Revista eletrônica de musicologia



Volume XIV - Setembro de 2010


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A historiografia como ferramenta para contar a história da música
   

 

Leandro Gaertner*



Resumo: A história tem um papel de destaque na formação dos mais variados profissionais, sendo também uma área de conhecimento independente e não apenas uma etapa do currículo. Na música isto ocorre nas mais variadas instâncias, desde os esforços de apreciação artística até a aquisição da expertise instrumental. Porém, não é raro que, na transmissão do discurso histórico, os questionamentos historiográficos passem despercebidos. Este artigo tem como principal objetivo explicar os modelos teóricos de história, o modelo nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo, através de exemplos tradicionais do discurso histórico da música ocidental.

Palavras-Chave: Historiografia; Teoria da história; História da música.  

Historiography as a tool for music history

Abstract: History has a prominent role in several fields of education, being an independent field of knowledge. In music it ranges from the efforts involved in music listening to instrumental expertise acquisition. However, it is not rare that historiography questions are forgotten in the historical discourse. The main objective of this paper is to explain the theoretical models of history, the nomologic, comprehensive, conceptual and narrative models, through traditional examples from the historical discourse of western music.

Keywords: Historiography, Theory of history, Music history.    


1. Introdução


A grande parte dos estudantes de praticamente todos os campos de conhecimento inicia seus cursos através dos aspectos históricos. Quase todos os professores dos cursos de graduação e pós-graduação preocupam-se em dimensionar seus alunos sobre suas respectivas áreas, sobre o que aconteceu ao longo dos tempos até o exato momento da aula. Este fato mais do que um padrão pode ser tomado como regra, que de uma forma ou outra surge nas etapas iniciais dos currículos. Partindo destas afirmações, onde a história está evidentemente destacada na formação dos mais variados profissionais e de que a história é também uma área de conhecimento independente e não apenas um procedimento curricular, é de se esperar que ocorra um grande número de idiossincrasias no método e no discurso dos professores.

Este artigo tem como principal objetivo explicar os modelos teóricos de história através de exemplos tradicionais do discurso histórico da música ocidental.  Esta aproximação entre a narrativa dos eventos musicais sob o olhar historiográfico não pretende ser uma análise crítica definitiva ou fechada sobre como o músico deve posicionar-se quanto ao objeto do passado, mas sim propor algumas observações generalistas para que se desenvolvam melhores meios de compreensão do discurso histórico em professores de música, intérpretes, compositores e apreciadores.

Como fios condutores deste trabalho serão utilizados os modelos teóricos da história explicados por José Carlos REIS (2003) no texto “A especificidade lógica da história”: o modelo nomológico, o modelo compreensivo, o modelo conceitual e o modelo narrativo. Primeiramente serão feitas observações introdutórias quanto a problemas inerentes ao conhecimento histórico, sua cientificidade e sua possibilidade, explicados no inicio do texto de REIS e, em seguida, ocorrerá o diálogo entre os modelos teóricos e algumas passagens pertinentes do discurso da história da música.


2. Os problemas da história

A condição natural e maior problema do conhecimento histórico é o óbvio distanciamento entre os observadores do presente e o objeto observado no passado. Na produção do seu discurso o historiador não utiliza uma linguagem específica e sim sua língua materna, cheia de anacronismos, preconceitos, arcaísmos, dificultando o reconhecimento das verdades e mentiras. REIS (2003, p.100) ressalta que o conhecimento histórico “olha o passado com os olhos e as cores do seu presente, apagando a diferença que deveria preservar e conhecer entre presente e passado”.

Outro ponto abordado pelo autor, a partir de Descartes, é o simples distanciamento temporal entre observador e objeto. Os fatos históricos assim são fantasmagóricos, indecifráveis e misteriosos, pois deixam de existir. “A história não chegaria a produzir nem erro, mas confusão” (2003, p.100). Após apontar estes problemas inerentes ao conhecimento histórico a pergunta é: o que é a história e qual o trabalho do historiador? REIS (2003, p.101) responde que a história “é um conhecimento que pretende obter a verdade do seu objeto através da investigação, da interrogação e do controle das fontes... é o conhecimento cientificamente conduzido do passado humano”.

Existe também o fator histórico nos outros saberes, por onde as mudanças são mostradas; nem sempre as coisas foram deste jeito, houve transformações. A própria história sofreu e sofre este processo, ela já foi contada através de registros, crônicas, compilações, genealogias, teologia, filosofia, ciência, ciência social, romances verídicos, etc. Além destas transformações do pensamento histórico, ainda ocorre um fator que deixa tudo mais incerto e impreciso; o fato do conhecimento histórico se confundir com sua matéria e de não poder constituir um conhecimento único total e sim uma soma de elementos conhecidos. Para exemplificar REIS cita a Revolução Francesa como uma série de eventos ocorridos na França no final do século XVIII e não um grande evento isolado localizado precisamente no tempo.

Contar a história passa por uma construção de juízos para que possa ser atribuído um sentido aos fatos. NIETZSCHE (1983) fala nas “atitudes negativas” que o observador pode cometer quando pensa no passado. O historiador pode contar uma “história monumental”, que vai resgatar no passado somente os grandes modelos, como o Curriculum Vitae, uma história monumental de si mesmo. Uma “história antiquária”, como a adoração dos detalhes do passado, ao modo de um colecionador de pequenos objetos. Uma “história crítica”, que estuda os fatos com objetividade excluindo a subjetividade, ou seja, a Razão pode passar por cima da vida.

Em outra definição do conhecimento histórico, Michel de CERTEAUX (1987) posiciona a história entre a ciência e a ficção. É ciência enquanto objetiva e analítica, porém fictícia “quando esconde em sua refiguração do passado, o presente que a organiza” (REIS, 2003, p.105).


