Revista eletrônica de musicologia |
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Volume XIII - Janeiro de 2010 |
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Tradição e inovação na música recém composta para piano no brasil
Cristina Capparelli Gerling (UFRGS)
Resumo: Neste trabalho, discuto quatro obras para piano escritas por Alda Oliveira (1945) e Jamary Oliveira (1944), ambos de Salvador, Bahia. as peças de Alda Oliveira baseiam-se em processos de variação COMBINADOS com a utilização explícita de melodias BRasileiras tradicionais. EM sua escrita pianística detectam-se elos com a música de villa-Lobos e DE predecessores franceses. Por contraste, na música de jamary oliveira, as melodias tradicionais brincam de esconder e chegam a passar despercebidas entre processos de recorrência pós-minimalista. Com PERFIS distintos, ESSES COMPOSITORES destacam-se no panorama da música para piano recentemente composta no brasil E SUAS PRODUÇÕES APRESENTAM, Como pontos em comum, elevado nível de virtuosismo e a utilização de entidades Nacionais .
Palavras-chave: música para piano, análise musical, entidade s nacionais.
Abstract: This paper discusses four piano pieces written by Alda Oliveira (1945) and Jamary Oliveira (1944), both from Salvador , Bahia . While Alda Oliveira´s pieces rely on variation techniques to bring out traditional melodies, her brilliant pianistic writing establishes a link with the music of Villa-Lobos and his French predecessors. In a contrasting manner, Jamary Oliveira´s processes of variation aim at disguising traditional songs while highlighting Brazilian traits by his reliance on recurrence and minimalism. As a common trait both employ heightened virtuosity interwined with brazilian national entitities.
Keywords: piano music, musical analysis, national entitities.
“Simplesmente, a música precisa ser entendida como um conjunto de vozes codificadas” [1]
Antes de tecer qualquer consideração sobre música recentemente composta para piano no Brasil, faz-se necessário rememorar um evento da maior significância ocorrido há duzentos anos. No início de 1808, D. João VI deixou às pressas seu reino em Portugal e, para fugir do todo poderoso Napoleão Bonaparte, atravessou o oceano Atlântico em direção ao Rio de Janeiro. Com esta formidável manobra, o rei de Portugal, tido por fraco e tímido, empreendeu a singular façanha de enganar o Imperador da França. Com a chegada da corte ao Brasil, criou-se uma demanda por música, por instrumentos e por executantes. Em 1816, artistas europeus desempregados com a derrocada de Napoleão também vieram para o Brasil e, acolhidos no país, estabeleceram a que passou a ser conhecida como Missão Francesa [2]. A França, que não exercia controle direto sobre a economia e as finanças do Brasil, conquistou as mentes e os corações dos jovens intelectuais brasileiros que para lá se dirigiram seduzidos pelos ideais de fraternidade e igualdade. Poetas e escritores deixaram-se atrair pelos ideais da Revolução, sobretudo pelas idéias de libertação dos opressores ibéricos. A partir da independência, em 1822, e no decorrer do século XIX, a França forneceu modelos e tornou-se um dos países mais procurados pelos compositores brasileiros [3].
Por sua vez, o piano, esta máquina complexa e miraculosa, verdadeiro ícone do século, passava por sucessivas transformações. A crescente popularidade do instrumento, bem como o acelerado desenvolvimento de sua potência sonora e de sua engenhosidade mecânica, coincidem com o processo de sacralização da música instrumental, ambos fortemente associados ao nacionalismo [4] e ao movimento romântico europeu.
No apogeu deste movimento, a música instrumental passou a ser entendida e apreciada como a mais pura expressão da verdadeira natureza musical, pois, nesta visão eurocêntrica, é tratada como se desprovida de conceitos, objetos ou propósitos ou ainda como uma arte que transcende às demandas da materialidade [5]. Na sua teleologia, J. W. Von Herder (1744-1803) assume a tradição instrumental européia de seu tempo como meta e ápice de todo progresso musical. A Europa, modelando-se no imperador que coroa a si próprio, advoga para si o papel centralizador e controlador da história, da cultura e da civilização. Os territórios além mar passam a ser vistos como conjuntos de limitações geográficas e antropológicas, espaços de arte primitiva (arte estática e desprovida de história) ou mesmo locais de práticas regressivas, ágrafas ou seriamente defeituosas [6].
