Departamento de Artes da UFPr Revista Eletrônica de Musicologia Vol. 1.2/Dezembro de 1996 Home Page
MÚSICA PRÉ-BARROCA LUSO-AMERICANA: O GRUPO DE MOGI DAS CRUZESJaelson Trindade e Paulo Castagna
As últimas descobertas musicais
A localização, identificação, conservação e divulgação do patrimônio artístico musical do Brasil tem sido até hoje fruto de iniciativas pessoais. Entretanto, esses esforços ingentes, pertinazes, somados à ações pontuais, circunstanciais, privadas ou públicas, nesse campo da cultura, não podem continuar disfarçando o caráter restrito e geralmente precário dos resultados alcançados. E, ainda que, na somatória, já muito se conseguiu ao longo deste século, tarda no país o amadurecimento dos trabalhos no campo da preservação do patrimônio musical.
De maneira geral, "a precariedade da pesquisa musical tem uma grande parcela na responsabilidade por nossa atual ignorância sobre a música antiga desta eterna Colônia" [1]; as inúmeras agressões aos arquivos, num descaso, desprezo, desinteresse pelo que havia neles; também as guerras, revoltas, tempestades, incêndios teriam contribuído para o desaparecimento definitivo de composições mais antigas das quais não existiram cópias. Decadência das antigas irmandades, mudanças no gosto, na atividade profissional da música e no código canônico, etc., tudo isso atacou até mesmo as músicas do século XVIII, que existem poucas, o que dizer então do XVII?
O tipo de música composta ou utilizada no Brasil, no meio dos colonos, entre os séculos XVI e meados do XVIII era praticamente desconhecida até há poucos anos. Em 1984, na cidade de Mogi das Cruzes, a 58 km da capital do Estado de São Paulo, no Brasil, foi descoberto um pequeno conjunto de peças musicais que permite, hoje, balizar a reflexão sobre a fase mais antiga da nossa prática musical. Dentre as 29 folhas de papel de música encontradas, foram identificadas 11 obras diferentes.
O padrão caligráfico dos textos musicais já indicava ao historiador não versado em linguagem musical, mas muito familiarizado com documentos manuscritos, datar dos primeiros anos do século XVIII. Não versado, mas informado o necessário para notar a diferença entre a escrita clássica da música e aquela de notas brancas, quase sem barras de separação. Tudo isso já demonstrava um significativo recuo em relação à música pré-clássica dos compositores do último quartel do XVIII, expoentes das artes na região das Minas Gerais do Ouro, hoje amplamente divulgados.
A importância e o significado dessa descoberta foi logo confirmado pelo musicólogo paulista Régis Duprat, a quem o IPHAN solicitou preliminarmente a análise das folhas de música.
Os papéis de música de Mogi das Cruzes chegaram por acaso às mãos do pesquisador. Mas não de maneira puramente fortuita, porque há cerca de 3 décadas tangencia a problemática da investigação da música do Brasil colonial.
O achado aconteceu durante os levantamentos e estudos relativos ao acervo artístico-religioso antigo da região, para a montagem de um Museu de Arte Sacra em dependências dos frades carmelitanos, por iniciativa da Coordenação Regional (São Paulo) do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
As folhas serviam de recheio para a capa e contracapa de couro do Livro de Foral da Vila de Mogi das Cruzes, aberto em 1748 para traslado do antigo, em mau estado. A capa, trazia a aba superior descolada, a lateral quase... a curiosidade fez o resto!
Localizar a ordem da Câmara de Mogi para encadernação do livro, daria pistas sobre o momento de desinteresse e/ou desuso dessas folhas de música. Tudo indica, porém, que a encadernação data da abertura do livro (1748).
Uma das folhas funcionava como frontispício - "Bradados a 4. para Domingo de / Ramos, e Sexta fr.ª da / Payxaõ. / De Faustino do Prado xavier." O nome desse então presumível autor de algumas das músicas já era conhecido do investigador. Poucos anos antes, durante uma pesquisa sobre a arquitetura rural da região esse personagem, qualificado como clérigo, aparecera no processo de inventário da irmã, feito em Mogi das Cruzes, datado do último quartel do século XVIII. O inventário post mortem indicava velhice dos envolvidos, assim sendo, o músico Faustino devia ser o mesmo padre mas na sua mocidade, em tempo mais recuados.
A bibliografia disponível logo mostrou que o Padre Faustino Xavier não era um desconhecido, mas um célebre clérigo paulista, cônego da Sé de São Paulo desde 1760, falecido nonagenário em 1800. A Relação do Bispado de São Paulo, elaborada em 1777, diz que o Cônego "é bom moralista, exemplar, esmoler devoto e de rigorosa residência no coro". No século XX, seu único e breve biógrafo informa que Faustino, "se não foi talento brilhante [nas Artes da Moral e da Retórica] , mereceu a reputação de santo", pelo seu extremado pietismo e caritativismo. Nenhuma crônica falou, porém, na sua atuação como músico.
As pesquisas atuais mostraram que o Padre Faustino Xavier foi um homem relativamente rico para o meio social em que viveu. Teve fazenda de gado e pastos de engorda para manadas de mulas xucras nos Campos Gerais do Paraná; esteve metido no grande comércio de muares.
A novidade maior, porém, é o seu passado musical revelado pelas pesquisas impulsionadas pela descoberta das músicas. As investigações agora prosseguem, tendo em vista a elaboração da edição crítica das músicas - o chamado Grupo de Mogi das Cruzes, promovida pelo IPHAN.
Faustino
Faustino nasceu em c.1708 na pequena Vila de Mogi das Cruzes, filho de um comerciante local nascido durante a travessia dos pais do Reino para o Brasil. Estudos genealógicos indicam que há, pela parte do pai, um parentesco próximo do nosso Padre com o inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem histórico de vulto nacional, cujos avós saíram de Mogi para as Minas Gerais.
A serventia de Faustino na prática musical ordinária da Vila foi de curta duração. Em 1729, aos 21 anos foi nomeado pelo Bispo do Rio de Janeiro, D. Fr. Antonio de Guadalupe, Mestre da Capela da igreja matriz - estando vago o cargo - "pela muita perícia na arte da música"; esse superlativo já o diferencia do indicativo de "perícia na Arte da música", costumeiro nas provisões dadas pelos Bispos aos Mestres de Capela, bem como da qualificação de "músico destro" que para outros aparece.
Além da Matriz, teve a seu cargo o mestrado da capela do Convento local de N. Sr.ª do Carmo. Mas sua meta era o sacerdócio. Nem bem passaram cinco anos, obteve o grau de presbítero (ordens menores) e assumiu a função de Vigário Coadjutor da igreja matriz de Mogi. Desse modo, não pôde acumular a gestão paroquial com a gestão oficial da música. Logo, alegando a "penúria de sacerdotes" na Vila, tomou "as mais ordens" e passou a Vigário titular. Em 1736, entretanto, já se transfere para fora da localidade.
Serviu em outras paróquias da Capitania (documentadamente, como Vigário Encomendado da matriz da Vila e Porto de Santos a partir de 1751) até fixar-se na Sé de São Paulo.
O sacerdócio era efetivamente a sua vocação. Aos 18 anos fez a sua candidatura às "ordens menores, e sacras", obtidas somente em 1732. O sacerdócio e o comércio.
Encontradas as partes musicais manuscritas, várias questões se colocaram relativas ao contexto histórico-social e à organização da prática musical, à autoria e à circulação das obras, além dos aspectos diretamente ligados aos documentos, ou seja, a notação e o papel. Essas pesquisas têm continuidade ainda hoje. Uma geografia da arte - e da música, em particular - na antiga Capitania de S. Paulo é uma empreitada doravante necessária para melhor entendimento das obras preservadas.
Faustino e Angelo
Há uma composição - o Ex Tractatu Sancti Augustini (obra n.º 3) - cujo frontispício traz assinalado "De Angelo Prado xavier". Pesquisas nas séries de Inventários, Autos Cíveis e Censos de População da Capitania (1765-1800), confirmaram o parentesco entre Faustino e Angelo: eram irmãos.
Mais moço cerca de 8 anos, Angelo parece ter vivido sempre sob a proteção do Padre. Se ele, porventura, cantou sob a regência de Faustino - não era incomum parentes, compadres e amigos comporem a "capela de música" - ou desenvolveu, com os ensinamentos competentes do irmão, habilidades e até um certo talento artístico musical, viu-se face a um meio social restrito demais para emprega- los. Teria composto o Ex Tractatu Sancti Augustini (obra que, pelo caráter polifônico refinado, se destaca dentre as demais do Grupo)? Pretendia, por volta de 1735, ao atingir a mesma idade (20/21 anos) com que o irmão assumiu o Mestrado, requerer o mesmo posto em Mogi ou algures? O que há de concreto, por enquanto, é que esteve durante anos - pelo menos dos 27 anos de idade em diante - ligado à compra e venda de muares do Sul do Brasil, ou seja, na órbita em que atuava o mais velho, Faustino.
