Revista eletrônica de musicologia

Volume IX - Outubro de 2005

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"Within you without you": música, aprendizagem e identidade

 

David Hargreaves (University of Roehampton, U.K.)

Tradução: Beatriz Ilari

 

George Harrison acabara de morrer quando me foi pedido o título desta palestra. Uma de suas canções mais famosas provê o meu tema para esta palestra [1]. Esta canção está gravada em um dos álbuns mais famosos da música pop, em que o desenho da capa, feito por John Blake, se transformou em ícone dos anos sessenta. Os Beatles são altamente reconhecidos pelos musicólogos como os músicos de rock mais influentes de todos os tempos, então não é de se surpreender que eles tenham exercido uma influência imensa em todos nós que crescíamos naquela época – em nossas identidades sociais e musicais – e continuam a fazê-lo nas gerações subseqüentes.

Foi John Lennon e não Edward Elgar, Ralph Vaughan Williams, Benjamin Britten ou Harrison Birtwistle, o único representante das artes, juntamente com William Shakespeare, no ranking dos ’10 maiores britânicos’ votado pelos espectadores ingleses no ano passado. Muitos eleitores votaram assim com base no papel preponderante dos Beatles nas revoluções culturais que ocorreram nos anos 60; muito embora isso negligencie suas conquistas musicais. Muitos esqueceram que quando eles apareceram, as paradas da música pop eram dominadas por artistas que, na maioria dos casos, usava materiais escritos por outros – pense em Andy Williams, Helen Shapiro, Petula Clarke, e também Elvis Presley e Bill Halley & The Comets.

Quase que sozinhos, os Beatles introduziram a idéia do músico pop escrevendo seus próprios materiais, e do cantor-compositor. Desde então, esta inovação que vem exercendo grande influência sobre as novas gerações de música, é ainda mais significativa por sua influência sobre aquilo que esperamos musicalmente das crianças, isto é, compor, tocar e cantar, tudo dentro da educação musical que ocorre na escola. Além disso, a canção que acabamos de ouvir, possivelmente representa a primeira vez que muitos de nós ouvimos música indiana de forma cuidadosa: nós o fizemos graças à promoção de George Harrison fez, e estas inserções preliminares na música do mundo representam uma outra bse da educação contemporânea multicultural.

Antes de deixarmos os Beatles de lado, deixe-me usá-los para ilustrar um outro tema central: o enorme poder que a música tem sobre as vidas emocional e pessoal, e, particularmente, sobre os jovens. Em uma entrevista de rádio concedida logo após a morte de George Harrison, o Sir. Bob Geldof apontou para o fato de que muitos membros da geração dos Beatles ainda conseguem reproduzir, de maneira acurada, cada nota, nuance e expressão dos breaks da guitarra de George em muitos dos sucessos dos Beatles: nós os ouvimos por muitas e muitas vezes em nossos quartos e salas, e, ainda hoje conseguimos lembrar muito bem deles.

Meus interesses de investigação derivam de um interesse sólido e entusiasta sobre muitas áreas da própria música. Conforme vocês ouviram, meus estudos foram nas áreas de psicologia do desenvolvimento e psicologia social: grande parte da minha produção tem sido devotada à aplicação das teorias e métodos de investigação psicológica a questões práticas da educação musical e artística, e eu fui atraído à Universidade de Roehampton por seu renome internacional nestas áreas. É bastante apropriado que nos encontremos nos arredores do imponente Froebel College, já que tive a honra de ser nomeado como Froebel Research Fellow em 2002 [2]. Isto envolve trabalhar com o pessoal da educação infantil em um projeto sobre a autonomia e a propriedade da aprendizagem das crianças pequenas, o que me reporta ao meu tema central.

O interno e o externo no desenvolvimento da criatividade nas crianças

Um dos conceitos fundamentais de Friedrich Froebel foi o conceito de unidade na diversidade: que as idéias e os objetos adquirem poder a partir de uma relação dinâmica que dispõem com seus opostos. Piaget sugeriu que o equilíbrio dinâmico entre aquilo que ele chamou de assimilação e acomodação – entre o mundo interno da criança e as pessoas, locais e coisas que encontra no cotidiano – é a principal fonte do desenvolvimento cognitivo. Froebel expôs a mesma idéia explicitamente: ‘Quando somos criativos damos corpo ao pensamento; tornamos visível o invisível’. Piaget e Froebel mantinham que é a própria criança, e não seus pais ou professores, quem proporciona a força propulsora para estas mudanças: ‘A auto-atividade da mente é a primeira lei da instrução...do simples ao complexo, do concreto ao abstrato, adaptados à criança e às suas necessidades, ela aprende avidamente enquanto brinca’.