Considerando-se o entrelaçamento dos conceitos de obra musical autônoma com a valorização da singularidade das obras consagradas compostas neste período, o poder da obra transfere-se para o texto escrito. Como observado por Tomlison [7], o texto musical deixa de ser visto como uma possibilidade de realização ou anotação provisória sujeita a futuras modificações elevando-se à condição de verdadeira revelação das intenções do compositor, o testemunho pleno de seu espírito expressivo e prova cabal de sua excepcionalidade artística. Com isto, nem mesmo execuções magistrais conseguem atingir ou revelar o mistério, a transcendência e os significados entranhados nas páginas das composições. A busca incessante pelos segredos aninhados no texto confere legitimidade ao estudo de música, sustenta seu elevado status acadêmico, torna-se, de fato, a razão de ser dos cursos de análise e de estética musical. Ainda hoje, ao analisarmos a Exposição de uma Sonata, seus elementos componentes tomam precedência sobre o contexto sócio-econômico ou a situação política na época de sua composição. Questões de audiência, ou até mesmo questões de execução, ou ainda a interação de ambas tornam-se virtualmente irrelevantes.
Os compositores não procuraram modificar esta situação, ao contrário, esmeraram-se em nos fazer crer na espontaneidade da inspiração, na possessão, divina ou demoníaca, ou mesmo no abandono de controles conscientes. Heitor Villa-Lobos (1887-1959) não economizou palavras ao declarar: “Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta” [8]. Esta imagem de si próprio como profeta, como o autêntico gênio enquadra-se em uma visão romântica do mundo que entende a música como produção inexplicável que brota na mente de seu criador sem mediação ou conexão com qualquer outra atividade musical do passado ou do presente.
Mesmo sabendo que vários compositores alimentaram esses mitos distantes do real e do possível, em que medida estas idéias de tratamento da criatividade como um processo místico e de seus criadores como gênios inexplicáveis ainda pairam sobre as nossas mentes hoje em dia? Em que medida incorpora-se à natureza profundamente social das formas de autoria cultural, inclusive da música? Esta visão romântica de mistério e ousadia encontra-se completamente extirpada de nossas mentes e corações? Ouso dizer que esta atitude arraigada persiste, vivemos à procura da obra de arte que fará nossa virtuosidade ser reconhecida e aclamada por todos. Com a preferência esmagadora pelo repertório tradicional, pouca chance é dada a composições recentes, portanto a música para piano além de Villa-Lobos permanece pouco conhecida e pouco tocada.
Escolhi quatro peças que representam estágios de reconciliação cultural, de confronto e de contraste de múltiplas tramas e heranças diversificadas na música para piano recentemente composta em uma polifonia de vozes codificadas. Ao discutir parte da produção de Alda Oliveira, estabeleço um elo com a música francesa ouvida no Brasil desde os primórdios do século XX no sentido de solidificar os processos de invenção e de organizar e interpretar respostas da audiência. Esta visão não esconde parte das minhas próprias preferências, todavia creio ser possível estabelecer que a música brasileira, no século XX, mesmo incorporando sistematicamente traços sólidos e tangíveis de suas origens nacionais, pode ser bem entendida a partir do grau de assimilação ou rejeição dos elementos da música européia em geral e da francesa em particular [9]. Mesmo incompleta ou até datada em certos aspectos, esta questão pouco estudada ainda não foi suplantada nem resolvida. Além disto, se a cultura é feita de processos de mescla e troca, o sucesso da música brasileira pode ser medido não só pelo grau de absorção, mas, acima de tudo, pelas soluções oferecidas como transformações .
"Widmeriana [11] ", para piano solo, dedicada à pianista suíça, Emy-Henz Diemand, foi composta em 1990. Ao contrário de grande parte da literatura brasileira para o instrumento, a obra está publicada. O título reflete a homenagem à Ernst Widmer (1927-1990), professor da compositora durante seus cursos na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Observam-se, na peça, aspectos de brasilidade projetados através de polirritmia combinada com duas melodias que expressam entidades nacionais [12]. A primeira delas é apropriada do último de uma série de Dez Estudos Polirítmicos , uma Marcha Fúnebre [13] do próprio Widmer.
Figura 1 : compassos iniciais de Widmeriana
A segunda melodia, conforme a compositora fez questão de esclarecer-me, emprega a canção folclórica “Minha Zabelê” [14], mensageira de sua própria voz, um elo consigo própria ou ainda um nexo composicional. Trata-se de uma instância na qual a compositora pratica o que Mário de Andrade recomendou, a partir de 1922: a busca por uma “entidade nacional dos brasileiros ” [15].