           HISTÓRIA

         
                      CIÊNCIA          FICÇÃO


CERTEAUX fala da “função social da representação histórica” e a explica como uma maneira de aproximar o passado do presente, uma unidade compreensiva que torne possível a comunicabilidade, mesmo que simbólica, dos observadores de hoje com os objetos do passado.


3. O modelo nomológico


Este modelo coloca a história em pé de igualdade científica com a física. A história está entre os processos que podem ser explicados causalmente dentro de uma generalização, uma verdade histórica objetiva. REIS (2003, p.107-108) fala de Carl HEMPEL (1984) como um dos principais autores desta corrente. HEMPEL queria “mostrar que tanto a história quanto as ciências naturais recorrem a leis gerais e que, portanto há uma unidade metodológica na ciência empírica”.

Ao associar com tanta proximidade o conhecimento histórico e o olhar metodológico, HEMPEL classifica as causas (leis) e as condições naturais como etapas da explicação de um evento: “a) descrição das condições iniciais para a ocorrência de um evento; b) leis gerais, a conexão entre o evento e as condições iniciais” (REIS, 2003, p.108). Por meio deste olhar positivo o conhecimento histórico se consolida e um “esboço de explicação” já garante a história como ciência, pois é mais forte que a pseudo-explicação. REIS aponta as observações de HEMPEL e NAGEL (1984) em acordo quando determina alguns aspectos necessários à objetividade científica: “discurso, diálogo, argumentação e intersubjetividade”. Cientes do olhar do historiador como do cientista que observa seu objeto, seleciona, decide, compara, analisa e conclui, HEMPEL e NAGEL concordam que mesmo as mais leves explicações em história, são muito melhores que as intuitivas e envolventes pseudo-explicações.

A explicação pelo modelo nomológico pode ficar mais clara no discurso de história da música a partir de um exemplo de raciocínio similar, mas com características desviantes, o que os autores chamaram de pseudo-razão. As transformações da música medieval, mais precisamente da notação e prática da música na Igreja Cristã nos grandes centros medievais, sobretudo nas cidades francas, se explicam por meio do aumento da sua complexidade e uniformidade, partindo do canto monódico (cantochão), depois para o organum e seus desdobramentos em mais vozes até atingir a textura polifônica. Uma pseudo-explicação bastante comum e envolvente é dizer que estas transformações se deram por causa da fé dos músicos da época, por seu desejo de engrandecer a Deus e que esse amor ao divino impulsionou a música ao encontro das mais surpreendentes inovações da escrita e das performances musicais em grupo.
 
Uma explicação a partir do modelo nomológico poderia mudar este discurso sobre as transformações da música medieval e ainda inferir nas causas desta explicação que aponta a fé no divino como motor principal.

Notar-se-á que tanto o registro sistemático por escrito das melodias do cantochão como a sua atribuição a uma inspiração divina coincidem com uma enérgica campanha dos monarcas francos no sentido de unificarem o seu reino poliglota. Um dos meios necessários para alcançar este objetivo era uma liturgia e uma música de igreja que fossem uniformes e constituíssem um elo de ligação entre toda população. (GROUT e PALISCA, 2007, p.59)

 Primeiramente, um olhar objetivo poderia atribuir tais transformações na prática musical ao desenvolvimento da notação, ao sistema aperfeiçoado por Guido d’Arezzo e ao contato de alguns compositores com a música profana. Segundo os historiadores Donald J. GROUT e Claude V. PALISCA (2007), mesmo o desenvolvimento da notação musical possui especificidades. A notação só surgiria após a existência de uma “considerável uniformidade no quadro da interpretação improvisada. A notação, em suma, foi tanto uma conseqüência dessa uniformidade como um meio de a perpetuar” (GROUT e PALISCA, 2007, p.59).

Para o modelo nomológico a explicação simplesmente pela fé pode ser considerada uma pseudo-explicação e assim, insuficiente cientificamente. A música que chegou até nós através da notação foi realizada dentro da Igreja e, portanto por ela protegida e idealizada. É natural que os músicos se referissem convenientemente à fé como sua inspiração, sendo ainda a fé em Deus o motor teórico da própria Igreja. Neste exemplo fica claro que a matriz de investigação científica pode atravessar as camadas iniciais de uma explicação e o discurso sobre o evento pode ser ampliado e complexificado. Segundo a proposta de HEMPEL o conhecimento histórico deve buscar as condições iniciais para que um evento ocorra e crie de maneira favorável uma explicação do tipo “causa e efeito”. Os músicos dentro das igrejas medievais estavam sujeitos às normas de conduta, que devem entrar nos elementos participantes das condições iniciais de uma explicação das transformações da música. Uma pseudo-explicação partindo direto do elemento fé e amor divino, que também não pode ser totalmente negligenciado, é apenas metade da história.

Cada afirmação do discurso histórico durante uma aula explanativa sobre a história da música pode ser atravessada com as perguntas investigativas sobre “causa e efeito”. O professor e o aluno podem abordar o texto histórico escrito com maior criticismo e assim tornar real o interesse pela pesquisa e pelo estudo aprofundado. A história assim é contada não como um empilhamento de eventos fechados, mas abertos às explicações causais. Neste ponto REIS (2003, p.113) continua a construção do modelo nomológico e faz sua conexão com a narrativa. Ele cita William DRAY [1] (1957), que propõe uma “explicação por razões”. Esta explicação visa equilibrar logicamente “agente e ação; e não se aplica só a indivíduos que agem conscientemente. Pode ser aplicada à atividade inconsciente, às coletividades transformadas em indivíduos”. Uma explicação racional e que procure se basear em leis generalizantes é um aspecto típico da proposta nomólogica.

