Revista eletrônica de musicologia

Volume VIII - Dezembro de 2004

home . sobre . editores . números . submissões . versão em pdf

 

Blirium C 9 de Gilberto Mendes: um estudo de análise em uma peça com escrita indeterminada

Maria Helena Maillet Del Pozzo (UNICAMP)

Resumo: Este estudo faz parte de uma pesquisa maior sobre a Indeterminação na Música Brasileira Contemporânea para Piano. O principal questionamento surgido com a pesquisa foi a escolha de critérios para a análise de uma peça com escrita indeterminada. Como o assunto não é abordado especificamente na bibliografia sobre a análise da música do século XX ou em livros sobre a história da música contemporânea, as reflexões sobre estes critérios surgiram a partir do repertório selecionado. Através de um estudo preliminar das peças selecionadas, verificou-se a diversidade de possibilidades do emprego da indeterminação, e a necessidade de escolha de critérios mais precisos tanto para a análise da indeterminação, como para análise de aspectos mais detalhados de cada peça. Foram selecionados então os seguintes critérios para a análise de uma obra com escrita indeterminada: material, notação e indeterminação. No decorrer do trabalho, estes critérios serão justificados, discutidos e abordados sob a luz de uma bibliografia específica, sendo então aplicados na análise da obra Blirium C 9 de Gilberto Mendes. Na conclusão, serão discutidos os resultados deste estudo de análise e a validade dos critérios estabelecidos.

 

Introdução

Podemos afirmar que o século XX foi diferente de todas as outras épocas musicais: cada período histórico musical do passado possuía características determinadas de um estilo musical. Podemos falar em termos de estilo barroco, estilo clássico; mas não podemos falar de estilo moderno ou contemporâneo, por causa desta diversidade. O musicólogo argentino Juan Carlos Paz assume então uma posição bastante lúcida ao afirmar que:

nossa época não conta com estilo mas com tendências – não apenas na ordem ou no plano criacional, mas na própria atitude de degustador de sons, ritmos, formas e cores, estando assim sujeitas às imposições de cada ciclo vital, mais do que de um período histórico determinado (PAZ, 1976, p. 28).

Entre as diversas tendências – ou recursos composicionais - surgidas no século XX, a indeterminação foi aquela que provocou maiores mudanças nos conceitos fundamentais – aceitos até então - sobre o posicionamento do compositor, do intérprete e da própria obra.

O termo indeterminação foi utilizado pela primeira vez por John Cage na conferência Indeterminacy proferida em 1958 no Curso de Verão de Darmstadt, sendo que este compositor também é considerado o precursor da utilização do acaso (na obra Music of Changes, 1951).[1]

Baseado nas informações contidas no texto de Cage, Pritchett define a Indeterminação como sendo: “a habilidade de uma peça em ser executada de maneiras substancialmente diferentes – ou seja, a obra existe de tal forma que é dada ao intérprete uma variedade de maneiras de executá-la”.(PRITCHETT, 1995, p. 107-8).

Outros termos também utilizados são acaso e aleatório, mas eles possuem uma definição um pouco diferente. Segundo a terminologia utilizada por Cage em outra conferência proferida também em Darmstadt em 1958 (intitulada Changes [2]),acaso se refere ao uso de algum tipo de procedimento ao acaso no ato da composição. Como exemplo, podemos citar Music of Changes (1951) de Cage. Nesta obra, todos os elementos da estrutura musical – altura, silêncio, duração, amplitude, tempo e densidade – foram escolhidos usando cartas derivadas do I Ching, o livro chinês das possibilidades, e pelo lançamento de moedas. Uma obra como esta, uma vez transcrita para o papel, será sempre executada da mesma maneira.