Figura 2 : anúncio de “Minha Zabelê”.
Por contraste ou justaposição, o anúncio de Zabelê soa como um momento mágico de transformação, ao mesmo tempo inevitável e espontâneo. Um envelope de sonoridades cosmopolitas, sugestivos da atmosfera do pianismo francês deixa entreouvir reminiscências de Villa-Lobos. Alda Oliveira, uma pianista de qualidades indiscutíveis, gravou a Prole do Bebê n. 2 [16] em uma contribuição notável para discografia brasileira.
Em Widmeriana, a compositora nos oferece uma transformação estruturada de sonoridades alusivas tanto à música internacional de concerto quanto à música nacionalista brasileira. Ao combinar o cosmopolita e o nacional, o ideal sonoro francês emoldura um início circunspecto ou mesmo funéreo, intermediado por uma seção de natureza ondulante que se encaminha para um pianismo grandioso.
Figura 3 : justaposição de dois contornos melódicos.
No decorrer da composição, as vozes codificadas [17] como entidades nacionais apresentam-se como em uma batida de “bossa nova”, como a já mencionada polirritmia e prosseguem na sua justaposição na seção “ondulante”.
Figura 4 : Seção Ondulante
No final, amplas ondas sonoras quebram em grande alarido, mas morrem mansamente em clima reminiscente do início contido. Nesta confluência, fontes e visões de mundo entram em diálogo e em antagonismo [18] , como resumido no esquema proposto a seguir.
Widmeriana |
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Primeira Seção ¾, 4/4 |
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c. 1-23 |
Melodia principal como cantus firmus . |
Polirritmia, registros médio e grave, melancolia. |
c. 24-29 |
Compositora chamou a atenção para a batida de uma “bossa novinha” |
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c. 30-39 |
Persistência do sentimento melancólico e cantábile |
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c. 40-43 |
Cromatismo insistente nas vozes intermediárias |
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Zabelê |
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c. 44-53 |
Cantus firmus modificado |
Zabelê introduz um ambiente mágico |
c. 54-63 |
Sonoridades de sinos combinadas com Zabelê |
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c. 64-77 |
Intensificação dos níveis de virtuosidade |
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Ondulante |
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c. 78 |
Cantus firmus entremeado na figuração |
Acentos deslocados salientam a melodia principal, sonoridades modais enriquecidas de cromatismo, sentimento de urgência, ausência de barras de compasso. |
c. 79 |
Estabilidade, calma, a melodia principal é acionada por acentos regulares sobre um padrão de ostinato de forma a restabelecer uma flutuação regular. |
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c. 80 |
Cantus firmus dissimulado |
Passagem final exige recursos instrumentais avançados na realização de padrões escalares imbricados na rápida figuração pianística. |
Finalização |
Retorno ao registro mais grave, ao sentimento de profunda melancolia, calma e resignação. |
Figura 5: síntese formal de Widmeriana
O contorno melódico apropriado de Widmer funciona, no decorrer da composição, como um cantus firmus. No início, seu contorno é enfatizado; nas seções medianas, absorvido, contrastado e justaposto com a melodia de Zabelê; no final, diluído até sua extinção.
Antes de discutirmos a próxima obra, devemos nos perguntar sobre as convenções e práticas que caracterizam o nacionalismo e a música de piano no Brasil. Podemos considerar, por exemplo, o uso de certos contornos melódicos, o emprego de figuração rítmica característica de um grupo de pessoas ou de uma região, ou mesmo o próprio processo de apropriação e transformação compartilhado pelos compositores. Considero que a última alternativa é a mais relevante, pois, além de pressupor contatos e trocas, abrange também a possibilidade de ampliar as fronteiras da paisagem brasileira. O repertório brasileiro para piano, mesmo o mais exacerbadamente nacionalista, tem sido campo de integração e assimilação de fontes as mais divergentes. O próprio conceito de nacionalismo não se encerra no estático, ao contrário, encontra-se em permanente fluxo e mudança, um local privilegiado para a imaginação, um motivo para compartilhar mitos, alegorias e abstrações.