Novamente direcionando o olhar para a aula de história da música ocidental, pode-se construir uma explicação de suas transformações partindo da evolução dos instrumentos musicais. As mudanças na forma de compor, de tocar, de ouvir e de pensar em música podem ser sistematizadas através do desenvolvimento tecnológico dos instrumentos. Épocas, compositores e regiões podem ser organizadas com esta explicação, que se fundamenta em leis gerais. Um professor de música pode explicar aos alunos a história exclusivamente por este viés, colocando o desenvolvimento dos aspectos mecânicos, do desenho, do uso dos materiais na fabricação de instrumentos musicais no centro nervoso do discurso, as invenções e soluções com instrumentos como o motor das transformações da música. É bastante óbvio que este exemplo não pode ser seguido irrestritamente, mas pode servir muito bem como recurso historiográfico. Não podemos dizer que os compositores e instrumentistas de teclado só foram perceber as possibilidades da dinâmica musical (variações de intensidade) com a popularização do pianoforte no início do século XIX, pois sabemos que os tecladistas das décadas anteriores a realizavam através da articulação e ornamentação. Porém podemos dizer que o grande desenvolvimento dos instrumentos de sopro no romantismo incentivou compositores e consequentemente aumentou a quantidade de instrumentistas de cordas nas orquestras e o tamanho das orquestras como um todo.

Contar a história da música somente com a história dos instrumentos é uma limitação e REIS (2003, p.113) explica a problemática das leis científicas com as observações do Paul VEYNE (1983) e diz que as “as leis históricas são sempre acompanhadas de uma ou outra restrição em sua aplicação”. Não é possível contar a história da música somente com a história dos instrumentos, como também não é possível colocar vários instrumentos musicais numa grande sala e esperar que eles contem esta história. O conhecimento histórico apesar de poder utilizar a matriz da lógica científica da física, como sugerem os preceitos do modelo nomológico, não pode sustentar-se em pé de igualdade. A história possui problemas que na física nem seriam cogitados. VEYNE fala que “cada vez que anunciamos uma lei histórica acrescentamos logo em seguida a grosso modo ou há exceções” (REIS, 2003, p.114). Porém, como já foi dito anteriormente, este modelo que organiza os eventos históricos pela razão e cronologicamente, segundo REIS uma história científica que procura aproximar-se do modelo indutivista da física, é bastante interessante na elaboração do discurso da história da música na sala de aula ou na leitura crítica.
  


4. O modelo compreensivo

Apesar de sustentar a objetividade e racionalidade do pensamento científico semelhante à proposta nomólogica, o modelo compreensivo é explicado historicamente por REIS (2003, p.116) como uma dualidade entre a natureza e a ciência: “Não se pode tratar natureza e história com os mesmos métodos. Há diferença entre as ciências nomotéticas e as ideográficas, entre as ciências naturais e as do espírito”. O modelo compreensivo ainda apresenta uma divisão interna, onde a diferença entre história e natureza é explicada ontologicamente ou pela epistemologia. Esta divisão interna chega num acordo quando se aceita que sua diferença está na “especificidade da sua operação cognitiva, a compreensão empática” (REIS, 2003, p.117), em outras palavras, elas se diferenciam no processo de imaginar-se no lugar do outro, uma diferença entre as constituições dos objetos de estudo.

REIS situa DILTHEY (1984) como um dos principais formuladores deste conceito. “Em sua perspectiva, a compreensão e a interpretação constituem o método específico das ciências do espírito. O que o historiador faz é compreender as manifestações de vida das outras pessoas” (REIS, 2003, p.117). Um modelo compreensivo da história seria um diálogo entre o historiador ou observador no presente e outros homens e seu tempo vivido no passado. DILTHEY também explica esta relação entre presente e passado através de “um espírito objetivo”, como um “universo de significações compartilhadas, onde a comunicação entre os homens se realiza” (REIS, 2003, p.117). Esta “experiência compartilhada” seria para DILTHEY uma espécie de senso comum, uma condição de aproximação intrínseca entre o eu e o outro, o observador no presente e o observado no passado, como um processo de reconhecimento da cultura e da tradição atemporais.

Ao partirmos de uma compreensão geral podemos articular uma compreensão de caráter mais imediato, onde o observador identifica o que o objeto expressa, sem necessariamente passar por processos interpretativos especializados. Esta compreensão estaria ligada a uma experiência comum a todos os indivíduos, o senso comum, o que DILTHEY chamou de “compreensão elementar”. E, por outro lado, quando existe um processo de interpretação mais aproximada do detalhe individual, quando o “indivíduo se destaca e se diferencia de seu universo cultural” e o seu observador vai do geral para o particular, a compreensão atinge um nível que DILTHEY denominou “compreensão superior”. Na tentativa de esclarecer estes conceitos no modelo de compreensão do conhecimento histórico podemos apresentar alguns exemplos na história da música.

Como primeiro exemplo, tomamos os movimentos da suíte barroca como movimentos de danças tradicionais europeias, inclusive levando em conta suas origens bastante recuadas ainda no folclore medieval. Podemos sustentar que os compositores da época tratavam as danças em suas suítes como verdadeiros movimentos dançantes, sem descaracterizá-los. Os músicos intérpretes atuais tocam estes movimentos da suíte barroca através de uma compreensão contemporânea, atribuindo características ao que pode ser um movimento dançante. Desta forma, existe um senso comum entre os músicos dos séculos XVII e XVIII e os músicos do século XXI, com sua compreensão equalizada das danças. Aqui a compreensão elementar traça uma linha de relação que parte da cultura popular medieval, passa pelas composições de música barroca e chega até as salas de concerto e gravações do nosso século. Esta também é uma compreensão sincrônica da história, assim contada com a perspectiva do observador e vivência presente sobre ou com os objetos e sua vivência nos passados.

