Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 3/Outubro de 1998
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ILZA NOGUEIRA: ERNST WIDMER, PERFIL ESTILÍSTICO

Norton Dudeque

 

A obra de Ilza Nogueira Ernst Widmer - Perfil Estilístico, lançada em 1997, representa um grande esforço em iniciar-se uma prática pouco comum na literatura musical brasileira. A autora aborda a obra de um grande compositor escrevendo analiticamente sobre sua música. O leitor desta resenha dirá - que bobagem, não é sempre assim? Infelizmente não, caro leitor. Ao contrário do que acontece na produção de crítica musical de outros países "mais desenvolvidos" a literatura musical brasileira ainda privilegia a abordagem histórica e biográfica acima de qualquer outra. São raros os estudos publicados em solo nacional que tratam de analisar a produção musical de determinado autor. Dentre os poucos exemplos significativos, deve ser destacado o periódico editado por Carlos Kater Cadernos de Estudo - Análise Musical que tem alcançado uma importância fundamental na área pela qualidade dos artigos ali publicados.

O livro está organizado em duas partes, a primeira visa traçar um perfil do músico, e a outra, uma coletânea de cinco estudos analíticos sobre sua linguagem musical.

A apresentação biográfica de Widmer traça de maneira concisa sua trajetória pessoal desde seus estudos iniciais ainda na Suíça até sua opção pelo Brasil e seu trabalho desenvolvido aqui. Widmer foi membro fundador do Grupo de Compositores da Bahia e mentor intelectual de uma geração de compositores de projeção nacional, além de ter desenvolvido suas atividades docentes na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Ilza Nogueira lembra em um momento muito oportuno que Widmer veio ao Brasil pelas mãos do professor Hans Joachim Koellreutter que na época estava a procura de reforços docentes para os Seminários Livres de Música da UFBA. Cabe aqui um parênteses, a carreira deste professor de tantos músicos brasileiros, que é o mestre Koellreutter, merece urgentemente uma documentação a nível biográfico-histórico e analítico da sua obra musical, espero que os musicólogos brasileiros estejam realizando tal obra, afinal de contas Koellreutter é uma das figuras mais importantes da música brasileira do século XX.

Nas considerações gerais sobre a obra de Widmer, Nogueira relata com clareza aspectos da sua produção sob o prisma de entrosamento com a literatura, a relação com o espiritual, as conseqüências da sua carreira pedagógica e de organizador da vida musical na Bahia onde realizava concertos de música nova na segunda metade da década de 60. A definição de duas fases e várias tendências é realizada da seguinte forma: 1. A fase suíça, a da juventude; 2. E a fase brasileira, onde encontram-se as obras da sua maturidade. Dentro das tendências estilísticas, Nogueira aponta para uma característica comum na sua obra, é o que ela chama de "heterodoxia e inclusivismo de Widmer." (p. 36) Dentro desta última categoria encontram-se várias tendências: a "referencialista," em que a referência a obras de outros autores está sempre presente, independente do período ou cultura; a "regionalista," onde enquadram-se as influências sofridas da música étnica brasileira, em especial da música nordestina; à "pesquisa tímbrica-textural" com base em densidade e volume, tendência desenvolvida pela vanguarda da Europa Oriental e que reflete a atitude cosmopolita e de atenção à contemporaneidade de Widmer; à "indeterminação" influenciada pela corrente da música aleatória da década de 70; e "ao teatro musical", onde Widmer incorpora elementos cênicos como parte da interpretação.

Na segunda parte do livro, "o discurso musical de Ernst Widmer," encontram-se cinco estudos analíticos sobre a obra de Widmer. As obras escolhidas para esta parte foram compostas em período curto de tempo, de 1980 a 1986, o que pode sugerir ao leitor uma inconsistência na análise estilística da linguagem musical. A opção de Nogueira em incluir apenas cinco de um total de 200 ou mais obras e de um período curto de tempo é objeto de justificativa no prefácio. Para ela, estas obras refletem o período da maturidade de Widmer. Além disso, são cinco obras que apresentam uma ocorrência comum a nível temático, uma idéia melódica recorrente e segundo Widmer típica da região Nordeste. Esta "idéia fixa" é apresentada na forma de uma "bifonia fundamental" no seguinte exemplo:

 

Ainda é importante salientar que a autora consultou e analisou dez obras que compreendem o período de 1962 (op. 28) até 1986 (op. 157). Mesmo assim o leitor poderá questionar a validade de determinar as características estilísticas da linguagem de um compositor pela análise musical de obras de um período curto dentro da sua produção musical.

Cada um dos cinco estudos analíticos apresenta uma temática distinta como forma de análise. O primeiro aborda as "técnicas de elaboração motívica" aplicadas ao estudo do Duo opus 127, para piano e violino, de 1980. Nogueira parte da identificação de uma idéia básica, uma noção cara a Schoenberg que formulou o conceito de Grundgestalt ou basic shape, de onde toda a elaboração motívica da obra é extraída. Aliás, é desse aspecto que Widmer consegue uma estrutura completamente coerente nesta obra. A análise é bastante consistente ao demonstrar como a derivação motívica une os três movimentos da obra e a transforma em um exemplo de coerência e lógica musical (noções Schoenberguianas explicitadas em termos de "Idéia Musical").