Seguindo este raciocínio, Azikirê [19] descende da mesma linhagem de obras criadas como resultado de processos culturais intensamente dinâmicos nas suas trocas. Surge de um emaranhado de vozes codificadas e compartilhadas por uma dada comunidade musical. A obra permite à sua criadora compartilhar suas impressões de um material coletado em sua cidade, apropriado e transformado de acordo com as mais estritas regras da música culta européia e do virtuosismo instrumental. Nela fundem-se elementos de uma variedade de ambientes culturais, uma verdadeira polifonia de vozes [20] adquire substância sonora e força de comunicação. Baseada na recorrência de uma melodia “keto” cantada por mulheres no terreiro de Olga do Alakêto, durante uma cerimônia de candomblé [21] , a obra parte da figuração rítmica constantemente sincopada. Com uma duração de 114 compassos transcritos para métrica binária composta (6/8), afirmo que as cartas para posteridade de Villa-Lobos estão sendo respondidas e revistas com um pianismo de forte poder de persuasão, com efeitos brilhantes, contrastes abruptos, precisão de toque e uma demanda constante por reflexos rápidos. A obra volta um olhar ao passado e ao atemporal, envolve-se em mistério, busca o que está na iminência de desaparecer sem deixar vestígios. A recorrência provoca uma série de imagens poderosas e de fortes sensações. Alda arma uma trama complexa e tece uma passacaglia com a canção de suas irmãs africanas.
Figura 6: início de Azikirê
Como visto na Figura 6, a obra inicia com uma chamada rítmica, o tema é anunciado com deslocamento de registros e prossegue com um acompanhamento em ostinato. Mesmo quando a música entra no transe do ritual ancião e africano, o sotaque é brasileiro e as variantes composicionais de procedência européia. A compositora ouve, reflete e reage à música de “outras mulheres” unidas por um ritual religioso. Portanto, medeia entre o passado e o presente, entre a herança européia e ela própria como uma mulher moderna, entre as demandas da composição e suas próprias escolhas sonoras. Como preconizou Mario de Andrade, ficam claramente estabelecidas entidades musicais brasileiras, mas a compositora evita o idealismo estático, visto que os elementos mais distintos de Azikirê estão em permanente estado de mudança e transformação.
Figura 7: página final de Azikirê
A Figura 7 evidencia as manipulações temáticas que vão sendo forjadas até o paroxismo final, a possessão representada por enorme volume sonoro, rítmica propulsiva inexorável e um final apoteótico. Fragmentos da canção persistem até o último gesto eminentemente pianístico e dramático.
Na Figura 8, apresentamos uma síntese [22] da composição com parte da terminologia proposta por Cazarré [23] ao descrever os elementos encontrados nas “Danças de Negros”. Com certeza esta peça insere-se nesta categoria tão festejada por compositores brasileiros no século XX.
Azikirê |
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Tempo |
Compasso |
Narrativa e Cenário |
Registro |
Moderato |
1-5 |
“chamada” para o mistério, percussão |
Muito Grave |
6-14 |
Tema distribuído entre as mãos |
Cada altura (nota) do tema é executada em um registro diferente, passagem com saltos em velocidade rápida. |
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Movido |
15-22 |
Tema acompanhado |
Estável/ médio e grave |
23-26 |
Figura cadencial no fechamento da primeira seção |
Do grave para o agudo |
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Presto |
27-38 |
Fragmentação Rítmica e Tema Pontilhado |
Mudanças Rápidas |
39-42/44 |
Tema como Canto Responsorial (chamada e reposta) |
Agudo e grave |
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45-48 |
Múltiplas entradas temáticas combinadas com framentação rítmica |
Agudo para o grave |
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49-56 |
Tema em paralelismo rítmico |
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57-59 |
Fragmentação do Tema |
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60-62 |
Variação rítmica com forte conteúdo propulsivo |
Grave |
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62-68 |
Gesto inicial combinado com elementos percussivos |
Do mais agudo para o grave |
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68-72 |
Elaboração Temática, cânone à 7°. |
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Lento |
77-85 |
Alteração discursive do ff para pp |
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Presto |
86-92 |
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Rápidas mudanças de registro |
Allegro |
92-104 |
Possessão, os elementos recombinam-se sob a forte pressão do ritmo. Ostinato |
Utilização de todo o teclado |
Accelerando |
105-114 |
CODA em cânone |
Gesto pianístico em direção ao mais grave para pontuação. |
Figura 8: síntese formal de Azikirê
Nessa obra, o lugar e a voz da nação ketu recebem projeção por todos os registros do instrumento e com elevada carga de virtuosidade instrumental, trata-se de uma mescla dos procedimentos europeus mais estritos com elementos africanos. O resultado dessa manipulação é uma passacaglia plena de virtuosidade pianística.