Em 1743 já estava na lida comercial. Em 1767, tem o posto de Escrivão da Real Fazenda na Vila de Santos. É preso e arrestado dos bens em 1768. Vai viver como agregado na casa do irmão Cônego, na cidade de São Paulo. Morre em 1769.
Timóteo
Além de Faustino e de Angelo, um terceiro nome apareceu. Timóteo Leme do Prado. O escrito no frontispício da obra Tractus de Sexta-Feira Santa (obra n.º 4) não deixa dúvidas: "Do uzo de Thimoteo Leme".
Há, no grupo, outra cópia desses Tractus ("para as profecias de Sexta fr.ª da Payxam") com a indicação "De Faustino do Prado Xavier". A letra é de Faustino, conforme atestam as comparações caligráficas com outros documentos assinados pelo Mestre.
O "De" indicava posse? É ambíguo o sentido. Em muitas composições dos séculos XVII / XVIII, o "De fulano" aparece em casos de autoria comprovada. Já o contemporâneo "Do uso", como vimos, não deixa dúvidas.
Uma consulta aos registros de pagamentos feitos a Mestres de Capela, colhidos em inventários pesquisados há anos para o IPHAN, registram a presença de Timóteo Leme do Prado como Mestre de Capela da Vila de Sorocaba, no início da década de 1730. Portanto, havia circulação de peças entre diferentes localidades.
Sorocaba era o ponto de partida e de chegada nas comunicações com os campos do Sul do Brasil. A partir de 1732, completada a ligação por terra com os extensos campos vizinhos ao Prata, ali se tornou o foco do comércio de gado muar, vacum e eqüino. Havia mogienses em Sorocaba. Um deles era Antonio da Cunha Gago, morto em 1731: Timóteo recebe por tocar no seu enterro.
Consultando os velhos inventários e autos cíveis do Arquivo do Estado de São Paulo foi possível saber, inclusive, que Timóteo Leme assinava inicialmente Leme da Silva, tendo mudado depois para Timóteo Leme do Prado: em 1732 é da Silva e a assinatura num daqueles documentos coincide com a do manuscrito musical de Mogi. Noutro de 1735 também. Num documento de 1744 já se verifica a mudança: um credor alega que seu nome antes foi "da Silva", passando depois a "do Prado"!
Em 1772 encontramos em Sorocaba um Timóteo Leme do Prado, que na assinatura se qualifica como padre. Nesse documento vê-se o desenho inconfundível do "Th" inicial do nome encontrado 40 anos antes! Na Relação do Bispado de São Paulo, de 1777, consta que o padre "Thimoteo Leme do Prado", de oitenta e cinco anos, vive em Sorocaba, "totalmente Decrepito".
Marcas d'água e caligrafia
A documentação arquivística (inventários, testamentos e processos cíveis) localizada - direta ou indiretamente vinculada aos personagens do Grupo de Mogi - permitiu datar com certa precisão o período ou períodos da atividade musical dessas pessoas. Os textos autógrafos encontrados em meio a essa documentação, comparados com os textos das músicas e assinaturas nas folhas, contribuiu tanto para a datação das peças como para confirmar a intervenção direta dos personagens identificados.
A seguir, a identificação das diversas marcas d'água (marcas dos fabricantes) encontradas na maioria dos papéis de Mogi - pesquisa obrigatória - se fez basicamente no Arquivo do Estado de São Paulo, buscando papéis de diferentes localidades da Capitania utilizados entre os anos de 1720 e 1740.
Utilizava-se o papel comum para copiar músicas, desenhando-se as pautas. Identificamos 12 marcas d'água diferentes nesses papéis.
Naquele arquivo central existe uma correspondência trocada, a partir de 1721, entre as autoridades locais (Câmara, Milícia e Justiça) e o Governo da Capitania, sediado em São Paulo, permitindo assim estabelecer uma amostragem representativa. Verifiquei diversos maços de papéis avulsos e, a incidência de certas marcas em determinados períodos e regiões, permitiu situar aquelas encontradas nos papéis de Mogi como uma das preponderantes nas décadas de 1720 e 1730.
Por exemplo, o escudo português das cinco quinas, coroado, ladeado por leões portando estandartes (marca n.º 11) aparece na parte de "Tenor a 4" da cantiga Matais de incêndios (obra n.º 11); essa marca foi encontrada também em documentos emitidos no Rio de Janeiro, 1743; na cidade de São Paulo, 1735; e na vila de Sorocaba, 1738. Em um documento do arquivo cartorial de Ouro Preto (MG), datado de 1748, ele aparece na primeira página de uma folha dupla - a segunda tem uma coroa encimando a flor de lis e a palavra Givsto na parte inferior do emblema (marca n.º 10, a mesma da folha de Tiple a duo desta Cantiga).
A marca do citado Ex Tractatu Sancti Augustini (nas partes de Tiple a 4 e Baxo a 4), por exemplo (marca n.º 7), foi encontrada, até agora, em um ofício da Câmara de Mogi das Cruzes datado de 1724 e em inventários post mortem de Mogi das Cruzes datados de 1723, 1725 e 1732. Nesta última data, Angelo estaria com cerca de 16 anos...
A marca encontrada na folha da parte de rabeca da Ladainha de N. Sr.ª (obra n.º 10) - as iniciais AMC (marca n.º 12) - não foi localizada nesse primeiro levantamento de marcas. Falta ainda, certamente, a consulta a uma literatura especializada.
Além disso, as caligrafias dos textos de Mogi - 10 deles em latim e um apenas em português (o da Cantiga) - foi comparada com numerosos e variados manuscritos paulistas das décadas de 1720 e 1730, ficando evidenciada a similitude com os padrões caligráficos vigentes no período pesquisado.
Modestos cometimentos
Alguma coisa já se sabe, há tempos, sobre a atividade musical nos núcleos antigos de povoamento da Capitania de São Paulo, revelada pela documentação textual dos arquivos paulistas. De forma que o pesquisador não se surpreende, ao obter, pela primeira vez, textos musicais executados naquele território e naquela época.
Além disso, as funções religiosas no Reino de Portugal - diz-nos a história da cultura - não prescindiam da música. A falta de música ou o mal desempenho musical iam sempre em detrimento do culto divino, conforme conceito tradicional da Igreja. [2]
A prática ordinária da música no mundo colonial estava profissionalmente vinculada aos atos litúrgicos e às festas religiosas. Mas, também, ainda que excepcionalmente, podia ocorrer durante a encenação de pequenas "óperas", comédias e entremezes. De resto, a documentação tem mostrado que entre as populações dessas vilas paulistas do Seiscentos e Setecentos, era usual tanger viola, harpa, cítara e até pandeiro. Em meados do século XVII, circulam em Vilas como São Paulo e Santana do Parnaíba livros de canto de órgão, cartapácios e papéis de música, não apenas em mãos dos Mestres de Capela. E muitos daqueles tangedores de viola eram letrados: "tinham à mão um Cervantes, um Vieira, um Mendes Pinto, um Bento Pereira ou livros de comédias e entremezes, além de muita literatura 'espiritual', jurídica e médica" [3]. Na vizinha e já cidade de S. Paulo, em 1728, por exemplo, a "música à capela" até já podia contar com o recurso do órgão e do cravo unidos ao baixão. [4]
Se pensarmos nas vilas coloniais como cabeças de um território organizado, com uma produção agrícola regular, de caráter comercial, sabemos já que as instituições - transplantadas do Reino - funcionam, ainda que não haja opulência econômica.
Criada em 1611 como Vila, a povoação de Mogi das Cruzes desde 1630 estava com o seu convento e igreja da Ordem 1.ª de N. Sr.ª do Carmo funcionando, conjunto algumas décadas depois acrescido de uma capela anexa de Irmão Terceiros. Tinha, naturalmente, uma igreja Matriz, irmandades, confrarias. Tinha uma vida rural equilibrada, com latifúndios acumuladores de índios, muitos sítios rurais pequenos e médios; os agregados - gente livre em terras alheias - e os indígenas, servos da lavoura, que os colonos traziam aprisionados na "torna bolta do sertão", movimentavam a produção.
Para o trabalho de catequese, fornecimento de trabalhadores temporários aos estabelecimentos rurais, bem como para movimentar as próprias fazendas, contava o município com dois aldeamentos missionários criados pelos padres jesuítas: Aldeia de N. Sr.ª da Ajuda e Aldeia de N. Sr.ª da Escada. A Escada não dispunha propriamente de uma fazenda e, nos primeiros anos do século XVIII, passou para a administração de frades franciscanos vindos de outra localidade.