Com outro exemplo semelhante partimos do fato de que W.A.Mozart (1756-1791) foi um gênio criador e que isto já explicaria seus feitos artísticos. A nossa compreensão atual de Mozart depende de nossa compreensão de genialidade, dos atributos que consideramos necessário para que ela ocorra. Ao chamarmos Mozart de gênio sem interpretarmos detalhadamente os processos que o levaram a consumar sua genialidade, ou seja, não nos atermos em suas potencialidades e contexto, estamos reproduzindo uma compreensão de senso comum, elementar. Porém, isto não quer dizer de forma alguma que esta maneira de compreender seja ineficiente, tomando o discurso histórico como um todo. Neste exemplo é apenas uma compreensão rápida, que pode gerar uma compreensão geral simplificada, não falsa, mas incompleta.  

Em direção a uma “compreensão superior”, ao individualizante e particular, voltamos ao exemplo dos movimentos de dança da suíte. No interior de cada dança existem algumas especificidades que podem dar margem a mais de uma interpretação, tanto entre os compositores das suítes nos séculos XVII e XVIII como entre os intérpretes contemporâneos. Existe, por exemplo, um senso comum quanto ao andamento da Bourée, porém pode existir uma leitura individual sobre alguns elementos presentes na obra, como detalhes de articulação, terminação das frases ou uma variedade de entendimentos sobre a retórica através dos afetos, estilos e tópicas. Isto vale tanto para os músicos barrocos e sua compreensão das danças da renascença e idade média como para os músicos do século XX e XXI, que já passaram pela releitura dos teóricos e compositores do período clássico e romântico. Sabemos a diferença entre um movimento tipicamente barroco, com sua busca pelo afeto unificador da obra e um do classicismo, com a busca das surpresas e interesse por meio da variedade retórica (RATNER, 1980). Quando Charles ROSEN (1998) explica o “estilo popular” no inicio do século XVIII, ficam evidentes as particularidades desta época, sobretudo nas transformações dos ritmos de dança popular no interior dos corais. ROSEN também fala do desaparecimento de grande parte das inflexões do discurso musical. Se pensarmos um pouco mais longe, as diferentes maneiras de tratar os elementos composicionais dos movimentos de dança na suíte barroca, as características de cada compositor poderiam ser explicadas pelos contextos culturais individuais. Com quem o compositor estudou, o que ele havia presenciado até o momento de sua composição, onde ele morava. E através destas mesmas indagações poderíamos explicar a interpretação dos músicos contemporâneos.

Ao aplicarmos este conceito de “compreensão superior” novamente na nossa compreensão sobre a vida de Mozart, ampliaremos significativamente as possibilidades do discurso histórico. A genialidade é sua “compreensão elementar”, pois é o senso comum. No entanto, existem outros fatores que podem contar a sua história, não atrelados diretamente à genialidade. Por exemplo, o fato isolado de Mozart ter morrido tão cedo, com a idade de 35 anos, afasta a compreensão imediata do observador hipotético do século XXI, mas contribui para o detalhamento de sua biografia. A sua morte não está relacionada ou esclarecida diretamente à sua genialidade musical. A morte prematura é um fato individual e pode ser entendida individualmente, como uma ”compreensão superior”. A compreensão superior passa de alguma forma pela compreensão elementar e para obter-se a compreensão superior sobre a morte de Mozart é necessária uma compreensão total do indivíduo. A vida de Mozart pode ser abordada historicamente por outros aspectos além de sua genialidade, como a sua relação conturbada com o pai, problemas financeiros, as dificuldades de infra-estrutura de sua época ou outros traços psicológicos, como por exemplo, a suspeita que pesquisadores têm hoje de que ele possuía a síndrome de Tourette [2] (AMÂNCIO, 2006, p.121).
    
Para DILTHEY, como a compreensão fundamenta-se na revivência ela é subjetiva e não pode ter os mesmos mecanismos de mensuração das ciências naturais. A subjetividade das ”ciências do espírito” não pode ser abordada pela lógica nomólogica e sim compreendida ao modo da leitura interpretativa de um texto. Por outro lado, Max WEBER (1987) “apresenta uma visão mais racionalista da compreensão” (REIS, 2003, p.122). Ele tende para a lógica da compreensão que é antes impessoal do que uma atividade psíquica pessoal e participativa, ou seja, para que ocorra a compreensão de um determinado evento não é necessário o envolvimento ativo do observador. A observação e análise por processos lógicos servem como meios eficazes à compreensão.

É verdade que a divisão entre a compreensão dirigida pela lógica ou pela subjetividade é bastante emaranhada e muitos aspectos históricos observados e compreendidos de maneira elementar podem ter uma construção lógica mais proeminente que a subjetiva, o mesmo ocorrendo com a compreensão superior. Novamente podemos pensar em um exemplo tradicional da história da música para ilustrar este problema historiográfico. A lógica pode muito bem gerar a compreensão dos motivos que favoreceram a massiva adoção do baixo de Alberti na sociedade burguesa da segunda metade do século XVIII. Podemos supor que sua facilidade de execução como figura de acompanhamento em oposição à virtuosa escrita polifônica atingida pelos compositores do final do período barroco (c.1750) foi muito bem vinda na prática musical dos amadores, pelos novos consumidores de música para teclado na aristocracia europeia.