A minha palestra de hoje reúne três destes equilíbrios dinâmicos, que subjazem áreas diferentes do meu trabalho: aquele existente entre o interno e o externo no desenvolvimento da criatividade nas artes pelas crianças; aquele encontrado entre os interesses percebidas por alunos e professores quando as crianças desenvolvem atividades criativas como parte do currículo escolar: e aquele entre o que acontece com os jovens dentro e fora da escola, que está emergindo hoje como, possivelmente, a questão mais importante da educação musical nos dias de hoje.

Diversos psicólogos e educadores tentaram desenvolver teorias de etapas ou fases do desenvolvimento artístico e musical infantil. O modelo espiral de Swanwick e Tillman (1986) de desenvolvimento da composição musical, por exemplo, tem gerado um grande interesse, assim como as idéias originadas na Universidade de Harvard por Howard Gardner e colegas. Maurice Galton e eu (veja Hargreaves, 1996) propusemos um mapeamento aproximado e pronto em cinco fases contendo as principais mudanças nas atividades artísticas das crianças, por idade. Trata-se de uma visão panorâmica do terreno ao invés de uma descrição detalhada e ‘focada’: os níveis de idade propostos são normas amplas e bastante aproximados. As cinco fases estão baseadas nas diferentes estratégias de representação adotadas pelas crianças; elas refletem os diferentes níveis de equilíbrio entre o mundo interno ou simbólico da criança e as convenções culturais e artísticas do mundo externo. Eu os ilustrarei através do exame de alguns desenhos de crianças, e, sem seguida, prosseguirei olhando mais especificamente para a música.

Como você pode ver, os primeiros rabiscos das crianças podem ser chamados de representações pré-simbólicas: embora existam indícios de uma crescente organização nos dois exemplos, não há nenhuma semelhança a qualquer objeto externo, apesar das crianças afirmarem o contrário! Gradativamente, estas representações dão lugar a desenhos ‘figurativos’, resumidos na familiar ‘figura girino’. Por que é que quase todas as crianças entre os 2 e 3 anos de idade desenham pessoas com os braços saindo da cabeça, quando elas sabem que não é isso o que acontece na vida real? Esta questão e suas implicações têm sido objeto de diversos estudos experimentais e teorias psicológicas. Arriscando uma super-simplificação, eu apenas direi que a resposta provavelmente tem mais a ver com a tarefa complexa de representação de objetos tri-dimensionais em uma superfície bi-dimensional (algo que ainda está bastante longe do meu alcance!), que com qualquer tipo de imaturidade conceitual.

O que nós chamamos de fase ‘esquemática’ é ilustrado por estas duas tentativas de desenhar um lago com árvores ao seu redor. A maioria das crianças com idade inferior a 8 anos simplesmente desenha as árvores dispostas obliquamente em ângulos retos ao redor do lago, mas como podemos ver, Caroline vai além disso. Ela se dá conta que as árvores crescem para o alto e não para baixo, e tenta bravamente mantê-las para o alto enquanto circunda o lado esquerdo do lago; embora eventualmente desista e desenhe as árvores da parte inferior indo em direção ao subterrâneo. O desenho de Laura revela o movimento em direção à próxima fase do desenho no ‘sistema de regras’ que serve para organiza-lo. Neste caso, ela tenta incluir uma linha no chão onde estão plantadas algumas árvores, mas o lago ainda é desenhado como se fosse visto de cima, de modo que duas perspectivas visuais coexistam. Eventualmente, o conhecido ‘desenho do espaço aéreo’ emerge e persiste na maior parte das crianças até por volta dos 10 anos: a seção azul superior é geralmente designada de ‘céu’, ao seção verde inferior é o ‘chão’, e os psicólogos que fazem questões tolas às crianças sobre o que há entre as duas seções geralmente encontra uma resposta boba e incrédula!