Os carmelitanos do convento da Vila, possuíam duas grandes fazendas com capelas capazes de dizer missa para a população rural: Santo Alberto e Santo Angelo.
"Essa estrutura é o bastante para que as instituições da ordem social vigente - políticas, sociais e econômicas - na Colônia tomem forma, se projetando na vila. É o que basta para haver músico profissional a até mesmo boa música na terra". [5]No povoado, menos de 100 casas de morada - morar mesmo era no campo. Mogi, vizinha à cidade de São Paulo, estava ao lado do caminho que, através do vale do rio Paraíba, atingia os limites com a Capitania do Rio de Janeiro. Articulava-se, assim, ao principal circuito comercial e urbano do território.
A parcela comercial da produção era diversificada, porém, pouco expressiva: mantimentos, tabaco, algodão e cana. Nesse sentido, Mogi refletia a situação regional vigente à época.
O quadro sócio-econômico da Capitania de São Paulo, nestes primeiros vinte anos do século XVIII, apresenta solução de continuidade. Esvaziada de população, sangrada pelos distantes descobertos auríferos das Gerais e do Centro-Oeste, torna-se uma economia dependente do trânsito interno, com predomínio da produção de mantimentos; uma fase denominada como "Intermezzo Roceiro" pelo arquiteto Luís Saia, ao caracterizar o contexto da "Morada Paulista" na primeira metade daquele século.
Uma Capitania de segunda ordem. Tem-se a idéia de que foram bastante modestas as realizações artísticas da Capitania de São Paulo durante os dois primeiros séculos de povoamento. Idéia expressada pelo sociólogo Lourival Gomes Machado no seu texto Artes Plásticas no Brasil (1960) que ele complementa com uma outra: "Onde, porém, aumentassem as disponibilidades, logo se impunha a tendência à realização, completa quanto possível, do modelo português". [6]
As análises preliminares feitas por Régis Duprat em 84/85 e os estudos ora desenvolvidos sobre as obras musicais (P. Castagna) assinalam o caráter sóbrio, ainda atado ao maneirismo, que caracterizam as peças de Mogi. Poderiam tranqüilamente ter sido escritas no século XVII: se na produção musical do Reino, como se verá adiante, ainda perdura por toda a segunda metade do Seiscentos o estilo maneirista, o que não dizer da Colônia...
Eram as formas tradicionais de música polifônica que se ouviam soar, no início do Setecentos. As igrejas paulistas, traçadas em "estilo-chão", onde regularmente o público ouvia, além do cantochão, música em "canto de órgão" (polifônica), às vezes acompanhada de instrumentos musicais (órgão, cravo, harpa, baixão), possuíam uma discreta maquinaria de culto, onde simultaneamente se apresentavam os pequenos retábulos proto-barrocos, ainda compostos de painéis pintados e os exemplos barrocos do chamado "Estilo Nacional", com arco-românico em arquivoltas e colunas pseudo-salomônicas, exibindo um talha singela, um entalhe muitas vezes rude - algumas dessas obras "recriações" muito inventivas dos padrões eruditos. [7]
No decorrer do século XVII, Portugal vive um período de transição nas artes. É a fase de experimentação proto-barroca em que, por uma via de renovação, afasta-se progressivamente da situação maneirista. Nesse processo, a música não conheceu ritmos semelhantes ao da literatura, da pintura e da talha. De certa forma, tal como na arquitetura, definiu uma nova configuração estético-ideológica já no limiar do século XVIII. É quando se afirma o Barroco.
A Cantiga de Mogi - amor divino ou amor mundano?
As músicas de Mogi se conformam estilisticamente em uma situação pré-barroca. E quanto à poesia? Matais de incêndios (obra n.º 11), para 4 vozes e instrumento(s), não tem ares de cançoneta erudita. Seria mais apropriado encará-la tal como vê o crítico brasileiro Antonio Candido - ainda que noutro contexto - a poesia do nosso Silva Alvarenga (Vila Rica, 1749 - Rio de Janeiro, 1814): "poesia lírica em metro fácil e cantante, de sabor quase popular" [8] - o poeta Silva Alvarenga era filho de um Mestre de Capela e ele próprio bom violinista de salão, iniciado na música pelo pai desde criança. A obra de Silva Alvarenga, diz o crítico, "já toca o ponto onde a poesia se desfaz em música".
Cantiga*
Tiple a Duo
Matais de incendios meu Lindo ay Le Le
porq' hum sol me pareceis não me mateis
deyxay q eu goze essas Luzes ay Le Le
meo amor não me mateis.Hey de chegar me aos incendios ay Le Le
inda q rayos vibreis.
Mas se a vos me chego amante ay Le Le
meo amor não me mateis.
Para abrazar coraçoins ay Le Le
as palhinhas acendeis.
O meu por vos ja se abraza ay Le Le
meu amor não me mateis.
Suspendey menino o pranto ay Le Le
mais menino não choreis.
Ora fazey me a vontade ay Le Le
meo amor não me mateis.(*) Transcrição paleográfica.
No texto do Tiple 2º a 4
e do Tenor a 4
aparece a expressão
"mais meu Lindo"
ao invés de "mais menino".O uso do repertório barroco [9] e a fala indicando a condição feminina, de amante, de esposa, podem, em primeiro lugar, indicar tratar-se de um vilancico [10]. Nessa forma musical, a relação amante-amado se refere ao amor místico, o amor da alma pelo "menino Amado", por aquele Jesus que ela [alma] quer esposar.
Na poesia do amor místico um dos motivos centrais é a redenção, cujos aspectos são geralmente ilustrados pela figura etimológica morte-morrer. A redenção se dá pelo casamento da alma (Esposa) com o Amado (Deus). O símbolo central desse amor, da união mística - a chama, o fogo, a fogueira - se faz presente em toda a obra, [11] poesia e prosa, de São João da Cruz, disseminada sob a forma de romances e vilancicos: entrar nos "gozos verdadeiros do espírito", [12] oposto ao gozo das coisas exteriores e visíveis... U'a alma arrependida que vai a caminho de Deus.
E o menino que chora? Nos vilancicos, esse é o menino Deus; o menino (Jesus) que chora (de frio) é uma constante nos temas pastoris dos vilancicos, adentrando-se pelos séculos XVII e XVIII em autos e cantos:
"pero Dios en el pesebre
allí lloraba y gimía
que eran joyas que la esposa
al desposorio traía;
y la madre estaba en pasmo
de que tal trueque veía:
el llanto del hombre en Dios,
y en el hombre el alegría" [13]Os vilancicos do século XVII são "obras exclusivamente sobre textos religiosos". Executados para deleite e gáudio do povo, neles predominam os assuntos pastoris [14]. Eram cantados nas igrejas,
"[...] por ocasião das maiores festas. Essas eram principalmente as do Natal, as da Epifania ou Reis, e as de Nossa Senhora. Nas festas de qualquer santo também se cantavam vilancicos quando os recursos dos festeiros permitiam as respectivas despesas". [15]Mas nos primeiros anos do XVIII através de pastorais e de provisões aos Mestres de Capela, as autoridades religiosas no Brasil condenam a execução do que denominam de "cantos ou vilancicos profanos, e indecentes". Os tonos, ou "canções seculares", profanas, tinham geralmente acompanhamento de viola e eram escritos para 4 ou mais vozes, tal como os vilancicos: [16] tono, esse é o nome do vilancico profano?
Será que estamos diante de uma poesia erótica profana? O erotismo do texto da Cantiga salta aos olhos. Nesse caso, seria um tono. D. Francisco Manuel de Melo, no Seiscentos português, chamou tonos a todos os versos que escreveu, musicados pelos principais compositores portugueses de sua época, tratando de assuntos profanos.
Essa ambigüidade se deve ao repertório simbólico utilizado? - um repertório corrente também na poesia profana.
Segundo Helmut Hatzfeld, [17] a mescla de religião e sensualidade é traço hispânico, ibérico, de matriz árabico-maometana que depois passa a ser característica hispano-católica. São espanhóis, nascidos no Quinhentos, os carmelitanos Santa Teresa D'Ávila e São João da Cruz, cujos escritos de exaltada paixão mística se disseminam por todo o século seguinte.
O místico João da Cruz encontra também na poesia profana uma importante fonte de inspiração, diz Cristóbal Cuevas na introdução às suas Poesías completas. [18]
Por enquanto, permanece a dúvida se a Cantiga fala do sagrado ou do profano. Se for profana, a fala é de mulher. Entretanto, por ora é difícil discernir, porque fala feminina, de exaltada paixão mundana como aquela de Soror Mariana Alcoforado é coisa invulgar, pelo que se sabe, na literatura portuguesa do Barroco.