Como a compreensão apresentada por DILTHEY trata-se de uma construção empática, um processo de colocar-se no lugar do outro, WEBER sugere uma compreensão através de um caminho lógico, o que chamou de construção do “tipo ideal”. Para REIS (2003, p.123-124) esta construção é lógica, “racional, é uma hipótese que permite abordar e apreender o real”. Ele ainda explica o tipo ideal como uma “síntese, um quadro ideal não contraditório de relações pensadas... uma construção de realidades objetivamente possíveis, um meio de conhecimento, um conceito limite, puramente ideal, visando à apreensão de individualidades históricas”. Podemos articular esta construção teórica do “tipo ideal” com a idealização das características mais marcantes do romantismo musical (século XIX), que em poucas palavras, consiste na profunda valorização do artista e de seus sentimentos mais pessoais. Este tipo ideal pode ser personificado na individualidade inconfundível e arrebatadora de Beethoven. Ele torna-se uma fórmula que sintetiza este período da história da música no ocidente, o marco da transição do classicismo para o romantismo, o artista independente ideal do século XIX. A construção racional sobre este compositor pode inclusive abarcar fenômenos coletivos como o crescimento dos concertos públicos com venda de ingressos, a profissionalização de artistas autônomos, além desta consolidação do estereótipo do músico romântico. A elaboração de um sistema ideal para explicar, localizar e organizar um objeto, que pode ser um evento ou uma série de eventos é uma proposta historiográfica. É a elaboração de uma ideia temática, moldada pela racionalidade e com o objetivo da racionalização, é uma história organizada através da criação de conceitos.


5. O modelo conceitual

Não satisfeito com o modelo compreensivo proposto por DILTHEY, WEBER procura uma maneira mais sistemática de organização e observação do passado. REIS (2003, p.125) explica que WEBER quer “produzir para as ciências sociais e humanas o mesmo programa epistemológico que Kant realizou com as ciências naturais... uma organização lógica do passado, temática, problematizante e conceitual”. REIS apresenta a problemática inicial na construção desta história pelos conceitos generalizantes: na elaboração dos conceitos, o historiador utiliza simultaneamente a linguagem concreta dos documentos e os termos criados por ele mesmo, estranhos à época que estuda.

Quando tentamos enxergar, organizar, entender e explicar um evento passado estamos sujeitos à nossa percepção presente. Os conceitos sistematizados para contar a história são forjados na distância entre observador e objeto e o resultado disto pode ser estranho a ambos. Mesmo as provas documentais, uma carta, uma assinatura, um pedaço de instrumento musical ou uma partitura manuscrita estão à mercê do distanciamento inexorável. Não podemos esquecer que estes objetos podem ganhar dimensões diversas, porque estão sendo vistos e então explicados por indivíduos alheios no tempo. Se pedaços de um instrumento de cordas são encontrados no sótão de um prédio medieval que outrora fora um mosteiro, não poderemos reconstituir fielmente sua sonoridade, como e quando ele era tocado, ou até mesmo sabermos com exatidão como ele chegou até ali. O historiador contemporâneo fará associações lógicas e racionalmente poderá enquadrar sua descoberta em um conceito, por exemplo, investigar a sua constituição material e colocá-lo entre os instrumentos da idade média, ou então constatar que fora construído no século XVII e chamá-lo de instrumento barroco. Este tipo de problema também alcança as partituras do passado, que ao terem sua autenticidade comprovada, ainda encontram uma centena de intérpretes e versões, todas com as mesmas dificuldades, o observador do presente lendo um documento de outra época. Este distanciamento é obviamente intransponível e a formulação de conceitos uma solução útil para a organização da história.

Em seu célebre artigo “The Pastness of the Present and the Presence of the Past ” Richard TARUSKIN (1988) reitera a condição de distanciamento entre os intérpretes do presente e os objetos do passado, trazendo a tona a discussão da performance da música de outros séculos. TARUSKIN chama a atenção para a consciência deste distanciamento temporal como uma comunhão que renova o contato com a fonte, reforçando a percepção não somente do pastness do passado, mas da sua presença no presente. Para TARUSKIN, deve ocorrer no intérprete contemporâneo um profundo envolvimento histórico por meio da participação ativa do presente. O pastness do presente insinua-se muito mais que a presença do passado, isto é, as condições intrínsecas do passado são compreendidas e traduzidas sob a ótica e para o tempo presente.

A história da música em particular é organizada conceitualmente. A partir do século XIX eventos agrupados tematicamente passaram a constituir os grandes conceitos da história da música e estes conceitos ordenados cronologicamente. Tomando como exemplo a história da música ocidental descrita por ocidentais, existe uma tradição comum a diversos historiadores que, a grosso modo, explica os eventos partindo da pré-história, música na antiguidade (gregos e romanos), idade média, renascimento, barroco, clássico, romântico, modernismo (início do século XX) e música contemporânea. Estes conceitos são divididos como grandes temas que possuem características musicais internalistas [3] aparentemente em comum, separados por datas aproximadas. Alguns autores, porém insistem na precisão das datas entre os grandes conceitos, utilizando eventos da história geral, biografias ou tomando emprestado o discurso histórico de outras artes. Este impulso em estabelecer marcos para que a história seja organizada e mais sistematicamente visualizada dá margem ao desencontro. Um caso clássico são as conceituações históricas sobre o fim do período barroco, muitas vezes marcado com a morte de J.S.Bach em 1750, quando então inicia uma nova era musical conhecida como período clássico ou classicismo. Ou então, a idade média na Europa que inicia com o fim do Império Romano no ano 476. É óbvio que estas fronteiras históricas não podem ser aceitas como algo além de tentativas positivas. Não representam acontecimentos absolutos e onipresentes.

