias composicionais, quando se opta pela flexibilidade na postura do compositor frente à construção de sua obra.
[1] Compor música eletroacústica envolve a criação de materiais sonoros (captação ou síntese), o processamento desses materiais e a montagem dos sons em um suporte; além da busca de um sentido musical através da conjugação desses materiais sonoros para confecção de obras.
[2] MENDES NETO, João. Implicações Estéticas do Relativismo no Processo Composicional em Ácronon de H. J. Koellreutter . Dissertação de Mestrado em Música Brasileira, Rio de Janeiro, Universidade do Rio de Janeiro, 1999.