Mas não esqueçamos o Padre Manuel Bernardes, no seu texto "Contra as músicas lascivas" (Armas da Castidade, Lisboa, 1699), verberando contra religiosas que gastam tardes, junto à grade "em visita com seculares", em motetes e xácaras e discantes, "com seus quebros e gargantas, e brandas punhaladas, com que atravessa o coração de quem ouve descuidado". Talvez fazendo loas, de maneira ambígua, ao adorado Menino...
Tono ou vilancico? Os símbolos encontrados na Cantiga (sol, raios, luz, menino, abrasamento, incêndios, matar, etc.) não são patrimônio da poesia religiosa: são utilizados pela poética do Barroco em geral. [19] Disseminados, tornam-se familiares; utilizados coloquialmente, são entendidos pelo público em geral.
A poesia erótica do nosso baiano seiscentista Gregório de Matos está repleta dessas metáforas. [20] Aliás, a frase "não me mateis" comparece musicalmente no estribilho de umas coplas de Gregório, em que "MAGOADO O POETA E SENTIDÍSSIMO COM ESTA PENA DE VER FRUSTRADOS TODOS OS SEUS INTENTOS, CANTAVA AO SOM DO SEU INSTRUMENTO A SEGUINTE LETRA": [21]
Aqui-d'El-Rei, que me matam
os negros olhos de Brites!
eu não vi mulher tão branca
com tão negros azeviches.
Dizem que pelos cabelos
a leva certa velhice,
que como enfim é menina,
gosta mais das meninices.
Quer-se casar cum Menino,[........................................]
ESTRIBILHO
Tá tá,
não me mateis tá,
que inda que sou velho,
não hei de cansar.Do ponto de vista literário e musical, o estudo da nossa Cantiga a 4 vozes terá que passar pelo exame do estoque disponível das diferentes formas musicais de que ela mais se aproxima - vilancicos, romances e chançonetas em linguagem (cantigas profanas, em vernáculo) - praticadas ao longo do século XVII e princípios do XVIII no mundo português e ibérico em geral. [22]
Do ponto de vista textual, a Cantiga possui uma linguagem expurgada do jogo de palavras, dos paradoxos do Barroco, aproximando-se muito daquela linguagem poética, direta, clara, que vemos no texto dramático de Antonio José da Silva, O Judeu (Rio de Janeiro, 1705 - Lisboa, 1739), nome ligado tanto à história da literatura como à da música portuguesa.
Suas óperas, as primeiras em língua portuguesa, traziam pequenas peças de gosto popular. [23]
Amor é rapaz, diz o nosso Antonio José. [24]
A fala de Teseu a Ariadna, na Cena II da ópera Labirinto de Creta (Lisboa, 1736) lembra com ênfase a linguagem da Cantiga: "Prometo abrasar-me de amor nos incêndios". [25] E não é só o homem que o diz. Egéria, no Precipício de Faetonte (idem, 1738), diz na Cena I da Primeira Parte: "Sim, Faetonte, pois ao ouvi-lo pronunciar, me senti abrasada em um vivo incêndio". [26]
A amada é o Sol. Na Cena II, Segunda Parte, da mesma ópera, Faetonte vê, oculto, Ismene se aproximar: "e no entanto gozarão os olhos por entre essas ramas o belo Sol, [27] que me abrasa". [28] Ou ainda: "Não te vás formosa Vênus, que sem dúvida nascestes agora das escumas desse mar, para abrasar corações [...]; descobre esse rostinho, que como Sol se quer nublar nessa inoportuna nuvem; não me importa que me cegues com raios, se amor já me cegou com delícias", [29] diz Periandro a Filena (Primeira Parte, Cena V da Esopaida ou Vida de Esopo, ópera estreada em Lisboa, em 1734).
O Amor é Menino. Na Terceira Parte, Cena I do Precipício de Faetonte, Albano diz a Ismene, a quem deseja: "Amor que foi, sempre é; pois não tem mais que um tempo, e por isso se pinta menino". [30]
Obras dos anos de 1730! Nesse caso, a poesia da Cantiga estaria, portanto, aggiornatada.
A idéia expressa do Amor Menino, entretanto, já a encontramos no Padre Vieira, quase cem anos antes. O sermão que pregou em 1645, na Capela Real, pretendia explicar a paixão divina, mas, segundo o crítico Roberto Simões, [31] "terminou por deixar-nos uma agudíssima página de psicologia do amor profano".
O Amor é Menino. E a razão desse simbolismo entre os antigos, para Vieira, "era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho". Nas pinturas "o amor é sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade do uso da razão".
Propondo-se a classificar o amor, define o amor vulgar: "a alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade de afetos e um entendimento sem uso". E faz um reparo: "Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento".
Outro porém é o Menino que aparece nos escritos seiscentistas do padre Manuel Bernardes (1644-1710).
O Menino é Deus. É Deus "quando brinca como menino". No texto Rende-te, Coração, [32] há elementos que à primeira vista parecem denunciar o sentido da Cantiga de Mogi, sobretudo pela imagem das "palhinhas": o menino amado seria Deus.
"Rende-te, coração meu; que te pedem? Que ames? Não há lei mais suave. Quem t'o roga? Um menino? [...].
[...]
Rende-te coração. Para onde hás de fugir? Para a morte? Hoje nasce a vida [...].
[...]Rende-te; com que hás de resistir? Com a ambição? Hoje é trono de Deus uma manjedoura de brutos. Com a ira? As suas armas são lágrimas e gemidos. Com a avareza? Deus se dá a si mesmo. Com o apetite de deleites? Deus chora, Deus padece, Deus está em pobres faixas sobre as palhinhas.
Basta; que estou rendido. Basta; que me fere e mata o amor deste menino."
As obras do Padre Bernardes foram publicada já no final do Seiscentos e primeiros anos do Setecentos.
É o mesmo amor ao menino Deus que aparece nos escritos mais tardios, as Cantigas ao Menino, [33] da religiosa franciscana Madre Soror Baptista de Deus Custódia, do Mosteiro da Madre de Deus de Vinhó, Gouveia (Portugal), falecida anciã em 1774:
"Nuzinho vos vejo
Ó meu Menino
Mil finezas farei
Meu queridinho.
Não vos quero em couro
Por este frio
Mas ardeis em incêndios
Meu queridinho".E nas Novenas ao Menino Jesus:
"Eu Vos adoro ó meu Deus Menino, e todo o meu remédio que sendo toda a grandeza Vos fizestes pequenino, nascendo em umas palhinhas sendo toda a riqueza, chorando de frio por quem? por esta desgraçada F.
"É possível que por mim seja, mas já sei que razão tendes, pois estais vendo o regelo, e frialdade deste coração. Pois meu Divino Esposo se Vós tudo podeis peço Vos me abraseis toda no Vosso Divino amor
[...]."As "palhinhas" - aquelas que o menino acende em nossa Cantiga - aparecem, porém, também no contexto profano do século XVII. São encontradas na Carta de Guia de Casados (Lisboa, 1651), de D. Francisco Manuel de Melo. Este chama a atenção dos maridos para o perigo que representa ao equilíbrio do casamento o costume de empregar em casa pajenzinhos "que chamam tocha ou, de estrado" - que é facilitar que o fogo salte e se expanda:
"Esta sevendilhas pequenas, estes arqueiros, estas palhinhas, estas arestas, são às vezes causas de grandíssimos incêndios". [34]
Estilos musicais no Brasil colonial
A questão dos estilos musicais praticados no Brasil colonial apresenta grandes dificuldades de análise, ligadas a problemas históricos e à grande faixa de espaço e tempo no qual esta música se desenvolveu. Robert Smith, referindo-se à arquitetura brasileira antiga, procurou determinar as grandes divisões estilísticas observadas na América Portuguesa:
"O viajante encontra em cada região do Brasil restos de arquitetura colonial, mostrando um caráter especial conforme a zona do país em que se acha. Pode-se falar nos estilos regionais da época colonial, designando pelo menos quatro diversas maneiras de construir. Temos primeiro a arquitetura dos extremos do país, estilo italiano frio e severo dos estabelecimentos jesuíticos, das Missões do Rio Grande do Sul e das cidades e aldeias da região amazônica do Norte. Em segundo lugar vem a arquitetura do estilo setecentista do norte de Portugal, localizada no Estado de Minas Gerais e no maranhão, onde em duas diversas regiões o viajante observa, com espanto, pequena multidão de Viseus e Bragas tropicais. Lá, nas igrejas, nos conventos e em quase toda a arquitetura secular se sente bem forte a saudade do Minho longínquo. A seguir, o estilo da capital [Rio de Janeiro], envolvido mais tarde numa complicação de influências francesas e italianas sobrepostas aos modelos portugueses, verdadeira trasladação além do Atlântico do estilo da Corte de Lisboa de depois do terremoto [de 1755], quando quase ao mesmo tempo as duas capitais lusitanas começavam a revestir sua forma moderna. Existem estes três estilos e mais um - a arquitetura do Nordeste." [35]Podemos utilizar a classificação de Smith como ponto de partida para analisar a proliferação de estilos na produção musical brasileira do período. O primeiro deles, o jesuítico, desenvolveu-se no Brasil desde 1549, baseado em modelos da música ibérica católica de caráter funcional, ou seja, despreocupada com a função meramente artística das obras ou com o deleite da aristocracia, mas voltada a objetivos exclusivamente catequéticos e espirituais. Dessa música, utilizada sobretudo nas regiões costeiras, somente restaram textos de músicas e relatos de época descrevendo sua utilização. No Brasil, praticou-se até 1759 - quando a Companhia de Jesus ainda atuava nos domínios portugueses - desde canções nas línguas correntes (latim, português, espanhol, tupi-guarani e outras línguas indígenas), até obras em "canto de órgão" [36] a várias vozes e com instrumentos, cantadas em latim em cerimônias religiosas. Infelizmente, pouco podemos inferir com relação ao caráter musical propriamente dito de tais obras, uma vez que não existem manuscritos documentadamente utilizados nas missões jesuíticas da costa brasileira para poderem ser analisados do ponto de vista musical. Não se acredita, também, que essa prática possa ter alcançado o desenvolvimento observado nas missões da América Espanhola.