Outro termo que é também utilizado para designar peças que se utilizam do acaso, é aleatório, embora seja mais usado pelos compositores europeus e tenha um significado um pouco diferente. Foi utilizado por compositores como Pierre Boulez e Witold Lutoslawski para distinguir este movimento do uso mais extensivo do acaso pelos compositores americanos. O termo é definido em um sentido mais restritivo por Werner Meyer-Eppler: “um processo é denominado aleatório quando o seu curso é determinado em geral, mas depende do acaso nos detalhes.”(SIMMS, 1986, p. 369). Este termo é empregado então para designar o processo da aplicação limitada da indeterminação. Neste trabalho, considera-se então que a indeterminação engloba o processo aleatório, e que este último deve ser empregado apenas em um sentido histórico. A utilização do acaso, contudo, foi um movimento que aconteceu primeiramente nos Estados Unidos no início da década de cinqüenta, e depois teve sua contrapartida Européia (ao longo da década de cinqüenta).

No Brasil, o início da utilização da indeterminação e de novas notações está associado ao nome do grupo Música Nova – formado inicialmente pelos compositores Damiano Cozzella, Gilberto Mendes, Rogério Duprat e Willy Corrêa de Oliveira, entre outros – ao apresentar suas idéias no Manifesto Música Nova: compromisso total com o mundo contemporâneo, na Revista Invenção:

música nova: procura de uma linguagem direta, utilizando os vários aspectos da realidade (física, fisiológica, psicológica, social, política e cultural) em que a máquina está incluída. extensão ao mundo objetivo do processo criativo (indeterminação, inclusão de elementos ‘alea’, acaso controlado.[3]

No Brasil, a indeterminação começou a ser utilizada pelos compositores do grupo Música Nova no início da década de 60, sendo difundida para uma imensa gama de compositores brasileiros a partir de então.

Justificativa

O interesse pela pesquisa surgiu a partir de um estudo prévio sobre indeterminação realizado em 1999 e intitulado Indeterminação: O desafio da Liberdade.[4] Este estudo serviu para avaliar a falta de bibliografia sobre a indeterminação na música brasileira: faltam dados históricos, levantamento do repertório, análise das peças e estudo da notação empregada neste repertório. A partir desta constatação surgiu o interesse de preencher esta lacuna na bibliografia brasileira. No levantamento do repertório realizado junto a acervos, bibliotecas e através de correspondência com compositores, foram encontradas 40 peças. Foi possível verificar que muitas peças só estão disponíveis em manuscritos e a quase totalidade delas empregam novos símbolos de notação. Esta pesquisa pretende contribuir com a bibliografia sobre o assunto, tornando acessível aos intérpretes e pesquisadores um repertório pouco conhecido e executado.

A Busca por Ferramentas

O principal questionamento surgido com a pesquisa foi a escolha de critérios para a análise de uma peça com escrita indeterminada. Como o assunto não é abordado especificamente na bibliografia sobre a análise da música do século XX ou em livros sobre a história da música contemporânea, as reflexões sobre estes critérios surgiram a partir do repertório selecionado.

Inicialmente, as peças selecionadas pela pesquisa foram classificadas segundo aspectos gerais do emprego da indeterminação. Os vários itens desta classificação foram escolhidos a partir das próprias características das peças:

1. Forma variável

2. Indeterminação restrita a um trecho da peça

3. Indeterminação restrita a 1 ou 2 parâmetros sonoros

4. Toda a peça é caracterizada pela indeterminação

5. O intérprete ‘escreve’ sua partitura ou prepara trecho com recursos eletroacústicos

6. Trecho com improvisação

Através desta classificação preliminar, verificou-se a diversidade de possibilidades do emprego da indeterminação (inclusive dentro de um mesmo tipo de classificação), e a necessidade de escolha de critérios mais precisos tanto para a análise da indeterminação, como para análise de aspectos mais detalhados de cada peça. A partir disso, foram procurados outros critérios (além da indeterminação) para a análise das peças.

Uma vez que a maioria das peças utiliza novos símbolos de notação, surgiu a necessidade de decodificar as informações dadas pelo compositor. Então o primeiro critério foi escolhido: o estudo da notação empregado nas peças.

Outra questão seria sobre o próprio emprego da indeterminação, ou seja, como esta técnica de composição foi utilizada e quais os parâmetros musicais afetados pela indeterminação. Este segundo critério influenciou diretamente a escolha do terceiro: para avaliar melhor os parâmetros musicais afetados pela indeterminação, é necessário conhecer os materiais empregados pelo compositor naquela obra, ou seja, como foram utilizadas as durações, alturas, dinâmicas, timbres e outros.