Muitos embora tais descrições desenvolvimentistas sejam úteis no planejamento dos currículos, muitos pesquisadores têm estado insatisfeitos com elas. A idéia piagetiana de que o desenvolvimento procede de maneira linear, de modo que todas as crianças são vistas como se desenvolvessem em estágios semelhantes e em direção a fins semelhantes, é demasiado inflexível e prescritiva. A abordagem alternativa denominada ‘sócio-cultural’, que se tornou a visão dominante, é a de que o desenvolvimento artístico possui diversos fins que podem ser atingidos por inúmeras rotas, e que estas direções são fortemente delineadas pelos ambientes social e cultural. O desenvolvimento é mais visto como um mosaico com ramificações do que uma linha única indo ‘para cima e para baixo’.

Adrian North e eu aplicamos esta abordagem à psicologia da música em um livro que tentou redefinir a natureza social do comportamento musical (Hargreaves e North, 1997): música é essencialmente algo que fazemos com e para as pessoas. O crescimento veloz das pesquisas em psicologia da música nos últimos anos, e seu impacto em outras disciplinas tem sido acompanhado por mudanças dramáticas na natureza do comportamento musical e da experiência musical em si. Desenvolvimentos tecnológicos tais como a gravação digital e o armazenamento de sons, o download de arquivos em formato MP3 da internet, e os DVDs e walkman que estão disponíveis a preços relativamente acessíveis já exerceram efeitos variados sobre as formas de trabalho dos músicos. Não sabemos ainda o que virá a seguir: mas mencionarei apenas três impactos imediatos.

O primeiro é que a natureza da musicalidade em si mudou. Ser um músico nos dias de hoje inclui algum conhecimento de improvisação e arranjo, hardware e software musical, gravação e mixagem: inclusive, pode-se argumentar que é possível compor, gravar e tocar música sem ter tido que passar muitos anos aprendendo e praticando um instrumento. A revolução da maneira como a música é gravada, processada e armazenada nos leva a pensar que muitos dos papéis tradicionalmente delineados, como o papel do compositor, do intérprete, do arranjador, do engenheiro de som, e até mesmo do ouvinte, com suas associações hierárquicas de status, estão se tornando obscuras.

O segundo efeito pode ser chamado de ‘democratização’ dos estilos e gêneros musicais. Considerando que praticamente qualquer obra musical está agora à nossa disposição em qualquer local ou hora, os estereótipos antigos de certos gêneros como ‘sério’ ou ‘popular’ ruíram há alguns anos. Hoje, é possível ouvirmos Vivaldi, Mozart ou Bach tanto em um antiquário quanto em uma estação de trem, e a existência de paradas de sucesso dos ‘clássicos mais populares’ tais como os 100 maiores do Hall da Fama das FM’s de música clássica, fala por si. Músicas de todos os estilos e gêneros não á apenas onipresente, mas ainda carrega consigo um número bem menor de associações de ‘respeitabilidade’ e status social que em qualquer outro momento no passado.

Este fato levou ao terceiro impacto, isto é, os usos que as pessoas fazem da música no cotidiano. Adrian North conduziu uma elegante série de estudos experimentais em contextos da vida real tais como restaurantes, bares, bancos, lojas, linhas de montagem de computadores, academias e clubes de relaxamento, e até mesmo os telefones com musiquinha de espera (veja North e Hargreaves, 1997). Seu trabalho demonstra que a música preenche muitas funções cognitivas, sociais e emocionais através da demonstração de que tem poder para influenciar comportamentos diversos como a escolha de um produto pelo consumidor e comportamentos associados às compras; eficiência no trabalho; percepção temporal e a tendência de aguardar por sinais; velocidade de ingestão de comidas e bebidas; eficiência nas tarefas cognitivas; humores e estados emocionais das pessoas, suas atitudes em diferentes ambientes e a probabilidade de lá permanecerem.

De maneira geral, estes resultados específicos aliados à rápida ascensão da psicologia da música têm implicações imensas para a radiodifusão, a mídia, a indústria de consumo, o sistema de saúde e também a educação. A música é, de fato, uma poderosa ‘trilha sonora da vida’, para usar a frase memorável de Simon Frith. Dois estudos recentes demonstraram isso diretamente através do contato estabelecido com adultos voluntários em intervalos regulares porém randômicos, questionando sobre suas atividades nos referidos momentos. No primeiro, realizado na Universidade Keele (Sloboda, O’Neill e Ivaldi, 2001), 8 pessoas que foram ‘bipadas’ por um Pager eletrônico relataram ouvir música durante 44% do total dos episódios. O segundo, conduzido por Adrian North e por mim (North e Hargreaves, 2004) [3], encontrou um grau alto semelhante de envolvimento com a música em uma amostra de 346 pessoas que receberam uma mensagem de texto gerada em página web por dia em seus telefones celulares.