O segundo estilo descrito por Smith refere-se àquele encontrado em Minas Gerais. No tocante à produção musical, foi na Capitania de Minas Gerais que se desenvolveu o movimento mais rico e mais coeso do período colonial. No entanto, a vasta produção colonial mineira exibe uma evolução estilística semelhante à que se observa na produção arquitetônica: encontramos obras musicais de uma simplicidade pós-barroca, como as de Manuel Dias de Oliveira (Tiradentes, c.1735-1813) e de autores anônimos mineiros, distintas da produção pré-classica que floresceu entre c.1760-c.1820, de autores como J.J. Emerico Lobo de Mesquita (1746?-1805), Marcos Coelho Neto (1763-1823), Inácio Parreiras Neves (c.1730 - 1793/4) e Francisco Gomes da Rocha (c.1754-1808), que já lograram uma produção de caráter dramático mais acentuado, porém plenamente integradas à função religiosa. A última fase da música colonial mineira, manifesta na produção de J.D. Castro Lobo (1794- 1832), já exibe uma forte ligação com o classicismo musical italiano, totalmente regida pelas inovações operísticas, segundo modelos de Giovanni Paisiello, Domenico Cimarosa e Luigi Cherubini, fazendo surgir obras voltadas em primeiro lugar ao espetáculo - por meio do virtuosismo vocal e instrumental - e em segundo à religião.
O estilo encontrado na música do Rio de Janeiro colonial, assim como na arquitetura, é tardio, mais complexo e cosmopolita. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), apesar de sua base estética portuguesa e italiana, utiliza também modelos importados de outras nacionalidades, sendo a riqueza de meios a característica principal de sua produção e de outros autores do início do séc. XIX. A música instrumental foi mais utilizada no Rio, em função da presença da corte portuguesa, com obras do próprio Garcia, mas também de Marcos Portugal (Lisboa, 1762-1830), Sigismond Neukomm (1778-1858), Gabriel Fernandes da Trindade (c.1790-1854) e outros.
Uma certa semelhança pode ser observada entre a produção carioca e paulista colonial. A cidade de São Paulo, sede do Bispado desde 1745, procurou instalar uma prática musical que simbolizasse a Igreja triunfante e o poder colonial, sobretudo no período de atuação, como mestre de capela da catedral, do compositor português André da Silva Gomes (1752-1844), desde 1774.
Finalmente, a produção colonial nordestina, cujos maiores centros foram Salvador (Bahia), Recife e Olinda (Pernambuco), foi quase totalmente perdida, impossibilitando análises mais acuradas. Os raros exemplos sobreviventes, como o Recitativo e Ária de autor anônimo Baiano, de 1759 (possivelmente escrito por Caetano de Melo Jesus) e algumas poucas peças de Luís Álvares Pinto (c.1719- c.1789) já manifestam divergência estilística. O Recitativo e Ária utiliza uma forma plenamente barroca, mas já exibe características estilísticas mais avançadas, que poderiam ser denominadas pós-barrocas ou pré-classicas. Luís Álvares Pinto, ao contrário, apresenta uma produção estilisticamente mais arcaica. Seus modelos são os do barroco português da primeira metade do séc. XVIII, com uma curiosa aliança entre a manutenção da polifonia antiga e a economia de recursos composicionais.
Por toda a América Espanhola, a produção musical dos séculos XVI e XVII reproduziu os principais modelos composicionais renascentistas, possibilitando, entre fins do séc. XVII e inícios do séc. XVIII uma impressionante assimilação das tendências mais modernas do barroco italiano, incluindo a técnica do recitativo e ária, do estilo "concertato" e, inclusive, da ópera e da música instrumental. Por outro lado, o panorama musical luso-americano não exibiu uma atualização estética nas mesmas proporções: "Não existe Ópera em Portugal no século XVII, nem existirá até às primeiras serenatas italianas cantadas na corte portuguesa na década de 1720." [37] Ruy Vieira Nery informa o quanto Portugal esteve preso, no séc. XVII, aos modelos contra-reformistas e a uma música de caráter renascentista, com a manutenção da polifonia vocal e uso restrito dos instrumentos musicais, o que este autor denomina de maneirismo musical português:
"O Maneirismo perdura na Música portuguesa muito para lá de as suas últimas manifestações em Itália terem dado definitivamente lugar ao Barroco, ao longo das décadas de 1630 e 1640. Se considerarmos em termos genéricos a nossa produção musical da segunda metade do século XVII verificamos, com efeito, que os géneros em que ela assenta são ainda, fundamentalmente, os que herdou do século anterior - a Missa, o Motete e o Vilancico no plano da Música sacra, o Tento e a Fantasia na Música instrumental - e que nos faltam por completo alguns dos géneros fundamentais do Barroco italiano seiscentista como a Ópera, a Cantata e a Oratória no plano vocal ou a Sonata e o Concerto no plano instrumental. Encontramos, por outro lado, uma persistência evidente da polifonia imitativa, na maioria dos casos concebida para uma textura de quatro a seis vozes. No âmbito da teoria musical depara-se-nos um quadro de inegável estagnação, em que as normas do contraponto quinhentista e o sistema dos oito modos gregorianos, tal como haviam sido expostos mais uma vez em 1613 por Cerone, transitam de forma quase imutável de tratado em tratado, independentemente da qualidade pedagógica indiscutível de alguns destes manuais, como é o caso da Arte Mínima de Manuel Nunes da Silva, que, editada em 1685, viria ainda a ter duas reedições, já em pleno século XVIII (1704, 1725). [...]" [38]Quando Nery se propõe a descrever a produção portuguesa de fins do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, esbarra em uma dificuldade de caráter metodológico que, em suma, é a mesma que temos de enfrentar ao investigar a prática musical brasileira na primeira metade do séc. XVIII: a música desse período, em Portugal, não se orientou por um único ideal, manifestando, ao mesmo tempo, uma tendência à manutenção dos estilos quinhentistas e outra em direção ao barroco italiano:
"O período que medeia entre as décadas de 1670 e 1720 é um dos que foi até hoje menos estudado na nossa História da Música, correspondendo em termos estilísticos a uma espécie de terra de ninguém entre o prolongamento das manifestações de um Barroco seiscentista de raiz ibérica e a penetração maciça dos modelos italianos a partir da segunda década do século XVIII. Na medida em que esta penetração se verificou sobretudo através da Capela Real, como veremos, ela apanhou de surpresa a maioria dos músicos portugueses formados e activos nas restantes instituições, mesmo naquelas que tradicionalmente se tinham destacado como grandes centros de actividade musical, como as Sés de Lisboa e Évora, por exemplo. Surge-nos assim neste período, quer no quadro geral da produção musical portuguesa quer até no seio da obra de cada compositor, uma identificação estilística de fundo em que coexistem as atitudes mais variadas, desde a fidelidade absoluta aos modelos peninsulares tradicionais à aceitação em bloco dos novos padrões importados, passando por inúmeras formas híbridas em que elementos de ambas as tendências se combinam numa área cinzenta de difícil classificação." [39]A produção portuguesa do período 1670-1720 representou, portanto, uma fase de transição entre o renascimento tardio peninsular e o estilo barroco importado da Itália. A partir de então, Portugal passou a assimilar as novidades barrocas, como a ópera, o recitativo e a ária, mas ainda utilizando técnicas composicionais já superadas na Itália. [40] Assim, o Requiem de Antônio Teixeira (1735) soa mais próximo da ópera de Monteverdi que de toda a música de Vivaldi; a produção religiosa de Domenico Scarlatti (que viveu em Lisboa entre 1720-1724) e Carlos Seixas (1704-1742), apesar de identificáveis enquanto barrocas, manifestam ainda a manutenção da polifonia vocal e das linhas planas do renascimento tardio.
