Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 2.1/Outubro de 1997
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BREVE RESENHA DAS CONTRIBUIÇÕES DE SCHENKER E SCHOENBERG PARA A ANÁLISE MUSICAL

 

Marcos Branda Lacerda

Schenker

 

Heinrich Schenker vivencia seu período inovador em análise musical a partir dos anos 20, quando já tinha atrás de si as edições de seu Tratado de Harmonia e do Tratado de Contraponto, além de uma extensa análise da 9ª Sinfonia de Beethoven. Publica então diversos cadernos de nome "Der Tonwille" (A Vontade do Som) e três colaborações subseqüentes com o nome "Das Meisterwerk in der Musik" (A Obra Prima na Música), todos eles dedicados à pura análise musical de obras musicais fundamentalmente do barroco a Brahms. Em 1935 vem a falecer em Viena, pouco antes da publicação do terceiro volume das Novas Teorias e Fantasias Musicais, que traz o subtítulo de "A Composição Livre". Sua idéia, expressa sem nenhuma modéstia na introdução do livro, era acrescentar ao estudo do contraponto estrito segundo Fux e ele próprio, e ao estudo do baixo-cifrado segundo Johann Sebastian e Carl Phillip Emmanuel Bach, um estudo definitivo sobre a "coerência orgânica" do trabalho composicional dos grandes mestres (1).

Schenker defende a tese de que o gênio musical está capacitado a conceber toda uma obra musical a partir de uma estrutura básica, que contém em sua extrema simplicidade um elemento indicador do processo da condução de vozes e um elemento indicador da progressão harmônica dos graus I, V e I da escala diatônica. Ele denomina essa estrutura de "estrutura fundamental", conforme a tradução inglesa para Ursatz. (Uma expressão mais fiel à sua definição e ao significado alemão talvez empregasse a expressão "estrutura original").

A Ursatz pode revelar-se em três formas, variando a nota de partida da linha superior ("linha fundamental" ou Urlinie) conforme o terceiro, quinto ou oitavo grau da escala, mas mantendo-se estáveis a queda por graus conjuntos dessa linha até o primeiro e a linha do baixo ("arpejo do baixo", também conforme a tradução inglesa para Bassbrechung).

exemplo 1

A Ursatz constitui o nível estrutural inicial, o plano posterior (Hintergrund ou background). A partir dele, o processo composicional se dá em etapas sucessivas, em camadas (Schichten) que constituem o Plano Mediano (Mittelgrund ou middleground), cujas transformações geram a música da maneira como se apresenta no Plano Anterior (Vordergrund ou foreground). As etapas mais posteriores do plano mediano ainda não definem exatamente características próprias a uma determinada composição, mas já passam a expressar indiretamente aquilo que se reconhece convencionalmente como as partes de um gênero formal qualquer, como forma sonata, rondo, formas ternárias e binárias, etc.

Antes de considerar alguns aspectos essenciais a essa análise, gostaria de mencionar a fundamentação apresentada pelo próprio autor à idéia de operância de níveis mentais hipotéticos inacessíveis à observação, freqüentemente omitida em trabalhos sobre o método schenkeriano.

Schenker define o processo criativo como um "fluir contínuo da origem do desenvolvimento e do presente" (2). Contraditoriamente, ele parte de uma definição hegeliana do conceito de destino, equivalente a seu conceito de Vordergrund, e autodeterminação interior, equivalente a Hintergrund. Se o pensamento de Hegel aplica-se a qualquer indivíduo, já Schenker conclui que este processo na música se revela apenas em individualidades destacadas, isto é, no Gênio, portador de uma Alma predeterminada e subjacente à vida.

Š[um determinado plano [mental] posterior (Hintergrund), uma alma que atua como uma especial elevação da natureza no homem; quase mais arte do que natureza, essa alma é dada apenas ao gênio, e, semelhante ao amor, ele quase já se constitui em arte, não se tratando, pelo menos, de natureza nua (3).