No germe desta organização conceitual está o objetivo metodológico, mas a contrapartida e o resultado disto muitas vezes é a controvérsia, como a de enquadrar um compositor do período barroco ou clássico levando em conta somente a data da obra. Se uma música for composta após 1750 ela já é do repertório clássico? Um paradoxo como este apesar de parecer ingênuo ocorre em maior ou menor escala em todos os enlaces conceituais. James WEBSTER (2004), por exemplo, oferece uma possibilidade diferente para a história da música do século XVIII e o divide em três partes: o fim do barroco c.1670 - c.1720; o período característico do século entre c.1720 – c.1780 e os últimos vinte anos que já vislumbravam o nascimento do mundo moderno c.1780 - c.1830. Perante esta perspectiva, o século XVIII comumente bipartido pela morte de Bach se transforma aos olhos contemporâneos e ganha novas possibilidades de aproximação historiográfica.

Isto nos oferece um exemplo da problemática conceitual e de como os conceitos funcionam no discurso da história da música. Na explicação teórica deste modelo historiográfico Reis aborda dois autores centrais, PROST (1996) e VEYNE (1983). Para PROST “o conceito é uma comodidade de linguagem que permite uma economia de descrição e análise... Não são fórmulas abstratas, mas resumos, descrições compactas, concentração de múltiplas significações”. Prost trata o conceito como um “símbolo adequado das coisas”, que não são gerados nem nos aspectos exteriores do real e nem completamente internos a ele (REIS, 2003, p.127).

Paul VEYNE explica os conceitos históricos de duas maneiras. Primeiramente os conceitos “são mais do que descrições resumidas, pois incorporam um raciocínio e se referem a uma teoria” (REIS, 2003, p.128). Ele vê o objeto histórico como um problema identificado e procura resolvê-lo através de uma elaboração teórica. Num outro momento, VEYNE busca o rigor histórico na formulação de conceitos e na crítica de documentos. O conceito não é uma ressurreição ou o reaparecimento de um evento isolado, reconstituído e narrado através dos documentos históricos, ele é antes disso uma análise. Neste ponto o modelo conceitual distancia-se do modelo compreensivo puro na medida em que não se atem na revivência ou recriação das condições originais, mas busca a formulação analítica. O paradoxo apresentado anteriormente nos marcos do período barroco ressurge agora em VEYNE: “Os conceitos históricos são paradoxais, pertencem ao senso comum. Não são complexos de elementos necessariamente ligados. São representações que dão a ilusão de intelecção, mas não passam de imagens genéricas” (REIS, 2003, p.130). Em outras palavras, a lógica e os conceitos fechados não podem suportar a variedade da vida, os conceitos não passam de generalizações, de uma tentativa de organizar o real. Mesmo sendo os conceitos uma construção analítica, eles são reconhecidamente flexíveis e não determinantes do objeto histórico. Charles ROSEN (1998) ao se referir à sua concepção de estilo clássico, explica a necessidade de um conceito estilístico para o entendimento da história da música, no entanto, também sem estabelecê-lo como um fato sólido.

A indeterminação do objeto e seus limites de demonstração põem em xeque a intenção de uma “história total” contada unilateralmente. REIS abre a sua última explicação de modelo teórico da história com a proposta de François FURET de um discurso múltiplo, “entre a arte da narração, a inteligência do conceito e o rigor das provas” (REIS, 2003, p.132).


6. O modelo narrativo

O modelo conceitual, também chamado por FURET de “história - problema”, resume-se em encarar o discurso histórico como estruturas complexas, “coletividades, massas, economias, sociedades e civilizações, construídos pelo historiador” (REIS, 2003, p.133). A história conceitual também era sustentada por Paul VEYNE como uma “intriga” não necessariamente ligada à ordem cronológica, para ele a história poderia ser organizada através de uma intelecção atemporal. Para FURET este modelo lógico estruturalista não satisfaz mais o historiador do final do século XX. A sua fraqueza está no distanciamento sistemático com o vivido e com o tempo.

Neste ponto o modelo narrativo torna-se uma possibilidade de explicar a história através da lógica e da temporalidade. A narrativa havia sido criticada anteriormente pela história - problema por causa de seu exemplo mais proeminente, a biografia. A explicação por uma sequência mais ou menos coerente de fatos singulares e ordenados de fora para dentro era ingênua e insuficiente, se comparada ao cuidado analítico e à inteligência na elaboração de uma intriga que nem precisava ocupar-se com a temporalidade. REIS (2003, p.135) fala do retorno da narrativa no final do século XX e cita Paul RICOEUR (1994) como um autor fundamental no seu esclarecimento: “Ricoeur defende o caráter intrinsecamente narrativo do conhecimento” uma ”nova narrativa”, que teria como preocupação uma sustentação lógica sem desvincular-se dos elementos individuais subjetivos e multi - significantes da temporalidade. “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira narrativa. A narrativa é significativa na medida em que ela desenha os traços da experiência pessoal” (RICOEUR apud REIS, 2003, p.136-137). RICOEUR ainda articula a compreensão narrativa entre dois agentes que reconstruiriam mutuamente a história. O caráter ficcional do texto histórico narrativo produzido pelo historiador se realiza no leitor, no espectador ou no ouvinte. “A compreensão narrativa articula uma atividade lógica de composição – o autor – com a atividade histórica da recepção – o público” (REIS, 2003, p.139). O público é envolvido pela poética narrativa e enxerga sua própria vida e cultura na vida do outro histórico. Essa identificação aprofunda a compreensão fazendo o espectador reviver as experiências narradas.

Partindo da biografia narrada mediante os cuidados da lógica e da temporalidade, podemos propor as relações entre a música de dois séculos, como também sua transformação até as diferenças. Trata-se da música dos séculos XVIII e XIX, na música de Mozart e Chopin. Primeiramente as convergências, que aparecem nas características composicionais de ambos os compositores: apesar de Mozart ter composto para as mais variadas formações instrumentais, enquanto Chopin escrevera quase que exclusivamente para piano solo, alguns elementos comuns entre os compositores estão ressaltados na forma e na textura. Formalmente eles se assemelham devido à simetria das frases e períodos, a sua preocupação com a ordenação das ideias no discurso musical ao modo da quadratura clássica. Quanto à textura, ocorre a prevalência da melodia acompanhada, muitas vezes marcada pelo lirismo da linha melódica (estilo cantabile) e na realização do fraseado, seus ápices e suas terminações.