Deixe-me agora aplicar a perspectiva social ao aprendizado musical das crianças através da análise de uma pequena improvisação musical entre um adulto e duas crianças pré-escolares. Caso você esteja imaginando, eu não vou apenas tocar mas também cantarei para vocês hoje: os músicos são meus dois filhos (aos 4 e 5 anos de idade) e eu. Um deles está sentado no público [4]: ele ainda reclama por eu usar, sem nenhuma vergonha, seu material nas minhas palestras e publicações por muitos anos, sem passar nenhuma fração dos royalties a ele!

Vocês vão ouvir 12 compassos de um blues improvisado espontaneamente, todos pertencentes à ‘Woke up this morning’ [5], como vocês todos perceberão. Eu iniciei a canção ao piano e depois continuei como acompanhante: você ouvirá que o meu papel se torna subsidiário, assim que os meninos assumem o comando. Preste atenção especialmente na interação que ocorre entre nós três: em como Jon assume a liderança através do desenvolvimento e transformação da idéia inicial que eu lhe dou: e como Tom exerce a função de um grupo de backing vocal composto por uma única pessoa e de um naipe de metais, e tenta assumir a liderança da situação no final.

Esta peça curta merece uma atenção detalhada já que reúne muitos aspectos da essência da criatividade colaborativa. Note como cada membro do trio responde aos outros membros em forma de conversa, de tal modo que é o grupo como um todo, e não um membro individual, quem cria a canção. O tempo é sincronizado de maneira precisa de modo que cada membro complementa e não interrompe o outro. A canção se baseia em materiais do cotidiano: ela começa com um carro que por acaso está estacionado ao lado de fora, e se refere à venda de garagem que tínhamos visitado recentemente. A referência de Jon a ‘The cowboy who turned into a bun’ [6] é, sem sombra de dúvida, uma referência a ‘Ernie, the fastest milkman in the west’ [7] que alguns de vocês devem recordar como a canção de Benny Hill que esteve nas paradas de sucesso. Nesta canção, o herói perdeu um tiroteio para Dan o padeiro, que o desafiou a ‘correr por seus fundilhos’, um trocadilho terrível que Jon percebe! Mesmo nesta idade, estes dois pré-escolares britânicos já tinham assimilado, não apenas o primeiro verso do blues de 12 compassos, mas também as notas da escala de blues, o fraseado e as convenções do estilo vocal, além do sotaque americano.

Dois outros elementos merecem ser mencionados no que se refere à criatividade e ao aprendizado. O primeiro é o balanço entre a arbitrariedade e a estrutura. Diversos aspectos desta pequena canção eram arbitrários – poderiam ter sido conduzidos em diversas direções diferentes, e aconteceram desta maneira por conta de circunstâncias imediatas tais como o carro estacionado ao lado de fora, e nossa visita à venda de garagem (conferir se foi este o termo usado). Isso foi armado no contexto de um conjunto de convenções musicais e culturais, no entanto – naquelas pertinentes a um blues de 12 compassos. A negociação do balanço entre arbitrariedade e estrutura constitui a essência de sucesso na improvisação e criatividade em diversos domínios. O outro elemento parte de nossos respectivos papéis: muito embora eu tenha iniciado e mantido a continuidade no piano, a liderança da canção foi rapidamente tomada por Jon; não ficou nada claro quem emergiu como professor e como emergiu como aprendiz. O ensino nas artes criativas é um processo dual que envolve aprendizado e criação de estrutura: estes dois conceitos são bastante usados nos estudos atuais sobre o ensino e aprendizado, e refletem a influência do psicólogo russo Lev Vygotsky.

Interesses internos e externos no ensino das artes

O que acontece com a criatividade das crianças quando elas se movem além da família e ingressam na escola, o que inclui as questões e propostas de professores, currículos, planos de aulas e horários? Muitos professores sentem que há muito controle central do aprendizado das crianças no Currículo Nacional na Inglaterra, e é útil considerarmos a perspectiva de Froebel (1826) nesta questão:

 

Nós possuímos uma quantidade enorme de conhecimentos externos que têm sido impostos sobre nós. Temos poucos conhecimentos próprios que tiveram origem em nossas mentes e cresceram a partir daí...Devemos cessar de estimar o sucesso de nossa educação e de nossas escolas em termos desta demonstração de conhecimento. Será que precisamos marcar nossas crianças como se elas fossem moedas?