O recurso explícito à genialidade é empregado com freqüência para a confirmação de suas hipóteses (4). Mesmo que desviando de uma plausível discussão sobre as estruturas mentais envolvidas no processo de criação, não resisto em referir um comentário genérico de Walter Benjamin do mesmo ano ao que me parece mais que um devaneio schenkeriano:

A [dialética das tendências de desenvolvimento na arte] faz-se notar não menos intensamente do que na economia. Por conseguinte, seria falso subestimar o valor de luta dessas teses. Elas omitem inúmeros conceitos tradicionais - como potencial criador e genialidade, valor de eternidade e mistério - conceitos, cujo emprego descontrolado (e, no momento dificilmente controlável) conduz a uma elaboração dos fatos no sentido fascista (5).

A linha de pensamento de Schenker torna-se ainda mais reveladora de seu próprio e sombrio Hintergrund em mais uma analogia:

À multidão falta a alma genial, ela não é consciente de um Hintergrund, ela não se apercebe antecipadamente de um futuro, sua vida é apenas um Vordergrund eternamente inorgânico, um estado presente sem coerência, movimentando-se no vazio animal. Apenas os indivíduos podem criar e transmitir coerência. Onde faltam tais heróis, a multidão não pode tornar-se povo: apenas através da atuação de indivíduos no sentido da lei da origem, desenvolvimento e presente, isto é, Hintergrund, Mittlegrund e Vordergrund, a multidão pode caracterizar-se como povo (6).

A postura arrogante e ambiciosa de Schenker de pressupor obviedade para sua tese e o isolamento no qual trabalhou incansavelmente dificultam a leitura de Composição Livre e de suas análises realizadas com recursos puramente gráficos e as transformam quase em obras de ficção. Em inúmeras passagens do livro ele procede de forma como acredita se dar o processo criativo, isto é, do plano posterior a configurações reais enquanto que a análise schenkeriana hoje praticada consiste inversamente na descoberta de estruturas abstratas a partir da superfície musical.

Em suas últimas análises, Schenker estabelece já para o plano anterior uma forma de representação bastante reduzida omitindo repetições de notas, alguns valores rítmicos, etc., mas criando símbolos notacionais exclusivos (v. ex. 5). Esses símbolos são:

Ligaduras, que indicam estruturas unitárias (prolongamentos), seja por graus conjuntos ou arpejos;

Ligaduras pontilhadas estabelecendo um relacionamento entre notas repetidas após interrupção por outros elementos:

Colchetes estabelecendo o nexo de relações melódicas não imediatas;

Algarismos romanos e arábicos para funções harmônicas e cifragens relevantes:

Numerais com circunflexo para notas de maior importância estrutural:

Uma escala de valores não rítmicos que estabelecem uma ordem de importância às notas às quais são agregados:

e expressões que definem o tipo de recurso composicional empregado.

Básico para o processo de redução (ou diminuição) a estruturas cada vez menos carregadas é a aplicação do conceito de Prolongamento. Eu me sirvo aqui da definição de Forte e Gilbert:

Prolongamento refere-se às maneiras em que um componente musical - uma nota (prolongamento melódico) ou um acorde (prolongamento harmônico) - permanece em efeito sem ser literalmente representado a todo momento...Essencialmente, uma harmonia dada é prolongada pelo tempo em que a sentimos controlar uma passagem em particular (7).

Uma passagem do Vordergrund na qual se admite a existência de um determinado prolongamento, divide-se necessariamente na parte prolongada da qual depende a parte que a prolonga. A definição do que de fato vem a ser a parte prolongada dependerá muitas vezes de passagens seguintes, exigindo do analista intuição e disposição para diversas tentativas. Determinado um prolongamento, a passagem equivalente passa a ser representada graficamente no nível estrutural subseqüente apenas através da nota ou acorde prolongado. Nesse novo nível estrutural passam a valer as mesmas regras de localização de prolongamentos e, portanto, de redução.

Já na definição inicial dos níveis estruturais, Schenker se refere a um dos mais importantes recursos composicionais além do arpejo do baixo (Brechung) com o intuito de esclarecer o próprio conceito de prolongamento. Trata-se do "gesto" do compositor imaginar uma passagem completa através de uma linha melódica por graus conjuntos imediatos ou não. Esse evento ele denomina de Zug, traduzido para o inglês como progressão linear (linear progression) (Forte e Gilbert tratam deste tipo de prolongamento diretamente apenas a partir do capítulo 19, o que enfraquece a importância desse recurso dentro do sistema). Nos gráficos schenkerianos, a palavra Zug é empregada sempre em conjunto com a caracterização do intervalo que define a extensão, isto é, progressão linear de terça, quarta, quinta, etc. O arpejo, por sua vez, refere-se a um tipo de prolongamento que consiste na linearização de notas pertencentes a um único acorde ou um único intervalo. Um terceiro caso importante de prolongamento é o da "nota vizinha" (Nebenton).