Desta maneira, chegamos aos três critérios principais estabelecidos para o estudo da análise: notação, indeterminação e material. A partir disto, foi preciso decidir como seria realizada a análise de cada um destes critérios. Estas escolhas estão expostas abaixo segundo cada um dos critérios selecionados. Outro aspecto considerado foi a necessidade de uma análise sucinta, pois foram selecionadas quarenta peças para a pesquisa, sendo que o trabalho final ficaria muito longo caso se optasse por uma análise dissertativa e longa.

Análise do Material

O esquema empregado na análise do material é derivado do proposto por John White em Compreensive Musical Analysis no que diz respeito às suas Micro, Média e Macro estruturas.[5] Na Micro Análise, White considera a percepção detalhada da melodia, harmonia e ritmo. A Médio Análise se refere às relações entre frases e outras unidades de tamanho médio, tudo aquilo que não se encaixa nem em uma categoria muito pequena nem muito grande. A Macro Análise, por sua vez, descreve o meio instrumental ou vocal e o tempo total da obra, lidando com os parâmetros mais amplos da obra.

Dentro de cada uma destas estruturas, White considera os aspectos de ritmo, melodia, harmonia e som. O autor exemplifica estes quatro aspectos musicais através de peças escritas desde a Idade Média até o século XX. Pelo fato da música moderna e contemporânea prescindir, muitas vezes, dos aspectos tradicionais da melodia e harmonia, procurou-se utilizar termos mais apropriados e valorizar os aspectos de dinâmica, timbre e textura, que se tornaram elementos importantes da estrutura da música do século XX.

Foram selecionados então, alguns parâmetros e terminologias do livro Materials and Tecniques of Twentieth-Century Music de Stefan Kostka para a subdivisão das estruturas e análise do material: formações de escalas, acordes e simultaneidades, timbre e textura, melodia e condução de vozes, ritmo e outros.

Foi acrescentada também a terminologia proposta por Hans Joaquin Koellreutter em Terminologia de uma Nova Estética da Música para o estudo da métrica:

Sendo assim, para a análise do material foram incluídas as estruturas de Micro, Média e Macro Análise de John White, sendo que a Média Análise está subdividida em compasso, altura, duração, métrica, andamento, dinâmica, timbre e textura.

Análise da Notação

Foi realizado um estudo prévio sobre a notação contemporânea, que incluiu a leitura e a revisão da bibliografia sobre o assunto. Os livros consultados foram os seguintes (os dados completos se encontram em Referências Bibliográficas):

ANTUNES, Jorge. Notação na música contemporânea.
BRINDLE, Reginald Smith. The New Music - The Avant-Garde since 1945.
COLE, Hugo. Sounds and Signs: Aspects of Musical Notation.
KARKOSCHKA, Erhard. Notation in new music.
PERGAMO, Ana Maria Locatelli. La Notation de la Musica Contemporanea.
RISATTI, Howard. New Music Vocabulary – A Guide to Notational Signs for Contemporary Music.
STOCKHAUSEN, Karlheinz. “Musique et graphisme (1959)”. In: Musique en Jeu.
WIDMER, Ernst. “Perspectivas Didáticas Da Atual Grafia Musical na Composição e na Prática Interpretativa – Grafia e Prática Sonora”. In: Symposium Internazionale sulla Problematica dell’attuale Grafia Musicale.
ZAMPRONHA, Edson. Notação, representação e composição.

A partir desta revisão, foi elaborado um estudo sobre a notação contemporânea, incluindo os diversos tipos de classificação da notação encontrados e a análise da notação de peças que fazem parte da pesquisa. Constatou-se que os critérios e a terminologia utilizados para a classificação da notação contemporânea diferem entre os vários autores, e que alguns não chegam a classificar a notação, apenas fazendo um levantamento dos diversos símbolos utilizados.

Foi feita então uma comparação entre a terminologia empregada pelos diversos autores, procurando estabelecer semelhanças e diferenças entre as diversas classificações. Os dados semelhantes foram colocados em um quadro comparativo; os termos que se encontram na mesma linha representam classificações similares.