Isto levanta a questão dos interesses internos e externos, da auto-atividade e, novamente, da propriedade no ensino das artes. Se uma criança cria uma pintura original ou uma peça musical em uma aula dirigida pelo professor, para quem ela o faz, para si ou para o professor? Esta foi uma das muitas questões que nós investigamos no projeto DELTA (Desenvolvimento da Aprendizagem e do Ensino nas Artes) [8], uma investigação dos problemas de avaliação de criatividade e ensino das artes da Universidade de Leicester no final dos anos 80. Neste projeto, nós trabalhamos com crianças do ensino fundamental e seus professores em atividades de música, artes visuais e redação por um período de meses. Retornamos, recentemente aos materiais coletados para trabalharmos em alguns dados obtidos através de entrevistas, em que professores e alunos foram questionados sobre suas idéias dos objetivos das atividades e seus papéis nas mesmas (Hargreaves, Galton, Robinson & Windridge, 2002).

As respostas dos professores foram razoavelmente diretas e previsíveis: - eles disseram que o trabalho artístico criativo permite que os alunos desenvolvam capacidades conceituais e analíticas, habilidades e técnicas específicas às artes, cooperação social, criatividade e auto-expressão. Em outras palavras, eles tinham clareza que a idéia básica era a de proporcionarem condições excelentes para que as crianças pudessem desenvolver suas habilidades, bem como uma aprendizagem autônoma e auto-conduzida. Segundo eles, as crianças eram claramente as ‘donas’ do trabalho que produziram.

Entretanto, as crianças tinham uma visão bem mais complexa e sofisticada. Quando questionadas ‘quando você sabe que seu trabalho está terminado?’, por exemplo, uma criança respondeu ‘Você o leva para a professora X, ela o examina e diz se está pronto ou não’. Esta criança percebeu que o interesse foi definido pela professora, mas, uma outra resposta sugere que isso nem sempre acontece: ‘Eu não gostaria que ela nos dissesse o que fazer. Se ela assim quisesse, ela poderia fazer o trabalho, e ele não seria nosso’. Do ponto de vista das crianças, a questão de propriedade é bem mais complicada: embora eles se percebam como criadores de interesses no sentido de que a obra lhes pertence, a mesma é realizada num contexto em que as regras são ditadas pelo professor, pelo programa de curso e pela escola. Um dos critérios principais para uma boa pintura, por exemplo, pode ser o fato da mesma poder ser colocada na parede.

As respostas para a questão ‘como você se sentiria se a professora lhe pedisse para modificar seu trabalho?’ também revelam uma compreensão de que há dois interesses conflitantes: ‘Eu gostaria de estar na posição d’ela. Gostaria que ela fosse eu e eu fosse, e aí eu poderia pedir a ela para fazer tudo novamente’.

‘Ela é mais inteligente que eu, ela é a professora e eu sou apenas uma criança. Ela deve saber o que está fazendo, mas eu pensei que ficou bom e modifiquei um pouco, mas se ela ainda me insulta eu não acho legal, eu posso ficar bastante aborrecido.’

Outras duas respostas à mesma questão revelam uma visão ainda mais sofisticada da maneira como o esforço ou o compromisso de alguém pode depender do grau em que o interesse é definido pelo professor:

‘Ela deve nos dizer o que fazer. Ela é professora. Mas eu não ficaria muito feliz. Eu me sentiria como se estivesse fazendo dez vezes melhor.’

‘Se eu tivesse dado o melhor de mim, seria ruim. Seu eu nem tivesse tentado, não seria mal.’

A importância final da atividade auto-conduzida e da propriedade nos trabalhos nas artes criativas, e a corolária do papel de apoio do professor é resumida nestas duas respostas à questão ‘o que os professores te ensinam?’

‘Eles podem lhe ensinar, mas de uma forma em que você tenha de ensinar a si mesmo. Eles não podem fazer você praticar muito (no caso da música)’

‘Eles podem lhe ensinar a soletrar e tudo o mais, mas o resto depende de você...Se você quer fazer uma estória, tudo depende de você, não depende muito do professor. Eles desempenhar seu papel de ensinar, mas depende de você faze-lo’.