 

Comentário aos exemplos:

(2) Note-se que estão representadas cinco progressões lineares. A primeira, no soprano, que parte de láb para ré: a segunda desse mesmo ré para láb. A terceira e quarta no baixo, coincidentes com as do soprano, e a quinta que abrange toda a linha do baixo. Láb exemplifica uma nota vizinha por relacionar-se contiguamente com o sol, estruturalmente forte. Pela progressão harmônica representada pelas cifras, o IV grau prolonga o V até o sib do baixo, e este, prolonga o I que vem a seguir. O láb inicial do soprano funciona como uma antecipação da 7ª de V. A questão é de saber se V não poderia vir abaixo do fá, de onde parte a segunda ligadura do baixo, ignorando, com isso, a progressão linear que abrange todas as notas do baixo.

exemplo 2

(3) Demonstra um caso de ascensão, segundo o qual o início estrutural do movimento é precedido por uma passagem ascendente introdutória. Forte divide em dois (ou três) casos, privilegiando a fundamental do acorde no primeiro e a terça no segundo. Através de acoplagem da fundamental, isto é, mudança de registro, dó e mib constituiriam um arpejo direto ao sol agudo.

exemplo 3

Em ambos os exemplos, pode-se observar uma quebra da estrutura formal. No exemplo 2, através do V grau localizado no sib e não no fá anterior, desconsidera-se o repouso temporário da passagem no primeiro tempo do terceiro compasso em razão da condução melódica do baixo. No exemplo 3, a primeira nota aguda do primeiro arpejo (sol) passa a ser mais relevante estruturalmente do que a segunda, enquanto que no segundo arpejo se dá o contrário. Com isso, desaparece em plano estrutural subseqüente o relacionamento motívico das duas passagens.

A análise schenkeriana se processa através de critérios extraídos fundamentalmente das leis hipotéticas de condução de vozes. Uma passagem, isto é, um componente redutível de uma progressão linear, desempenha, segundo o ponto de vista tradicional, uma função harmônica quando articulada juntamente com um acorde. No entanto, em Schenker tende-se a desconsiderar uma eventual função estrutural do acorde correspondente em favor da tese de que o ímpeto composicional se manifesta em estruturas melódicas redutíveis a "sons primários" (Kopfton) e seus prolongamentos. Schenker restringe a coerência na composição musical ao relacionamento desses sons primários seguidos ou precedidos por arpejos e progressões lineares (8). Forte esclarece esse fato através de exemplo cuidadosamente escolhido, sugerindo que determinadas harmonias são criadas apenas para o ajuste de notas vizinhas e de passagem chegando, inclusive a deixar indeterminados alguns acordes (compassos 5 e 6).

exemplo 4

O processo de análise em direção a planos cada vez mais abstratos ocasiona, portanto, não só uma desvalorização crescente do ritmo e da linearidade formal, como demonstrado na dissolução do relacionamento de elementos harmônicos em comparação ao aspecto melódico.

Finalizando, apresentamos aqui uma das Cinco Análises Gráficas de Schenker, também reproduzida em Dunsby e Whitall (9), em que se pode notar o radicalismo na representação de níveis estruturais. Note-se que, por exemplo, todas as notas precedentes ao primeiro dó estrutural do segundo compasso, com exceção do láb, são eliminados já no nível subseqüente através do processo denominado "Ausfaltung" (ausf.), que traduziríamos por desdobramento. Esse processo é especialmente grafado através da barra oblíqua de ligação das duas notas, assim como em três outros casos subseqüentes (sib -sol, láb-dó, sib-sol). Desdobramento define-se como a projeção linear de um intervalo, "passível de verticalização em um estágio posterior de redução" (10). Junto às progressões lineares (Zug), os casos de desdobramento constituem a quase totalidade dos prolongamentos do soprano no coral de J. S. Bach.