Brindle

Cole

Karkoschka

Pergamo

Stockhausen

Zampronha

 

 

Exata

Tradicional ou Ortocrônica

 

Tipo 5 (Métrico e Discreto)

 

Proporcional

Indicativa

 

 

 

Partituras Gráficas

Implícita

Gráficos Musicais

 

 

 

Partituras de Texto

 

Notação de Ação

 

Escrita de Ação

 

 

 

 

Aleatória

 

Tipo 9 (A-métrico e indeterminado)

 

 

 

Mista ou híbrida

 

Tipo 6 (Métrico e indeterminado) ou Tipo 8 (A-métrico e discreto)

 

 

Aproximada

 

 

Tipo 1 (Não-métrico e contínuo)

 

Notação como Fonte de Material ou Livro de Regras

 

 

Escrita de Projeto

 

Tabela 1 – Quadro comparativo dos diversos tipos de classificação da notação.

Sendo assim, a análise da notação inclui o tipo (classificação da notação), um exemplo da partitura em questão e se algum símbolo de notação da peça fará ou não parte do glossário de notação. Este glossário está inserido no segundo capítulo do estudo sobre A Indeterminação na Música Brasileira para Piano, consistindo em um levantamento dos novos símbolos de notação de cada peça, classificados segundo os parâmetros de duração, altura, dinâmica e articulação.

Análise da Indeterminação

Inicialmente foram considerados os parâmetros propostos por Ralph Turek em Elements of Music – Concepts and Applications:

Graus e Tipos de Indeterminação:

Esta última proposição foi desconsiderada, pois conforme exposto anteriormente, o termo indeterminação se refere, nesta pesquisa, ao uso do acaso na execução.

Reginald Brindle Smith também considera que a indeterminação pode ser aplicada a vários parâmetros musicais, exemplificando cada um deles:

Quais elementos da música podem ser ‘indeterminados’? Altura, duração de nota, forma, material sonoro e expressão (incluindo dinâmica, timbre, etc.). Será visto, em reflexo, que até a indeterminação em apenas um parâmetro pode ter efeitos de longo alcance (BRINDLE, 1987, p. 63).

Por fim, foram relacionados os aspectos considerados pelo próprio Cage para a classificação das peças indeterminadas, que se encontram expostos na conferência Indeterminacy. Cage procura explicar o que considera indeterminação, classificando as peças citadas no texto segundo os parâmetros de estrutura, método, forma e material. É o próprio Cage que fornece a definição destes parâmetros: “Estrutura é a divisão do todo em partes; método é o procedimento nota-por-nota; e forma é o conteúdo expressivo, a morfologia da continuidade” (CAGE, 1966, p.36). Como material, Cage considera a freqüência, a amplitude, o timbre e a duração. A duração inclui os sons e os silêncios da composição.

Outro fator incluído foi a classificação do grau de indeterminação de uma obra como baixo, médio ou alto. Esta classificação é relativa e foi realizada a partir da análise completa da obra, segundo os critérios de material, notação e indeterminação. O grau de indeterminação dependerá então dos seguintes fatores: se na análise do material, a indeterminação está presente na Micro, Média ou Macro Análise; se na análise da notação empregada, há uma predominância de tipos de notação que objetivam uma maior precisão ou uma maior imprecisão dos parâmetros musicais; se na análise da indeterminação, apenas um dos parâmetros propostos por Cage é indeterminado ou vários, e se a indeterminação é parcial ou total.

Todos estes dados foram incluídos na análise da Indeterminação das peças que fazem parte desta pesquisa. Inicialmente, a indeterminação será analisada como parcial ou total e, em seguida, segundo os parâmetros propostos por John Cage. O Grau de Indeterminação da obra será classificado como baixo, médio ou alto.

Ponto de vista do intérprete

Além destes três critérios estabelecidos, decidiu-se pela inclusão de um comentário do ponto de vista de um intérprete destas peças. Sendo peças que geralmente possuem uma notação diferente da tradicional ou possuem algum tipo de instrução por parte do compositor, durante o estudo das peças houve uma reflexão sobre algumas questões que estão expostas logo a seguir:

Deve-se esclarecer que os comentários expostos não fazem parte de um juízo de valor da obra em si, mas apenas o ponto de vista de um intérprete, a partir de sua experiência e vivência com este repertório no momento da pesquisa, supondo-se que estes comentários são diferentes para outros intérpretes.