O segundo estudo aborda o "processo da variação." Aqui é analisada a obra Jahrestraumzeiten, opus 129, de 1981. Novamente é identificada uma idéia básica que por sua vez é baseada na "bifonia fundamental." Para Nogueira as variações aplicadas a esta peça referem-se aos aspectos de densidade, timbre, instrumentação, mudança de sistema harmônico referencial, modulação de centro tonal, e contrastes de texturas.

No terceiro estudo a autora considera a "orquestração" como um elemento definidor da estrutura musical. A obra analisada de acordo com este parâmetro é Sertania - Sinfonia do Sertão, opus 138, de 1982. A análise define quatro tópicos que servem para ilustrar a proposição de timbre como definidor da estrutura formal, são eles: 1. "O timbre com função estrutural"; 2. "O timbre como elemento essencial do paisagismo musical"; 3. "A associação de instrumentos para a criação de novos timbres"; e 4. "A associação da elaboração orquestral à elaboração da textura". O que a autora depreende de sua análise é relacionado a uma associação de timbres entre instrumentos do mesmo naipe na qual existe uma definição da divisão estrutural através do timbre, da orquestração, que aqui adquire a importância de um dos elementos definidores da forma e da sintaxe musical.

"A concepção da forma" é o tema do quarto estudo. A obra é Utopia, opus 142. A análise é orientada para a discussão de "duas leis que fundamentam o processo composicional de Widmer: a organicidade e a relatividade." (p. 141) A estrutura orgânica da obra é vista como uma interação entre macro e micro estruturas, sendo que a primeira é definida "através de contrastes de estruturação do tempo, de idéia melódica e de campos harmônicos referenciais"; e as micro estruturas são definidas de acordo a contrastes de timbre, textura e registro. (p. 147) A idéia de relatividade é expressa em relação à reinstrumentação de passagens tematicamente semelhantes onde materiais elaborados em um naipe retornam em outro, relativizando-se entre si.

O último estudo - "a concepção da forma II," analisa o primeiro movimento do Quarteto "Amabile", opus 157, de 1986. A autora propõe uma análise centrada na proposição de um "problema composicional lingüístico" em que tenta demonstrar o modelo estrutural de forma sonata através de uma sintaxe específica. Esta é determinada por um princípio de simetria inversiva que, por sua vez, é determinado por conjuntos de classes-de-notas e por um plano harmônico fundamentado em três classes-de-notas simétricas: SOL/ RÉ e DÓ. A análise é bem estruturada e convincente quando vista sob o prisma da forma sonata, uma forma que Widmer usa de maneira original.

Destes estudos analíticos o leitor pode perceber facilmente como determinadas características da linguagem composicional de Widmer se estabelecem, pelo menos neste período de sua produção. No geral as análises demonstram e descrevem esses aspectos de forma clara. No entanto, nos estudos relacionados ao processo de variação e à orquestração sente-se a falta de uma análise motívica que bem poderia servir como um aprofundamento das idéias expostas. A abordagem temática de cada um dos estudos é cuidadosa e bem realizada, ao considerar aspectos distintos em relação a diferentes obras, a autora dá ao leitor um panorama geral sobre o estilo de Widmer. Ótimo!!!

O livro ainda é complementado por quatro anexos nos quais encontram-se a produção crítica e teórica de Widmer, uma cronologia de suas obras, discografia, e uma pequena bibliografia sobre o compositor.

A produção gráfica do livro deixa muito a desejar. Desde a diagramação do texto até a péssima qualidade na impressão dos exemplos musicais, a produção de um livro sobre música e com inúmeros exemplos exige uma produção mais cuidadosa. O fato mais notável neste aspecto encontra-se na produção dos exemplos musicais. Todos são incluídos em seções no final de cada capítulo, assim o leitor tem que consultar cada exemplo em uma página diferente. Mais um problema, vários exemplos são reproduções de manuscritos de Widmer, nada contra, pelo contrário. Nada contra a reprodução de fac-símiles, pelo contrário, mas a sua utilização em um texto analítico exigiria um mínimo de legibilidade, o que, infelizmente, não ocorre. Fato imperdoável em tempos de softwares de editoração e de notação musical de excelente qualidade.

Somente resta parabenizar a autora pela feliz iniciativa de realizar este estudo sobre Ernst Widmer, e que este sirva de incentivo para muitos outros sobre Widmer e sobre os inúmeros compositores brasileiros que tanto contribuem para a arte musical brasileira.

 Norton Dudeque é professor da UFPR e editor da Revista Eletrônica de Musicologia. Atualmente realiza doutorado em musicologia sob os auspícios da CAPES na University of Reading, Inglaterra. (retorna)

 

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