As demais denominações em alemão constantes do exemplo são as seguintes: Kopp. para Koppelung (Acoplagem), auf (acima), abw. (abaixo) e Nbn. (nota vizinha), Teiler (divisor), que aparece na segunda camada (Schicht), designa um elemento da estrutura formal de interrupção da queda linear da Urlinie, eliminada inteiramente do Hintergrund (Ursatz). Observe-se que o divisor ocorre após o sib do soprano no compasso 6, desconsiderando-se as cadências anteriores (fermatas) sobre o dó (comp. 2) e o sol (comp. 4) como momentos de articulação formal. (ver ex. 5)

exemplo 5, extraído das Cinco Análises Gráficas de Schenker

Schoenberg

 

Schoenberg, da mesma maneira que Schenker, publica no início do século uma tratado de harmonia (1911). Nele já se expressa o caráter pragmático de sua atividade teórica, voltada basicamente a instrumentalizar o compositor de estruturas coerentes que o leve tanto à compreensão do fenômeno musical na Europa, quanto à sua expansão técnica. Dahlhaus (11) levanta a polêmica, estabelecida entre Schoenberg e Schenker, já a partir das idéias do primeiro manifestadas em seu tratado, no capítulo sobre sons estranhos à harmonia. Aí se lê a seguinte referência ao tratado de Schenker:

Se os acordes foram originados através da condução das partes ou se essa condução das partes foi possível graças a nosso conhecimento dos acordes é uma questão que aqui não nos interessa, pois tanto um quanto o outro brota da mesma exigência: colocar em sua justa relação o material dado pela natureza - isto é, o som com o órgão perceptivo e com tudo o que está, secundária ou terciariamente, em relação física com este órgão...A esta exigência correspondem ambas possibilidades, pois as duas, ainda que por caminhos distintos, cumprem o objetivo de estabelecer imitações mais fiéis possíveis do material dado, imitações que serão tanto mais perfeitas quanto maior for o conhecimento a respeito delas (intuitivo, com o ouvido, ou mental, através da análise) captando todos os seus traços diferenciais (12).

Com essa postura cética em relação à idéia de redução musical, Schoenberg, se não elimina completamente e por antecipação qualquer legitimidade do procedimento schenkeriano, pelo menos desloca o foco sobre a atividade composicional como elaboração intuitiva ou mental de materiais historicamente em expansão. Schoenberg refuta a idéia de dissonância casual, mesmo em detrimento de uma visão mais simplificadora de estrutura, enquanto Schenker refuta a concepção de que dissonâncias desempenhem um papel essencial. Dahlhaus conclui, de forma prática, que a controvérsia entre ambos, assumida também pelo segundo no terceiro volume de Das Meisterwerk in der Musik, fundamenta-se em um diálogo torto. Em Schoenberg germinava naquele momento o conceito de emancipação da tonalidade, ao qual ele dirigia sua atividade teórica. A Schenker cabia fortalecer a tese de que o processo criativo se orienta por etapas a partir de estruturas reduzidas. O papel das dissonâncias propriamente ditas, articuladas seja na forma de notas vizinhas ou de passagem, não teria tido a menor importância no embate.

Schoenberg menospreza a atividade musical puramente teórica. Ela deve ser exercida pelos homens "quando a intuição não lhes ajuda: servir-se de muletas para andar, óculos para ver, chamar em seu auxílio às matemáticas e à combinatória. Assim surgiu um sistema maravilhoso medido a partir de nossas forças espirituais, mas comparado com a natureza que trabalha coma a alta matemática, é pueril" (13).

Por isso, em sua mais extensa colaboração à análise, os Fundamentos da Composição Musical, ele parte de modelos extraídos organizadamente sobretudo da tradição clássica-romântica. Esses modelos correspondem a eventos musicais, isto é, formas (e não gênero, como em Tovey), previamente localizados e parcialmente definidos pela teoria da música de seu tempo. No entanto, sua capacidade de sistematização é notável. A abordagem dos inúmeros exemplos musicais auxilia-o na definição comparativa de determinados conceitos, como por exemplo a semelhança e diferença na elaboração motívica no período e na sentença.