Sob esta perspectiva, é possível compreender um pouco mais sobre os raros exemplos barrocos encontrados no Brasil e compostos no centro do século XVIII, como a Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal, de Inácio Parreiras Neves (Ouro Preto, Minas Gerais), o Recitativo e Ária atribuído a Caetano de Mello Jesus (Salvador, Bahia, 1759) e as poucas composições recuperadas do pernambucano Luís Álvares Pinto. Este autor, nascido em c. 1719, viajou a Portugal em c.1740, lá permanecendo até data anterior a 1761. Em Portugal, estudou com o contrapontista Henrique da Silva Esteves Negrão e, entre outras atividades, foi professor de música das filhas do Marquês de Pombal. De suas composições, cujas circunstâncias indicam forte impregnação pelo barroco português, eram conhecidas apenas um Te Deum laudamus para coro e orquestra (cujas partes orquestrais foram perdidas) e um Salve Regina para três vozes e contínuo. Recentemente, surgiu um manuscrito inédito, o Músico e moderno sistema para solfejar sem confusão, [41] obra teórica e prática para o ensino da leitura musical, que contém as 24 Lições de solfejo, peças a duas vozes - a mais grave para ser tocada por instrumento (possivelmente o cravo) e a mais aguda para ser solfejada - e os cinco Divertimentos Harmônicos, obras corais a três e quatro vozes, destinadas a treinar o solfejo em grupo. São peças francamente tonais, dotadas do "desenvolvimento contínuo" barroco, mas com a manutenção da técnica polifônica, que o barroco italiano já abandonara em nome da homofonia e dos contrastes solo- tutti, então denominados "musica concertata".
Sabemos, no entanto, que a prática musical no Brasil, mesmo em circunstâncias precárias, remonta aos primórdios da colonização. Por toda a costa, desde Recife (Região Nordeste) até São Vicente (Região Sudeste), as notícias sobre o trabalho remunerado de músicos são relativamente grandes a partir de c.1650. Mesmo assim, é notável a perda quase total da documentação musical relativa a períodos anteriores à década de 1760. [42]
O Grupo de Mogi das Cruzes
Até inícios da década de 80, eram raros os documentos musicais encontrados no Brasil, que exibiam uma estética cronologicamente anterior aos estilos musicais já estudados. O passionário do compositor português Francisco Luís (séc. XVII), que o primeiro Bispo de Mariana, D. Manuel da Cruz, levou para aquela cidade em 1748, [43] o Cum descendentibus in lacum do espanhol Ginés de Morata (séc. XVI) [44] e o Manuscrito de Piranga, [45] provável coleção de obras portuguesas setecentistas para a Semana Santa, são os casos mais conhecidos.
A descoberta de Mogi, no entanto, possui um grande significado na musicologia brasileira, por ter permitido, pela primeira vez, o estabelecimento de uma relação clara entre a música maneirista ou pré-barroca ibérica e a prática musical na América Portuguesa. Copiadas ao redor de 1730, as 11 obras musicais do Grupo de Mogi das Cruzes diferenciam-se nitidamente da música barroca, pós-barroca ou pré-clássica produzida no Nordeste brasileiro e nas Capitanias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro no século XVIII, assemelhando-se às obras religiosas portuguesas mais simples produzidas desde o final do séc. XVI até o final do séc. XVII. Suas principais características são as seguintes:
1. Formação coral "a cappella", com emprego possível de um instrumento grave (melódico ou harmônico) dobrando ou substituindo o baixo vocal;
2. Utilização do sistema modal;
3. Escrita em partes;
4. Utilização da notação mensural ou proporcional;
5. Ausência de grande parte das alterações cromáticas ou acidentes, que deveriam ser introduzidos pelos cantores ("musica ficta");
6. Repousos por "cláusulas" ou "cadências", ou associação de ambas;
7. Utilização de valores largos (a base está nas mínimas e semibreves);
8. Pouca variedade rítmica (os valores predominantes são a semibreve e a mínima; semínimas são incomuns e colcheias muito raras);
9. Utilização de designações renascentistas para as vozes (tiple, altus, tenor, bassus);
10. Predomínio dos registros graves para o tiple (soprano) e o altus (contralto) e dos médios para o tenor e o bassus (baixo), com maior flexibilidade para o bassus;
11. Extensão (registro ou âmbito) reduzida das partes vocais (geralmente, de uma quinta a uma oitava), à exceção do bassus;
12. Movimento das vozes normalmente por graus conjuntos;
13. Harmonia simples;
14. À exceção das obras ou seções polifônicas, inexistência de passagens a solo, duo ou trio (a Cantiga Matais de incêndios é exceção);
15. Ocorrência esporádica de quintas ou oitavas paralelas;
16. Sujeição total ao ritmo do texto latino;
17. Estilo predominantemente silábico;
18. Repetições de texto muito raras;
19. Música de preocupação exclusivamente religiosa, sem a exploração de efeitos dramáticos ou teatrais;
20. Base estética filiada às obras tecnicamente mais simples do estilo romano contra-reformista, comum na Península Ibérica no séc. XVII;
21. Utilização de três procedimentos musicais básicos:
a) o fabordão
b) a homofonia modal
c) a polifoniaMas as obras dos manuscritos de Mogi das Cruzes permitiram uma constatação ainda mais importante. Encontramos várias das peças deste conjunto em cópias mineiras e paulistas posteriores, em versões idênticas ou adaptadas, sempre sem indicação de autoria. Tal pesquisa revelou que, pelo menos 5 das 11 obras copiadas em Mogi em c.1730, continuaram a ser reproduzidas em cidades de Minas Gerais e São Paulo durante os séculos XVIII e XIX e mesmo em inícios do séc. XX: os Bradados de Domingo de Ramos (obra n.º 1), os Tractus de Sexta- Feira Santa (obra n.º 4), a Paixão segundo São João, em duas versões (obras n.º 5 e 6) e a Procissão do Enterro (obra n.º 8). Com isso, essas peças, que até há pouco se procurava atribuir a compositores dos séculos XVIII e XIX, se revelaram, no mínimo, anteriores a 1730 e, segundo suposição decorrente de nossa análise estilística, obras provavelmente de compositores portugueses ou brasileiros de fins do séc. XVII.
As composições encontradas em Mogi das Cruzes permitiram, mais que a simples descoberta de um novo acervo, uma compreensão mais efetiva da produção paulista e mineira anterior à fase barroca e pré-clássica de c.1760-c.1820, pela identificação de composições que circularam por esses territórios em períodos anteriores.
As obras musicais
A documentação do Grupo de Mogi das Cruzes compõe-se de 29 folhas, manuscritas por 10 a 15 copistas diferentes, três dos quais identificados nas próprias cópias: Faustino do Prado Xavier, Angelo do Prado Xavier e Timóteo Leme que, como vimos, não são necessariamente os autores das músicas. Por análises realizadas no papel e na caligrafia dos originais, supomos que a maior parte dos manuscritos teria pertencido, em data anterior a 1748, ao arquivo pessoal de Faustino do Prado Xavier (1708-1800), mestre de capela de Mogi das Cruzes entre 1729-1733 e cônego da Catedral de São Paulo na segunda metade do séc. XVIII.
Apresentamos, a seguir, uma rápida descrição das obras recuperadas dessa documentação, seguida de seu Índice Temático. [46]
1 - Bradados de Domingo de Ramos. As cópias desta obra parecem ter sido todas realizadas por Faustino do Prado Xavier, apesar de serem reconhecíveis quatro padrões distintos de cópia. A obra está construída em homofonia modal, apresentando, para os "Bradados" da Paixão, música quase sempre em "canto de órgão", à exceção das seções "Et tu cum Jesu Galilæo eras" e "Et hic erat cum Jesu Nazareno", ambos em cantochão (por breves e semibreves). A versão de Mogi não apresentava a seção polifônica inicial de 21 compassos, o "Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Mathæum", que restauramos com base em manuscritos encontrados no Museu da Música de Mariana (MG). Existe também um manuscrito da Sé de Évora, copiado já em notação vigente, provavelmente no séc. XVIII e intitulado "Ditos das turbas para Domingo de Ramos", que apresenta seções coincidentes com os Bradados de Mogi, sobretudo a seção Non in die festo. A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso.