Ao levarmos em conta uma linha geral dos dados biográficos de Mozart e Chopin percebemos semelhanças, sobretudo no que se refere aos aspectos práticos do cotidiano, como as relações interpessoais, a saúde e o trabalho remunerado com concertos e alunos. Apesar de separados por meio século e em momentos históricos bem distintos (Mozart contemporâneo das agitações revolucionárias das últimas décadas do século XVIII enquanto Chopin de suas conseqüências iniciais em Paris da primeira metade do século XIX), os dois compositores estavam ligados por alguns aspectos biográficos, como a precocidade artística, grandes dificuldades em relação às pessoas mais próximas, trabalho criativo contínuo e problemas de saúde que culminariam nas suas mortes antes dos 40 anos.

As diferenças entre os dois compositores também pode ser explicada através da narrativa, com os aspectos característicos na música abordados pelo olhar temporal cronológico. As transformações da música europeia na virada do século XVIII são percebidas com clareza no acabamento estilístico dos dois compositores. Mozart já havia incorporado em suas composições uma matriz de figuras retóricas contrastantes, seguindo a tradição de Haydn e distanciando-se dos conceitos de unidade pelo pulso e monotematismo do período anterior. Em Beethoven estas figuras ganham novas dimensões com o reforço das escolhas individuais e assim chegam até Chopin. Mozart trabalhou na exploração máxima do estilo de sua época e estabeleceu sua personalidade através da economia de recursos e clareza nas intenções do discurso musical, por exemplo, concebendo o tema como uma unidade melódica, rítmica, harmônica e textural completa, reaparecendo ao longo da obra sem alterações marcantes. Chopin, por sua vez, utiliza a força do contraste retórico ao modo do recém forjado pensamento romântico, quando o tema é uma melodia capaz de surgir variada harmonicamente, ritmicamente e texturalmente. Para Edward T. CONE (1968, p.79) as transformações do pensamento musical ocorridas entre estes períodos podem ser descritas pela concepção da unidade fundamental. No período clássico, o autor coloca o compasso como a unidade métrica mais usual, enquanto no romantismo os compassos podem mais facilmente se agrupar em frases e tornarem-se o que ele chamou de “hipercompassos”. Este aspecto já é suficiente para uma percepção discriminada de como os materiais composicionais são tratados por Mozart e por Chopin.

Ambos compositores possuem a característica de movimentação (alteração de velocidades/andamentos) no interior da obra, porém cada um se diferencia pela concepção de unidade e contraste. Levando em conta a proximidade estilística e a explícita admiração de Chopin por Mozart, estas liberdades agógicas na música de Chopin não precisam ser exageradas para surpreenderem, nem cair na caricatura grosseira de “rubatos ao atacado” para prender a atenção do ouvinte. Com este exemplo tenta-se construir um modelo narrativo da história, uma explicação simultaneamente sincrônica e diacrônica que proporcione um diálogo mais vivo entre observador e objeto histórico, aqui o músico que toma as decisões interpretativas quanto às obras de Mozart e Chopin.

REIS (2003, p.140-143) explica que para Paul RICOEUR existem três momentos constituintes da narrativa histórica: primeiro a “Mimese 1”, a “compreensão prática”, ou seja, a apreensão da estrutura de onde se desenvolverá o discurso histórico, o reconhecimento dos dados; o segundo passo ou “Mimese 2” é a articulação dos dados, a elaboração da intriga; e o que RICOEUR chamou de “Mimese 3” é o resultado desta articulação, a percepção final. Estes três momentos no interior do modelo narrativo esclarecem a síntese de que “a história se inscreve no círculo hermenêutico. Ela é uma configuração narrativa do tempo vivido, que emerge e retorna à vida.” Os dados são reconhecidos e selecionados, depois é elaborado um discurso cronológico enquanto sequência lógica de eventos, paralelo a um discurso não cronológico. É uma configuração de um todo complexo, uma síntese poética para que então ocorra a recepção do público que irá completar o círculo da narrativa histórica através de sua catarse, “o prazer do reconhecimento do vivido”. No exemplo apresentado anteriormente encontramos estes três momentos: em primeiro lugar, na escolha dos séculos XVIII e XIX com Mozart e Chopin; depois na construção da intriga com as convergências e divergências biográficas e estilísticas; para enfim chegarmos ao resultado, na recepção do público que completa a narrativa a partir de sua própria perspectiva e no intérprete que opta por tocar deste jeito ou de outro com base na sua compreensão histórica.

REIS (2003, p.144-145) conclui apontando o reconhecimento da história ao campo narrativo. Além do círculo mimético descrito por RICOEUR, REIS ainda fala da narrativa histórica como a narrativa de eventos singulares de FOUCAULT (1979), da multiplicação dos objetos, tudo é objeto de historicidade: “Os objetos da história são configurações singulares. É esta a revolução foucaultiana”. A narrativa como discurso histórico é substancialmente subjetiva e desvincula-se da racionalidade na medida em que se aproxima do poético (RICOEUR) e torna-se um conhecimento com o limites tão intuitivos quanto os da arte (NIETZSCHE).