Para a definição de forma, Schoenberg distingue entre idéias musicais de um lado, e, de outro, lógica e coerência. Com base em algum obscuro princípio de cognição (compreensibilidade, inteligibilidade), ele salienta a importância da subdivisão em partes - ou blocos - como um componente essencial da composição. No entanto, ele faz a seguinte afirmação, que poderia constar dos depoimentos de compositores usados por Schenker (14) na fundamentação de sua tese: "[O compositor] concebe toda uma composição como uma visão espontânea. A partir daí ele procedeŠformando diretamente a seu material" (15).

Os Fundamentos se dividem em duas partes. A primeira dedica-se a definir e observar normas de construção de elementos que comporiam eventualmente o tema de uma composição. São tratados aí os conceitos de Frase, Motivo, Período, Sentença, Antecedente e Conseqüente, Tema e Melodia. Na segunda parte, dividida em duas seções, são tratados os meios de articulação desses elementos, isto é, a lógica dos discurso musical necessária à construção de formas grandes ou de pequenas dimensões, como a sonata e o scherzo. O método expositivo é simples: os vinte capítulos são introduzidos com definições sucintas, expandidas em seguida através dos mais pertinentes comentários à profusão de exemplos.

Os Fundamentos testemunham o forte vínculo que mantinha Schoenberg ligado à tradição européia e germânica em particular. Seu caráter acentuadamente pedagógico se dá em razão dele ter sido obrigado no exílio a lecionar para estudantes pouco familiarizados com essa tradição (16). Como exemplo, apresento aqui uma das versões do exercício realizado pelo próprio Schoenberg para caracterizar a forma Scherzo (17). (ver Ex. 6)

Ele constrói aqui um período (parte A) constituído pelas frases antecedente e conseqüente considerado a maneira mais simples de construção temática e finalizado na dominante. É marcado com uma letra cada elemento passível de transformação subseqüente. Basicamente, todos os elementos de b a f" surgem através de fragmentação do motivo a. Prossegue sua análise do desenvolvimento (parte B) da mesma forma, referindo cada elemento aos elementos disponíveis no tema. Harmonia não parece importá-lo mais do que o inter-relacionamento motívico. Esse ponto é importante. Ele vê repetição motívica mesmo em segmentos que apresentam diferenciações harmônicas (18). A parte indicada como redução compõe-se através da omissão do 3º e 4º compassos do pattern precedente para formar uma linha melódica descendente. O termo liquidação refere-se à construção de segmentos maiores através da repetição incessante de um elemento, tornando-o imperceptível.

Schoenberg permanece nesse exemplo por mais 7 páginas. Apresenta ao todo 7 possibilidades de desenvolvimento e 19 possibilidades em separado de construção de seqüências com o mesmo material. O grau de complexidade harmônica chega a uma linguagem francamente pós-romântica.

exemplo 6, extraído do Fundamentals of Music Composition

Relativamente perplexos e até inseguros, musicólogos abordam o conceito de Developing Variation (variação progressiva) expresso por Schoenberg em diversas ocasiões, mas jamais demonstrado exaustivamente. Dahlhaus (19) define esse conceito como a dissolução do aspecto intervalar (diastemático) de um segmento em favor da elaboração do aspecto rítmico, ou, contrariamente, a dissolução do aspecto rítmico em benefício do intervalar. Drabkin (20) define-o com mais abrangência como um processo de geração de material a partir de uma idéia básica ou uma configuração fundamental (Grundgestalt). Schoenberg mencionou esse conceito particularmente no contexto da obra de Brahms, o que levou Walter Frisch a dedicar todo um trabalho a essa constelação de obras e autores sob a ótica desse embrião de instrumento de análise.