Karkoschka estabelece critérios para avaliação dos novos símbolos de notação, que são extremamente úteis para o nosso ‘Ponto de vista do intérprete’:

A. Não ambigüidade

1. O mesmo símbolo não deve aparecer com um significado diferente

2. A aparência exterior de um símbolo não deve lembrar muito aproximadamente a de outro

3. Um símbolo com um significado tradicionalmente familiar, pode adquirir um novo significado apenas em um contexto totalmente novo

4. Um balanço sensível entre os símbolos e as instruções verbais deve ser preferível

5. Tanto quanto possível, um símbolo deve ser capaz de indicar seu significado diretamente e sem explicação

6. Símbolos abstratos e ilustrações devem ser selecionados de acordo com as suas funções, e nunca devem ser misturados (Karkoschka, 1972, p. 5).

Exemplo de análise de uma obra com escrita indeterminada[6]

Autor: Gilberto Mendes

Peça: Blirium C 9

Data da Composição: Janeiro, 1965

Editora: São Paulo, Ricordi Brasileira

Fonte: Casa Amadeus

MATERIAL

Geral

O intérprete deve ‘escrever’ sua própria partitura através de extensas e precisas instruções do compositor. O intérprete desenha 5 linhas horizontais de no mínimo 30 centímetros em cada página de um caderno de pelo menos 3 páginas (15 linhas). Sobre cada linha, o intérprete marca os pontos em que serão atacadas notas, acordes, clusters e glissandos. Além disso, o intérprete deve escolher no momento da execução o registro, o andamento e as citações de peças de outros compositores. Também no momento da execução, o grupo de três alturas a ser tocado deve ser selecionado de acordo com a posição dos ponteiros de um relógio.

Macro Análise

Seções

O compositor chama de ‘entrada’ a cada grupo de notas executado, correspondendo a uma das linhas escritas pelo intérprete.  O compositor chama de ‘transição’ ao espaço de tempo existente entre um grupo de notas e outro, na qual o intérprete deve olhar seu relógio para saber o novo grupo de notas a ser executado. A ‘transição’ pode ser o prolongamento de um som ou o silêncio. A cada 5 grupos executados (entradas), o intérprete deve incluir uma citação.

Média Análise

Compasso

Não utiliza barras de divisão de compassos

Altura

De modo geral é atonal; nos trechos nos quais o intérprete faz uma citação, pode variar

Duração

O compositor estipula que a duração das notas dependerá da distância entre elas, ou seja, a distância que o intérprete deixou entre os pontos e traços da ‘partitura’. (notação proporcional)

Métrica

O intérprete deve dividir cada seqüência de 5 linhas horizontais (uma página) com linhas verticais em 9 partes iguais. Durante a execução, o intérprete não conta tempos e nem presta atenção às divisões verticais. Estas divisões servem para controlar o deslocamento no tempo-espaço da música. O compositor chama a isto de ‘métrica real’: uma microdivisão aleatoriamente obtida. Cada uma das divisões eqüivale a uma pulsação (beat)

Andamento

O intérprete deve variar o andamento entre lento, moderato e allegro.

Lento: andamento metronômico entre 40 e 72

Moderato: andamento metronômico entre 72 e 108

Allegro: andamento metronômico entre 108 e 152.

Dinâmica

O compositor estipula 10 possibilidades de escolhas de dinâmica, indo do ppp ao fff, e incluindo crescendo e decrescendo.

Timbre

Teclado

Textura

Pode variar, de acordo com a partitura do intérprete e com as citações escolhidas.

Micro Análise

Os intervalos que predominam nos grupos de alturas a serem escolhidos pelo intérprete, são os da classe 1 e 2. Nos grupos, predominam as alturas que relacionam-se cromaticamente. Por exemplo; Lá, si bemol, si; sol bemol, fa.

Tabela 2 – Análise do material de Blirium C 9

NOTAÇÃO

Tipo

Notação proporcional das durações, Notação como Livro de Regras e Notação Gráfica da partitura que o intérprete escreve. Coloca ainda 3 quadros que contêm as informações referentes aos grupos de notas a serem escolhidos, aos registros e aos andamentos.