2 - Ofício de Quarta-Feira Santa. Somente existia uma parte de Altus, ainda assim interrompida no c. 670, antes da conclusão do responsório Una hora non potuisti, da oitava lição (o Ofício possui nove lições). É certamente a peça mais longa de todo o conjunto, mas que não pode ser, até agora, nem identificada e nem restaurada por falta de partes. A obra foi escrita em "compasso maior" (C cortado), sem barras de compasso, com ligaduras de breves.
3 - Ex Tractatu sancti Augustini. Copiada por Angelo do Prado Xavier, esta é a obra musicalmente mais complexa do Grupo de Mogi das Cruzes. Alternando seções polifônicas com homofônicas, estende-se por 163 compassos, referentes a dois terços do texto de Santo Agostinho sobre os Salmos, para a 4.ª Lição do 2.º Noturno do Ofício de Matinas da Quinta-Feira Santa (no séc. XVIII: Quarta-Feira). A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso, com o emprego de ligaduras de breves.
4 - Tractus de Sexta-Feira Santa. Esta obra foi encontrada em dois conjuntos diferentes: o primeiro, completo, foi provavelmente todo copiado por Faustino do Prado Xavier; o segundo, somente em partes de Tenor e Bassus, foi copiado por Timóteo Leme. A obra é estritamente homofônica e aparece em versões praticamente idênticas em arquivos paulistas e mineiros. [47] A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso.
5 - Paixão segundo São João (música 1 - versão 1). Destinada à Sexta-Feira Santa, esta obra foi copiada por Timóteo Leme e provavelmente por Faustino do Prado Xavier. A seção inicial de 21 compassos, o "Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem", foi restaurada com base em manuscritos encontrados nas cidades de Mariana (MG), São João del Rei (MG) e Pindamonhangaba (SP), sempre associados aos Tractus de Sexta-Feira Santa. A peça é essencialmente homofônica, com "canto de órgão" para as passagens corais da Paixão, à exceção da seção "Numquid et tu ex discipulis es hominis istius", em cantochão (por breves e semibreves). A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso.
6 - Paixão segundo São João (música 1 - versão 2). Encontrada no Grupo de Mogi das Cruzes apenas por cópias de Tenor e Bassus por Timóteo Leme, difere da versão anterior por encontrar-se escrita quinta justa acima e por incluir, em "canto de órgão", trechos da Paixão referentes às falas de Jesus Cristo. Nas passagens corais, a música pode ser restaurada com base na versão anterior. Nas passagens referentes às falas de Jesus, no entanto, não existe certeza em relação ao número de vozes utilizadas: 2, 3 ou 4? A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso.
7 - Paixão segundo São João (música 2). Trata-se de uma segunda Paixão para a Sexta-Feira Santa, disponível apenas por uma parte de Tiple. Infelizmente, a obra ainda não pode ser identificada ou restaurada, apesar de já transcrita. Foi escrita em "compasso maior" (C cortado), sem barras de compasso, apresentando ligaduras de breves.
8 - Procissão do Enterro. Esta peça aparece como a última obra das partes de Tenor e Altus copiadas por Timóteo Leme, que continham os Tractus e a Paixão para Sexta-Feira Santa. Baseamos sua restauração em uma versão de copista anônimo (séc. XIX) de Piranga [48] e em uma versão copiada por Manoel José Gomes (1792-1868, pai de Carlos Gomes) em Campinas, na primeira metade do séc. XIX. [49] Utiliza o fabordão para a seção Heu! Heu! Domine! e homofonia para o Sepulto Domino. A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso.
9 - Regina Cæli lætare. É a Antífona de Nossa Senhora, cantada aos sábados, desde a Páscoa até a Santíssima Trindade (exclusive). Recuperamos, dentre os documentos de Mogi, apenas as partes de Tiple e Tenor, mas o caráter homofônico e a extrema simplicidade da obra permitiu sua restauração completa. A obra apresenta mensuração ternária (C3), com mínimas e semibreves negras e semínimas brancas com haste, sem barras.
10 - Ladainha de Nossa Senhora. Desta obra somente existe, no Grupo de Mogi das Cruzes, uma parte de "Rabeca", ou seja, violino. Dividida em quatro seções - Kyrie, Pater de Clis Deus, [Sancta] Maria e, provavelmente, Agnus Dei. Apresenta mensuração ternária (C3), com mínimas e semibreves negras, semínimas brancas com haste e barras de compasso, à exceção das regiões com hemiolas decorrentes da utilização de semibreves negras.
11 - Matais de incêndios. Música sobre poesia de oito pares de versos decassílabos, que denominamos Cantiga. Esta composição foi escrita em português e copiada em partes de Tiple 2.º a 4 (voz mais aguda), Tiple a duo, Altus a duo e Tenor a 4, por quatro copistas diferentes e não identificados. Cada um dos oito pares de versos é cantado duas vezes: a primeira a duas vozes (Tiple a duo - Altus a duo) e a segunda a quatro vozes. A existência de pausas gerais de dois compassos em quatro ocasiões (compassos 8-9, 12-13, 21-22 e 25-26) faz supor a utilização de um acompanhamento instrumental (talvez para harpa ou viola), cujas partes não foram encontradas. Realizamos uma restauração teórica desse acompanhamento, com base apenas na análise interna da obra, empregando somente linhas melódicas extraídas das partes vocais. O manuscrito também apresenta mensuração ternária (C3), com mínimas e semibreves negras, sem barras de compasso.
Notas(1) CASTAGNA, Paulo. "Fontes Bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII". Dissertação de Mestrado, ECA/USP, 1991. v. 1, p. 98. (retorna)
(2) SOARES, Franquelim Neiva. Ensino e Arte na região de Guimarães através dos Livros de Visitações do século XVI. Separata da Revista de Guimarães, Guimarães, v. 93, 1984. (retorna)
(3) TRINDADE, Jaelson Bitran. Música colonial paulista: o grupo de Mogi das Cruzes. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro: n.º 20, p. 18, 1984. (retorna)
(4) Idem. (retorna)
(5) Ibidem, p. 17. (retorna)
(6) MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 367- 368. (retorna)
(7) COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro: n.º 5, p. 61-65, 1941. (retorna)
(8) CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 4.ª, São Paulo: Martins, s.d. v. 1, p. 142. (retorna)
(9) As metáforas que aparecem na Cantiga são corriqueiras na poesia amorosa, por exemplo, do poeta seiscentista brasileiro da Bahia Gregório de Matos Guerra; muito mais nas peças lírico-amorosas do que na sua poesia religiosa, voltada para o Amor Divino. Cf. MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: obra poética. Rio de Janeiro, Record: 1990. 2 v. (retorna)
(10) STEVENSON, Robert (transcrição e estudo). Vilancicos Portugueses: Autores Vários. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1976. (Portugaliae Musica, série A, v. 29); VIEIRA, Ernesto, Dicionário biographico de músicos portuguezes: historia e bibliographia da musica em Portugal por [...]. Lisboa: Mattos Moreira & Pinheiro, 1900. 2 v. (retorna)
(11) CUEVAS, Cristóbal (ed.). San Juan de la Cruz: Poesías completas. Barcelona: Bruguera, 1981. p. XXX. (retorna)
(12) Idem, p. 105. (retorna)
(13) Ibidem, p. 38. (retorna)
(14) STEVENSON, Robert, op. cit., p. VIII. (retorna)
(15) VIEIRA, Ernesto, op. cit., v. 2, p. 28. (retorna)
(16) STEVENSON, Robert, op. cit., p. XXIX. (retorna)
(17) HATZEFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva / EDUSP, 1988. p. 298. O autor fala da tendência espanhola, ibérica, "que veio dar a todo assunto profano um viés devocional, tratando-o 'a lo divino'". (retorna)
(18) Isso, conforme o autor, só seria possível mediante o recurso à técnica do contrafactum ou versão "ao divino". "Imitar verso, copla, estilo e matéria juntamente, isso é o que chamam contrafazer". Textos profanos foram inseridos em contextos diferentes. O fenômeno de "contrafaturas" se estende ao séc. XVII. Às vezes, a refusão era mais profunda e afetava o léxico, as imagens e a estrutura. Em todo caso, a pretensão de manter a versão "ao divino" o mais próximo possível de seu modelo explica a freqüente ambivalência profano-religiosa desta classe de poesia. Cf. CUEVAS, Cristobal. Poesías completas. Barcelona: Bruguera, 1981. (retorna)