Na tentativa de esclarecer o que Schoenberg definitivamente concebia sob variação progressiva, Frisch destaca uma audição radiofônica de suas Variações para Orquestra, na qual o compositor cita o tema da Sonata para Violoncelo e Piano, op. 99, de Brahms (21).

exemplo 7

Schoenberg menciona a transformação métrica de 3/4 acentuado no 3º tempo das suas frases iniciais para 4/4 na 3ª frase.

exemplo 8

Em seguida, Schoenberg, sugere que o tema seja "reescrito", fazendo a obscura observação que o intervalo inicial de 4ª se transforma na 5ª ré-sol.

exemplo 9

Essa relação é difícil de ser percebida, já que o ouvido se fixa a agrupamentos de suas e três notas.

exemplo 10

Nesse ponto, Frisch busca uma re-interpretação dos dois segmentos (frases) finais, mostrando uma elaboração rítmica ainda mais ousada de Brahms.

exemplo 11

Poderíamos ir mais longe, reescrevendo toda a passagem buscando manter essas observações e deslocando o metro também das frases iniciais. Desta forma, chegaríamos a um tema totalmente derivado da frase inicial, cuja estrutura assimétrica se situaria entre os conceitos schoenberguianos de período e sentença.

exemplo 12

Na notação de Schoenberg, do exemplo 9 observa-se ainda a duplicação do ré na oitava inferior. Talvez ele quisesse representar uma linha melódica de notas intercaladas, baseada exclusivamente numa sucessão de intervalos de 4ª abstraída da frase inicial. Portanto, essa passagem contém uma expansão motívica tanto no aspecto rítmico, quanto no aspecto intervalar. Ainda que não a percebendo em sua plenitude, a intuição analítica de Schoenberg fundou um conceito que rege passagens nas quais a lógica do discurso musical parece neutralizada.

Dr. Branda Lacerda é professor na Universidade de São Paulo e tem doutorado em Etnomusicologia.

Dr. Branda Lacerda teaches at the University of São Paulo and holds a Ph.D. in Ethnomusicology. (retorna)



Notas

(1) SCHENKER, Heinrich. Der Freie Satz. 2ª edição. p. 15-6.(retorna)

(2) Id. p. 25. (retorna)

(3) Id. p. 26. (retorna)

(4) Id. p. 25ff.;197 ff. (retorna)

(5) BENJAMIN, Walter. "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit." In Illuminationen. 2ª edição. p. 137. (retorna)

(6) SCHENKER, Heinrich. Op. Cit. p. 26. (retorna)

(7) FORTE, Allen e Steven Gilbert. Introduction to Schenkerian Analysis. p. 142. (retorna)

(8) SCHENKER, Heinrich. Op. Cit. p. 118. (retorna)

(9) DUNSBY, Jonathan e Arnold Whittall. Music Analysis in Theory and Practice. p. 36-7. (retorna)

(10) FORTE, Allen e Steven Gilbert. Op. Cit. p. 160. (retorna)

(11) DAHLHAUS, Carl. "Schoenberg und Schenker." In Schoenberg und andere. p. 154-9. (retorna)

(12) SCHOENBERG, Arnold. Tratado de Armonía. p. 376. (retorna)

(13) Id. p. 376. (retorna)

(14) SCHENKER, Heinrich. Op. Cit. p. 197-8. (retorna)

(15) SCHOENBERG, Arnold. Fundamentals of Musical Composition. p. 1-2. (retorna)

(16) Cf. em DUNSBY, Jonathan e Arnold Whittall. Music Analysis in Theory and Practice. p. 71-5. (retorna)

(17) DUNSBY, Jonathan e Arnold Whittall apresentam outra versão à p. 83. (retorna)

(18) Cf. em DUNSBY, Jonathan e Arnold Whittall. Op. cit. p. 76. (retorna)

(19) DAHLHAUS, Carl. "Schoenbergs musicalisches Poetik." In Schoenberg und andere. p. 123. (retorna)

(20) BENT, Ian e William Drabkin. Analysis. p. 114. (retorna)

(21) FRISCH, Walter. Brahms and the Principle of Developing Variation. p. 4. (retorna)



Referências Bibliográficas

 

BENJAMIN, Walter. "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit." In Illuminationen. 2ª edição, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980, 136-169.

BENT, Ian e William Drabkin. Analysis. Londres: Macmillan Press, 1980.

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SCHENKER, Heinrich. Der Freie Satz. 2ª edição. Viena: Universal Edition, 1956.

SCHOENBERG, Arnold. Fundamentals of Musical Composition. London: Faber & Faber, 1967.

SCHOENBERG, Arnold. Tratado de Armonía. Madrid: Real Musical, 1979.

Copyright©1997 Revista Eletrônica de Musicologia, vol. 2.1/outubro de 1997