Exemplos

Trecho da ‘partitura’ a ser preparada pelo intérprete

Glossário

Sim

Tabela 3 – Análise da Notação de Blirium C 9

INDETERMINAÇÃO

Parcial ou total

Total

Parâmetros

Estrutura: Determinada

Método: Indeterminado, em razão do Material

Forma: Determinada

Material

Freqüência: Indeterminada

Amplitude: Indeterminada

Timbre: Indeterminado

Duração: Indeterminada

Grau de indeterminação

Alto

Tabela 4 – Análise da Indeterminação de Blirium C 9

PONTO DE VISTA DO INTÉRPRETE

Apesar de todo o processo envolver um alto grau de indeterminação, o compositor estipula regras muito claras quanto à interpretação da obra. Deve-se frisar que o compositor coloca a sugestão de execução de 13 exemplos gráficos da partitura. Apesar destas instruções precisas, a partitura escrita pelo intérprete fornece apenas indicações de dinâmica, durações proporcionais e opções de execução de notas isoladas, acordes, clusters ou glissandos. Obras como estas, além de exigir uma elaboração da partitura, envolve um treino minucioso por parte do intérprete, uma vez que não há uma parte fixa a ser executada. Algumas dicas podem ser dadas para treinar a execução da peça. Uma delas é executar trechos da partitura escolhendo um grupo de alturas proposto pelo compositor, variando andamentos e registros. Uma vez que nos grupos predominam as alturas que relacionam-se cromaticamente (classe de altura 1), os intervalos resultantes na formação de acordes serão as segundas menores, sétimas maiores e nonas menores. Devem ser executadas várias possibilidades de formação de acordes a partir do mesmo grupo de alturas, alterando os intervalos entre as notas.

Outra dica é escolher as citações a serem incluídas, treinando mudanças de andamento, ritmo, dinâmica e registro. Quando estas duas práticas estiverem mais fluentes, pode-se alternar a execução do grupo de alturas com a execução das citações.

Além disso, é recomendável a gravação destas improvisações, para que o intérprete possa avaliar falhas e aperfeiçoar sua execução.

Tabela 5 – Ponto de vista do intérprete de Blirium C 9

Conclusão

Apesar de ser ainda um recurso composicional pouco estudado, é possível estabelecer os critérios para a análise da indeterminação. Ainda assim, o conjunto destes critérios não pode ser considerado como uma ‘técnica’ de análise, uma vez faz parte de uma bibliografia ampla, de vários autores diferentes.

O estudo de análise de obra que emprega a indeterminação, revela aspectos que podem permanecer obscuros em uma análise mais superficial. Em Blirium C 9, a indeterminação foi empregada em vários estágios da obra: cada intérprete ‘escreve’ sua própria partitura e deve escolher as citações de peças que irá executar. No momento da execução deve escolher ainda o andamento e o registro, sendo que as alturas são estipuladas de acordo com a posição dos ponteiros de um relógio. A partitura escrita pelo intérprete fornece apenas indicações de dinâmica, durações proporcionais e opções de execução de notas isoladas, acordes, clusters ou glissandos. Podemos constatar que a indeterminação se encontra na Macro e na Média Análise; há o emprego de notação gráfica, que acarreta maior imprecisão no momento da execução; apenas a estrutura e a forma são determinadas. Sendo assim, podemos afirmar que a peça possui um alto grau de indeterminação.

Obras como estas, além de exigir uma elaboração da partitura, envolvem um treino minucioso por parte do intérprete, uma vez que não há uma parte fixa a ser executada. O intérprete deve estar apto a realizar as escolhas exigidas no momento da execução, tornando a interpretação fluente. Desta maneira, esta peça torna-se extremamente difícil para o intérprete que não está acostumado às novas grafias e à liberdade de escolha no momento da execução.

Obras como estas exigem um intérprete preparado, o que é muito difícil encontrar hoje em dia. Geralmente, o Ensino Técnico e Universitário de Música só exigem repertório tradicional dos alunos, e os professores destes cursos muitas vezes não estão preparados para ensinar o repertório do século XX, pois não estão familiarizados com a linguagem contemporânea, sua notação e as dificuldades que são encontradas pelo intérprete neste repertório.