Identidades musicais dentro e fora da escola

A criatividade parece ser negociada dentro de um conjunto de regras sociais implícitas, e a questão de ‘quem define o interesse’ pode constituir uma peça chave para a questão mais crucial de todas da educação musical da atualidade (ao menos na Inglaterra), aquilo que ficou conhecido como o ‘problema da música da escola’. Durante a última década, evidências oficiais tais como as estatísticas dos exames admissionais e relatos da inspeção escolar sugerem que grande parte da educação musical escolar secundária fracassa na Inglaterra, e é ensinada de maneira pouco imaginativa e fora de contato com os interesses dos alunos. Este pode não ser um problema exclusivamente inglês: comparações internacionais que conduzi juntamente com Adrian North (Hargreaves & North, 2001) sugerem variações nacionais vastas, e o problema pode ser menos agudo ou abranger um outro espectro na Escócia, País de Gales e Irlanda, assim como em outros países.

Uma investigação independente e em larga escala, dirigida por John Harland e seus associados na Fundação Nacional de Pesquisas Educacionais (Harland, Kinder, Lord, Stott, Schagen, Haynes, Cusworth, White & Paola, 2000) examinou quatro fontes distintas de evidências, qualitativas e quantitativas, sobre artes visuais, música e drama de 152 escolas secundárias na Inglaterra. Eles concluíram que a música era a ‘mais problemática e vulnerável forma de arte’ no grau do GSCE, e que ‘as dimensões prazer do aluno, relevância, desenvolvimento de habilidades, criatividade e expressão estavam geralmente ausentes’ (p.568).

Esta conclusão foi altamente reportada pela mídia, e influenciou bastante a opinião pública, apesar de um exame mais aprofundado da metodologia do estudo revelar algumas limitações sérias nos critérios de amostragem, e nas evidências citadas como explicação para a falência da música em particular. Mas deixando de lado os prós e os contras do estudo, é indisputável o fato que apenas 7% de todos os alunos optem pela música no nível GCSE, e que muitos professores e alunos estejam descontentes com o ensino da música no Currículo Nacional da Inglaterra. Isto é surpreendente já que a audição da música pop é facilmente a atividade de lazer mais comum de grande parte dos adolescentes; sondagens realizadas no Reino Unido, na Escandinávia e em outros países (veja, por exemplo Bjurström & Wenhall, 1991; North, Hargreaves & O’Neill, 2000) mostram, consistentemente, que o típico adolescente de 13 anos de idade ouve música por aproximadamente 2/3 das horas do dia, muito mais que o tempo gasto em outras atividades de lazer.

Há uma diferença óbvia entre ‘a música da escola’ e a música de fora da escola. A música pop exerce um papel central no estilo de vida da maioria dos adolescentes e, de fato, constitui uma ‘insígnia de identidade’para muitos (veja Tarrant, North & Hargreaves, 2000). Como os psicólogos podem explicar a maneira como estas ‘insígnias de identidade’ se desenvolvem, e isso poderia explicar como as crianças pequenas conseguem ou não conseguem enxergarem-se como futuros músicos, e, portanto, determinarem seus progressos futuros na música? Raymond MacDonald, Dorothy Miell e eu tentamos pontuar exatamente aquilo que pode ser compreendido como ‘identidades musicais’ (MacDonald, Hargreaves & Miell, 2002), com base em trabalhos recentes e ‘teorias próprias’, e, particularmente, nas idéias de Carol Dweck (1999). Dweck sugere que as pessoas têm visões diferentes de suas próprias habilidades: algumas as consideram fixas, de modo que a pouco que possa ser feito para modifica-las – ou você é bom ou não é em matemática, por exemplo, de forma que muita tarefa de casa e prática não adianta muito.

Por outro lado, outros demonstram um comportamento ‘centrado na maestria’ ao invés de um comportamento de impotência, por acreditarem que o trabalho que fazem pode influenciar suas habilidades. Isto significa que independentemente de as crianças pensarem ou não que são boas em matemática, linguagem, esportes e inclusive música, o pensamento pode ser mais importante do que o grau real de suas habilidades. Isto é particularmente importante para os alunos que se acham ‘não-musicais’, talvez devido a um comentário desapercebido de um professor, responsável ou outro aluno, e que pode conduzir a um ciclo de ‘não-tentar’, e, assim tornando-o menos capaz, fazendo o tentar ainda menos, e assim por diante. Em outras palavras, as crianças constroem ativamente suas identidades musicais, e estas podem determinar habilidades, confiança e rendimento.