7. A construção do presente

O século XX como momento inicial de convivência simultânea e desvelada do pensamento científico e religioso é também o momento de doloridas desestabilizações, quando nem a arte foi poupada. A grosso modo, a música e outras formas de arte do século XIX, ainda cheias dos ideais do belo renascentista, iniciam o século XX ocupando-se também de outras realidades possíveis, como o feio ou a destruição.  Ainda hoje vemos atônitos estas transformações artísticas dos últimos cem anos, olhamos de lado para Schoenberg e sua música como personna non grata. E grande parte desta flagrante perplexidade está ligada à compreensão histórica.

Um dos aspectos mais relevantes da contemporaneidade musical é a excessiva manifestação do passado no presente. Historiadores, compositores, intérpretes e ouvintes cultivam deliberadamente as raízes dos eventos históricos, estilos e obras dos séculos passados, prolongando-as até o presente. Isto não deveria ser mais do que o resultado da nossa consciência científica e histórica a serviço do prazer, da valorização da arte. Porém, alguns são como que sugados pelo passado ao ponto de quase negarem qualquer possibilidade criativa contemporânea. Em 1944, Kurt PAHLEN (1944, p.10) escreveu na introdução de sua História Universal da Música: “Houve na história humana – há muito, muito tempo – longas épocas em que a música se achava no centro da vida. E... eram tempos felizes”! Mais de uma década depois, Otto Maria CARPEAUX (1958) explica o século XX com duas vertentes, a que descobre e redescobre a música do passado e, por outro lado, um século que rompe com qualquer tipo de tradição estabelecida, nos séculos anteriores e as no próprio século XX. O seu último comentário na edição de 1958 sugere algumas reflexões quanto ao futuro da música:

“O mais rígido determinismo histórico não seria capaz de prever o desfecho dessas dimensões. Mas o resultado terá, em todo o caso, de justificar-se perante os valores que já existem, imperecíveis. É, como disse Patrick Henry, o passado que julgará o futuro” (CARPEAUX, 1958, p.419).  

Na edição revisada de 1999 “O Livro de Ouro da História da Música”, CARPEAUX ainda reitera este rompimento quando fala da imprevisibilidade da música concreta e da música eletrônica: “Só está certo que nada têm nem poderão ter em comum com aquilo que a partir do século XIII até 1950 se chamava música” (CARPEAUX, 2001, p.479). Estes exemplos tratam das transformações sentidas na música na primeira metade do século XX e fazem uma sugestão em comum: a música do futuro, ou mesmo a do presente estará sempre sujeita a um julgamento muito sério e severo do ideal clássico. Neste ponto estamos tratando simultaneamente de dois assuntos, a música nova/inédita e a música do passado revisitada. Ora, sabemos que as artes e o pensamento se transformam naturalmente através dos tempos e que todo presente é forjado pelo passado. Assim, a música de 1950 transformou-se e ainda continua se transformando na primeira década do século XXI. Mesmo a música do século XVIII continua se transformando nas mãos dos intérpretes contemporâneos!

Uma síntese possível de Walter BENJAMIN (1940) no texto “Sobre o conceito da história” é a de atribuir um presente ao passado, a revelação dos “agoras”, a experiência única ligada a sua época. A contemporaneidade age sobre os presentes, isto é, o olhar para o passado sofre necessariamente a ação do presente. Não é o passado que gera o presente, mas o presente que o gera em sua explicação. O preciosismo implícito nas afirmações de PAHLEN e CARPEAUX é comum entre músicos e público ainda nos dias de hoje. Os intérpretes e ouvintes da música do passado distante parecem muitas vezes e, ingenuamente, tentar observar a arte através de um olhar unilateral vindo de outros séculos. Assim, a verdade sai perdendo em todas as épocas por causa deste deslocamento. O passado que é transformado livremente pela negação do presente, o presente continuamente julgado pelo passado ideal e o futuro que se torna uma impossibilidade.

Com base nos quatro modelos historiográficos descritos neste artigo sugerimos que a explicação histórica parta da diversidade de enfoques, do diálogo entre objetividade e subjetividade conduzido de forma imparcial e, de um termo em voga nos dias de hoje e que por isso encerra sozinho o olhar contemporâneo: a multidisciplinaridade. A aceitação do presente e do distanciamento temporal, somados à construção de um discurso histórico responsável tecnicamente é o que pode garantir uma comunicação menos ruidosa entre os tempos, uma história viva, nos proporcionando a compreensão mais significativa e prazerosa dos eventos e obras do passado.


Notas

[1] DRAY, William. Laws and explanations in history. Oxford: Oxford University Press, 1957. 174p.
[2] Doença descrita em 1885 pelo neurologista francês Georges Gilles de la Tourette. Ela pode exteriorizar-se em forma de impulsos e compulsões, xingamentos, palavrões e às vezes gestos (tiques), dando a impressão que os atos tourétticos são comandados por uma “força” exterior e estranha ao indivíduo.
[3] O modelo internalista pode ser descrito a partir dos elementos inerentes à própria música, suas características constituintes como os elementos técnico-formais da composição, as atribuições do músico intérprete à obra e à época do compositor. Um músico com uma visão internalista faz uma leitura da obra e elabora sua performance a partir do conteúdo e narrativa exclusivamente musical. O modelo externalista, por outro lado, aborda o objeto histórico através de outros fatores extras musicais como o contexto social, cultural e político, entre outras características circundantes.



REFERÊNCIAS


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*Leandro Gaertner -
legaertner@hotmail.com
Doutorando em Música na Universidade Paris-Sorbonne (PARIS IV), Mestre em Música (PPG - Música UFPR 2008), Bacharel em Flauta Transversal (EMBAP 2001) e Especialista em Educação Musical (EMBAP 2006). Principais interesses de pesquisa na área de Leitura, Escuta e Interpretação Musical, Música Brasileira (Choro) e Análise para Intérpretes.