O intuito de esclarecer aspectos mais detalhados do material, da notação e do emprego da indeterminação é aproximar intérpretes, professores e estudiosos deste repertório ainda pouco executado e divulgado. Neste sentido, este trabalho procura estimular novas pesquisas e execuções mais freqüentes da música brasileira contemporânea.

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Jorge. Notação na música contemporânea. Brasília: Sistrum, 1989.

BRINDLE, Reginald Smith. The new music – the avant-garde since 1945. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 1987.

CAGE, John. “Indeterminacy”. Silence. Cambridge: The M.I.T. Press, 1966.

COLE, Hugo. Sounds and Signs: Aspects of Musical Notation. London: Oxford University Press, 1974.

COZZELLA, Damiano et al. “Música Nova: compromisso total com o mundo contemporâneo”. Invenção. ano 2, n. 3, junho. São Paulo: Invenção, 1963.

KARKOSCHKA, Erhard. Notation in new music. London: Universal, 1972.

KOSTKA, Stefan. Materials and techniques of twentieth-century music. 2 ed. New Jersey: Prentice-Hall, 1999.

PASCOAL, M. L., RUVIARO, B., DEL POZZO, M. H. “Indeterminação: O desafio da Liberdade”. In.: Cadernos da Pós-Graduação. v. 3. Campinas: Instituto de Artes da UNICAMP, 1999. p. 52-58.

PAZ, Juan Carlos. Introdução à música de nosso tempo. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

PERGAMO, Ana Maria Locatelli. La Notation de la Musica Contemporanea. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1973.

PRITCHETT, James. The music of John Cage. 3rd ed. New York: Cambridge University Press, 1995.

RISATTI, Howard. New Music Vocabulary – A Guide to Notational Signs for Contemporary Music. Urbana: University of Illinois Press, 1975.

SIMMS, Brian. Music of the twentieth century. 2v. New York: Schirmer Books, 1986.

Invenção. ano 2, n. 3, junho. São Paulo: Invenção, 1963.

TUREK, Ralph. The elements of music. Concepts and Applications. 2v. 2nd. Ed. New York: McGraw- Hill, 1996.

WHITE, John. Comprehensive musical analysis. New Jersey: Scarecorw, 1994.

ZAMPRONHA, Edson. Notação, representação e composição. São Paulo: Annablume, 2000.

Maria Helena Maillet Del Pozzo é Mestre em Artes – Música pelo Instituto de Artes da UNICAMP (bolsa FAPESP). Doutoranda em Música pela UNICAMP (bolsa CAPES). Pianista, dedica-se à divulgação da música brasileira e contemporânea. Participou de diversos congressos e encontros, tendo vários trabalhos publicados sobre música do século XX, incluindo aspectos da obra dos compositores: Henry Cowell, Erik Satie, Debussy, Cage, Aylton Escobar.

 

Notas

[1] Esta conferência foi transcrita em: CAGE, John. Silence. Cambridge: The M.I.T. Press, 1966. p. 36-40.

[2] CAGE, John. Silence. Cambridge: The M.I.T. Press, 1966. p. 18-34.

[3] Invenção. ano 2. N. 3. junho.  São Paulo: Invenção, 1963. p. 6. Os demais signatários do manifesto são: Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia e Alexandre Pascoal.

[4] Estudo realizado em colaboração com a Profa. Maria Lúcia Pascoal e Bruno Ruviaro. Foi inicialmente apresentado como comunicação no III EIPAM (1999), sendo publicado no mesmo ano nos Cadernos da Pós Graduação da Unicamp (ver referências bibliográficas).

[5] White chama estes três níveis de ‘análise descritiva’. Ver WHITE, 1994, p. 20.

[6] Como a pesquisa prevê a análise de 40 peças, optou-se pela restrição do espaço ocupado pela análise, colocando-se os dados em tabelas.  Uma análise dissertativa de cada peça ocuparia muito espaço e dificultaria a leitura dos dados por parte do leitor.