Esta idéia pode ser útil na tentativa de explicar a autenticidade e o sucesso da música dentro e fora da escola, e introduz uma outra idéia: da existência de um terceiro ‘ambiente’ (veja Heath, 2001). Isto pode se referir àqueles locais que não são nem a escola e nem a casa: localidades como playgrounds, garagens, clubes de jovens ou a própria rua. Entretanto, o terceiro ambiente também pode ser o quarto de dormir, ou até mesmo a sala de aula: o fator crucial é a ausência de qualquer atividade formal ou de supervisão por um adulto. As atividades musicais do terceiro ambiente são auto-conduzidas, e geralmente incluem índices elevados de motivação e compromisso. As composições groundbreaking de Lennon, McCartney e Harrison foram feitas nestes ambientes e pouco tinham a ver com a música da escola!

A Autoridade em Qualificações e Currículos (QCA [9]) da Inglaterra levou em conta estas questões em suas grandes discussões acerca do futuro da educação musical no século 21 e eu concluirei com uma pequena descrição de alguns resultados obtidos em um projeto recente que realizei com Nigel Marshall e também com Alexandra Lamont e Mark Tarrant da Universidade de Keele (veja Lamont, Hargreaves, Marshall e Tarrant, no prelo).

Fizemos uma sondagem através de questionários com aproximadamente 1500 alunos do ensino fundamental e médio, realizamos entrevistas com os dirigentes e com os principais professores de música e de artes das escolas, e grupos de focos aprofundados com cerca de 134 dos alunos acima mencionados. Isto gerou uma grande quantidade de dados, e o resultado principal foi o surgimento de uma imagem mais otimista da música na escola do que sugerido pela pesquisa do NFER apenas 2 ou 3 anos antes. Os questionários, por exemplo, mostraram que aproximadamente 2/3 de todas as crianças (com 4, 6, 7 e 9 anos) relataram gostar das aulas de música. Esmiuçando a figura percebemos um declínio geral e gradativo dos quatro grupos etários, como era de se esperar, mas também que os níveis são surpreendentemente altos. Há ainda um efeito interessante de gênero: enquanto a apreciação das meninas declinou regularmente com a idade, no caso dos meninos, há um ligeiro aumento dos 6 aos 9 anos.

Meu palpite é o de que tudo isso provavelmente advém da introdução de computadores e ICT na educação musical do ensino médio dos últimos 10 anos, e do conseqüente alargamento do programa do GCSE, incluindo o rock e a música pop. Quando isso tudo começo a acontecer nos anos 80, Ann Colley, Chris Comber e eu conduzimos um projeto financiado pelo Fundo Leverhulme. Nós investigamos os efeitos da introdução da computação, na época vista como uma área bastante masculina, na educação musical escolar, que era e ainda é de tendência feminina. Os resultados do projeto prognosticaram o que acabo de descrever: parece que os desenvolvimentos tecnológicos tiveram muito mais o efeito de trazer mais meninos para a educação musical escolar que a criação propriamente dita de oportunidades técnicas e expressivas para as meninas.

Examinando em detalhes o porquê de os alunos relatarem prazer nas aulas de música, há indícios de que ‘tocar instrumentos musicais’ e ‘cantar’ são as atividades mais populares de tosas; estas são as habilidades que permitirão que eles próprios executem e componham música por conta própria. O questionamento aos alunos sobre suas atividades musicais fora da escola sustenta esta interpretação. Não ficamos surpresos em descobrir que mais da metade da amostra disse que criava ou tocava música fora da escola durante uma quantidade substancial de tempo a cada semana, e que aqueles que não o faziam, mais da metade reportou ter vontade de faze-lo. O que os alunos parecem mais gostar sobre a música, dentro e fora da escola, é a oportunidade de desenvolver as habilidades e a confiança para ‘fazer sozinhos’, serem autônomos e proprietários de seus próprios fazeres musicais. Isso nos leva de volta à insistência de Froebel sobre a importância da ‘auto-atividade’ na aprendizagem, e o tema central de expressar o interno através do externo.