(19) ROIG, Adrien. O teatro clássico em Portugal. Lisboa, Biblioteca Breve, vol. 76. p. 138; SPINA, Segismundo e SANTILLI, M. A. Apresentação da poesia barroca portuguesa. Assis, 1969, p. 117, 145, 154; SILVA, Vitor Manuel Pires de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971. (retorna)
(20) Vide nota n.º 9. (retorna)
(21) MATOS, Gregório de. op. cit., v. 2, p. 715. E o "ay Le Le" que aparece em Mogi, no estribilho da nossa Cantiga? Há pistas para investigação. O cancioneiro português do Alentejo registra ecos da tradição mourisca:
Esta noite, à meia noite,
A meia noite seria,
Ouvi cantar meu amor
Aos cantos da Mouraria
Ai lê,
La na do Mouro,
Meu bem amadoÉ um cravo de ouro. Este elemento poético-musical aparece de maneira idêntica no estribilho do canto de uma Congada afro-brasileira, recolhido por F. A. Pereira da Silva no início deste século, em Goiana, Pernambuco, Nordeste do Brasil e reproduzido por Arthur Ramos em seu O folk-lore negro do Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935): Ó meu sinhô São Lourenço
Ai! lê lê
Aqui tá seu zipretinho
Ai! lê lê
Cantando a sua zifé
Ai! lê lê (retorna)(22) STEVENSON, Robert. op. cit., p. VIII-IX; GAVALDA, Miguel Querol. Cancionero Musical de Góngora. Barcelona: CESIC, 1975. p. 61, 64; PINHO, Ernesto Gonçalves de. Santa Cruz de Coimbra: centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1981. (retorna)
(23) SILVA, Antonio José da. Óperas. São Paulo: Ed. Cultura, 1944. 2 v. (Série Clássica Brasileiro-Portuguêsa "Os Mestres da Língua" sob a direção de José Perez, v. 26) (retorna)
(24) idem, v. 2, p. 398 - "Caranguejo" canta, em uma ária: "Amor é que chora, / Que amor é rapaz." (retorna)
(25) idem, v. 2, p. 46. (retorna)
(26) idem, v. 2, p. 428. (retorna)
(27) Os destaques são nossos. (retorna)
(28) idem, v. 2, p. 474. (retorna)
(29) idem, v. 1, p. 165. (retorna)
(30) idem, v. 2, p. 510. (retorna)
(31) Simões, Roberto. "Padre Vieira e o Amor Mundano", Revista do Livro. Rio de Janeiro: MEC, v 6, n.º 2, p. 207-209, 1957. (retorna)
(32) BERNARDES, Padre Manoel. Excerptos (por Antonio Feliciano de Castilho). Rio de Janeiro: Garnier, 1865. v. 2, p. 91. (retorna)
(33) "O Livro da Tia Baptista". Beira Alta. Viseu: v. 8, n.º 4, p. 419, 432, 4º trim. 1949. (retorna)
(34) MELO, D. Francisco Manuel de. Carta de Guia de Casados. Porto: Simão Lopes, 1949. p. 46. (retorna)
(35) SMITH, Robert C. Igrejas, casas e móveis: aspectos da arte colonial brasileira. Recife: Ministério da Educação e Cultura / Universidade Federal de Pernambuco / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1979. p. 23. O fragmento citado refere-se ao primeiro capítulo do livro, "O carácter da arquitetura colonial do Nordeste", anteriormente publicado na revista Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro: ano 2, v. 4, n.º 10, 1940. (retorna)
(36) "Canto de órgão" é palavra portuguesa para música mensurada e "a vozes", contraposta a "cantochão", música não mensurada e cantada em uníssono, chamada também "canto gregoriano". (retorna)
(37) NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. História da música. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda / Comissariado para a Europália 91 - Portugal, 1991. p. 79. (Sínteses da Cultura Portuguesa) (retorna)
(38) NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit., p. 76 (retorna)
(39) NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit., p. 80-81. (retorna)
(40) Complementam as informações já transcritas estas mais de Rui Vieira Nery: "Um elemento decisivo neste processo de transformação será, já em plena década de 1720, a introdução gradual dos instrumentos de corda na música litúrgica, mais uma vez a exemplo do sucedido na Capela Real. [...]"NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit., p. 82. E ainda esta outra sobre a adoção do modelo operístico italiano em Portugal: "A partir da década de 1730, no entanto, o gosto da corte e do público em geral orientou-se gradualmente para a nova Ópera italiana que entretanto chegara a Portugal, e o teatro musicado de tradição ibérica, ao contrário de géneros similares como o Singspiel na Alemanha, o Vaudeville em França ou a Ballad Opera em Inglaterra, desapareceu da cena, constituindo o Discurso apologético em defesa do teatro espanhol (1739) do Marquês de Valença, como escreve Manuel Carlos de Brito, 'o dobre de finados pelo género em Portugal', mas também o fim de um processo devolução de um Barroco musical de raízes inequivocamente peninsulares." Idem, p. 84 (retorna)
(41) Manuscrito de propriedade de D. Pedro de Orleans e Bragança (Petrópolis, RJ), bisneto do Imperador Pedro II. (retorna)
(42) Os mais antigos manuscritos musicais brasileiros datados foram copiados em épocas muito próximas: 1759 na Bahia, 1767 em Minas Gerais, 1774 em São Paulo, 1776 em Pernambuco e 1783 no Rio de Janeiro. (retorna)
(43) LOPES, Maryla Duse Campos. Transcrição de um passionário do século XVIII. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, II, São João del Rei, MG, 4 a 8 de dezembro de 1985. Anais. Belo Horizonte: DTGM da Escola de Música da UFMG, Orquestra Ribeiro Bastos de São João del Rei, Sociedade Brasileira de Estudos do século XVIII. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1987 [na capa: 1986]. p. 55-62. (retorna)
(44) DUPRAT, Régis. A polifonia portuguesa na obra de brasileiros. Pau Brasil, São Paulo: ano 3, n.º 15, p. 69-78, nov./dez. 1986. (retorna)
(45) CASTAGNA, Paulo. O manuscrito de Piranga (MG). Revista Música, São Paulo: Depto. de Música da ECA-USP, v. 2, nº 2, p. 116-133, nov. 1991. (retorna)
(46) As notas musicais de tamanho reduzido, no Índice Temático, não existiam nos manuscritos do Grupo de Mogi das Cruzes. Foram restauradas por análise interna das obras ou por comparação com manuscritos provenientes de outras localidades. (retorna)
(47) Localizamos cópias dessa obra no Museu da Música da Arquidiocese de Mariana (MG), no arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense, de São João del Rei (MG) e no Museu Histórico e Pedagógico D. Pedro II e Princesa Leopoldina, de Pindamonhangaba (SP). Régis Duprat possui, em seu arquivo pessoal, cópias manuscritas desta peça, como também dos Bradados de Domingo de Ramos, localizadas em acervos paulistas: "Assim, arrolamos sete manuscritos oriundos de várias cidades do Vale do Paraíba e da Serra do Mar, e um exemplar de Porto Feliz, a oeste de São Paulo. As cidades do Vale são: Aparecida (2 manuscritos) e Guaratinguetá; e os da Serra do Mar: Cunha (2 manuscritos) e São Luís do Paraitinga (2). Um destes últimos parece tratar-se do mais antigo dentre os demais (apenas uma parte do contralto), porém, não datado, traz a escritura original reforçada por decalque mais recente, dificultando conclusões mais definidas. "Dentre os manuscritos datados, um dos de Aparecida é o mais antigo. De 1863, é proveniente da cidade mineira de Itajubá, serra acima, ali copiado por Francisco José de Lorena que, nessa década, se radica no Vale, onde constituiu uma linhagem de músicos de Aparecida do Norte. Seria ele o portador do novo protótipo das obras compostas no mesmo Vale, cerca de 130 anos antes e, a partir de então ali refundidas como difundidas foram nas Gerais em período anterior: e ali permaneceram, executadas e recopiadas. Não é outra a razão de encontrarmos dois itens dessas obras no catálogo de microfilmes do Ciclo do Ouro. Uma, no Museu da Música, de Mariana (p. 269) 'P.ª sexta f.ra'; outra, na Lira Sanjoanense, de São João del-Rei (p. 271), em cópia de 1928 e autoria atribuída, no catálogo, a Manoel Dias de Oliveira". Cf. DUPRAT, Régis & TRINDADE, Jaelson (Uma descoberta musicológica: os manuscritos musicais de Mogi das Cruzes, c. 1730. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, II, Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1986, p. 52-53. (retorna)
(48) Manuscrito encontrado no acervo pessoal de D. Terezinha Aniceto, na cidade de Piranga (MG). (retorna)
(49) Manuscrito encontrado no acervo Santana Gomes, do Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas (SP). (retorna)
Jaelson Trindade, historiador, 9.ª Coordenação Regional / São Paulo do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (retorna)Paulo Castagna, pesquisador da música brasileira e Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP e da Faculdade Santa Marcelina. (retorna)