Isto mostra como podemos acelerar o declínio aparente do ‘problema da música na escola’. Os contextos do fazer musical são fundamentais no ato de determinar sua autenticidade para os aprendizes; precisamos ir além da idéia de que a ‘música na escola’ envolve o aprendizado, os interesses dos professores e gêneros ‘sérios’, enquanto a música ‘fora da escola’ envolve o prazer, os interesses de cada um e gêneros mais populares. Fico animado pelas pistas obtidas em nossas pesquisas que sugerem que esta visão possa estar mudando mais rapidamente do que se pode esperar.

No presente momento, estamos investigando esta questão sob a ótica do professor em um projeto financiado pelo ESRC e intitulado Projeto Identidades dos Professores na Educação Musical (TIME) [10]. Graham Welsh, Ross Purves, Nigel Marshall e eu estamos acompanhando o progresso de aproximadamente 150 estagiários de educação musical em seus cursos em universidades e conservatórios, e, através de seus primeiros empregos como professores, estamos investigando as mudanças em suas identidades pessoais enquanto músicos e/ou professores. Resultados preliminares confirmam que a grande maioria é treinada na tradição da música clássica ocidental, o que representa claramente um fator crítico. Nós também estamos investigando o grau em que estas questões são particularmente Inglesas ou Britânicas, através de estudos comparativos do projeto TIME na Suécia e em colaboração com meus antigos colegas Bengt Olsson e Göran Folkestad da Universidade de Gotemburgo. Aprendi e adquiri uma quantidade enorme de informação devido ao trabalho que realizei com eles em minhas atuações como professor visitante da Universidade de Gotemburgo nos últimos dez anos, e é muito bom estar embarcando em uma outra fase de nosso relacionamento.

A educação musical precisa considerar estas mudanças e repensar algumas distinções fundamentais. Estas incluem a distinção entre ‘especialista’ e ‘generalista’ ou música de ‘currículo’ na escola; a distinção entre o fazer musical formal e informal, dentro e fora da escola; a distinção entre o fazer musical institucional e da comunidade, e até mesmo, a distinção entre professor e aluno. A relação entre a música dentro e fora da escola é paradoxal – assim que os professores e outros adultos tentam se envolver no ‘terceiro ambiente’, ela deixa de sê-lo. O desafio dos educadores musicais é o de promover o conhecimento, as habilidades e os recursos para sustentar a ‘música interna’ e própria dos alunos, ao mesmo tempo em que permanecem ‘sem’ ela.

Referências

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Notas

[1] Nota da tradutora: esta palestra foi ministrada em maio de 2003 no Centro Internacional de Pesquisa em Educação Musical da Universidade de Surrey-Roehampton, onde o Prof. Hargreaves lecionou até 2004, quando recebeu o convite para ocupar o cargo de Diretor da Faculdade de Educação da Open University de Londres. Sua palestra no SINCAM será baseada no presente texto, com alguns acréscimos de dados oriundos de pesquisas recentes e demais reflexões.

[2] Pesquisador Froebel de 2002 – cargo de enorme prestígio na área de educação

[3] Nota da tradutora: O referido artigo acaba de ser publicado pela renomada revista científica Music Perception.

[4] Na palestra realizada na Inglaterra, o filho do Prof. Hargreaves esteve presente, o que não é obviamente o caso aqui.

[5] Acordei hoje pela manhã.

[6] O vaqueiro que se transformou em um pãozinho’.

[7] Ernie, o leiteiro mais rápido do oeste.

[8] DELTA: Development of Learning and Teaching in the Arts

[9] QCA: Qualifications and Curriculum Authority

[10] TIME – Teachers Identities in Music Education

David Hargreaves é professor de desenvolvimento infantil e diretor do Centro Internacional de Pesquisa em Educação Musical na Universidade de Roehampton. Foi editor do periódico Psychology of Music entre os anos de 1989 a 1996, e chair da comissão de pesquisa da Sociedade Internacional de Educação Musical (ISME) entre 1994 e 1996. Seus livros, que tem sido traduzidos em 14 idiomas, incluem The Developmental Psychology of Music (Cambridge University Press, 1986), The Social Psychology of Music (com Adrian North, Oxford University Press, 1997), e Musical Identities (com Raymond MacDonald e Dorothy Miell, Oxford University Press, 2002). Tem aparecido na BBC TV e rádio como pianista e compositor de jazz, e é organixta na igreja de sua cidade. Recentemente foi agraciado com um doutorado honorário pela Universidade de Gothenburg, Suécia, por sua contribuição para a criação de um departamento de pesquisa em educação musical na Escola de Música e Educação Musical daquela universidade.