Pensando na diversidade e na abrangência de escopo, as duas próximas peças pertencem a uma corrente bastante diferenciada. Ainda que a França nunca tenha perdido seu poder de sedução sobre gerações de compositores brasileiros tais como Villa-Lobos, Almeida Prado e tantos outros que até hoje para lá se dirigem em busca de conhecimento musical e inspiração, nos últimos cinqüenta anos, os Estados Unidos, suplantaram a Europa como lugar preferido para estudos. Nesse país, nova pátria de toda uma geração de compositores deslocados e exilados pela Segunda Guerra Mundial, o ideal artístico de “pureza” [24] e objetividade produziu a proliferação de novos movimentos. O minimalismo, ancorado em aspectos redutivos do modernismo, mal tinha se declarado no final dos anos 1950 como uma reação ao expressionismo abstrato e já estava sendo suplantado ou substituído pelo pós-minimalismo. Ambos dependem da repetição exacerbada de fragmentos musicais com um mínimo de variação durante longos períodos de tempo, da ênfase na manutenção de campo harmônico simples e estável, um pulso mecânico e imutável. O resultado hipnótico é modificado por ligeiras defasagens decorrentes da dessincronia das partes [25] . Além da simplicidade de conteúdo e de forma, o minimalismo tem por alvo remover sinais de expressividade pessoal ou de humanidade . Nas duas peças, no entanto, o conteúdo humano não só foi reintegrado, como um novo sistema de valores com um sabor acentuadamente brasileiro confere efeitos provocativos.
Jamary Oliveira [26] é um dos integrantes mais conhecidos do “Grupo de Compositores da Bahia”, estabelecido em 1966 e renomado por seu espírito arrojado e de vanguarda na composição brasileira. Em obras anteriores, Jamary adotou processos caracterizados por seu rigor e abstração. Na produção aqui apresentada, chamamos a atenção para estratégias utilizadas para criptografar entidades nacionais entre fileiras de minimalismo. As entidades nacionais são então manipuladas para resultar em contorno, formato e, sobretudo, em forte sentido de humor como marca registrada da personalidade e da criatividade do compositor (Figura 9).
Figura 9: Mesmamúsica, início.
Seguindo as trilha do atonalismo e do minimalismo, Mesmamúsica (1988) [27] baseia-se na recorrência do super conjunto (7-Z36) [28] . A obra desenvolve-se pela adição e remoção de tons desta coleção de notas. As mãos executam um jogo de união e separação por todos os registros do instrumento sem que cesse a batucada em 7/8. Na seção intermediária, o contraste é apresentado como uma passagem pontilhada e reticente, breves momentos hesitantes antes do retorno do ostinato implacável. Mesmo que o ouvido custe a detectar, a formação intervalar da seção intermediária garante a unidade com as seções externas .
Mesmamúsica |
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Seções |
Compassos |
Conjuntos |
A |
1-55 |
7-Z36 (6,9,8,0,11,2,7) ou (0,1,2,3,5,6,8) e subconjuntos (6,7,8,11) e (6,7,8,11,2) |
B |
56-75 |
7-Z36, T6, T0, T10 sob várias articulações rítmicas |
A´ |
76-107 |
7-Z36, palíndromo e separação das mãos |
Coda |
108-115 |
Gradual extinção dos elementos até o subconjunto (0,2,5) |
Figura 10: síntese dos principais conjuntos de Mesmamúsica
Tocar esta peça significa aventurar-se por todos os registros do instrumento e aceitar que as indicações de dinâmica e os padrões de acentuações tendem a contradizer a expectativa do pianista. O compositor funde a teoria de conjuntos mais estrita com o humor mais brasileiro e a paródia. O uso do ostinato é o elo entre Jamary Oliveira e seus predecessores. De fato, em conversas informais, ele mencionou o uso que Fructuoso Vianna, Deolindo Fróes e Lorenzo Fernandez, entre outros compositores brasileiros, fizeram de figurações recorrentes. Como reforço, a redundância fornece o mote de comunicação e técnicas composicionais, aparentemente contraditórias, unem o passado e o presente. Assim, elementos da música brasileira e demandas da música do século XX combinam-se para formar uma realidade musical plena de tensão criativa. Se os processos composicionais são inatacáveis, o humor e a brasilidade beiram o escandaloso, contrastando com o minimalismo triste praticado por Philip Glass [29] . O compositor une o inocente e o sofisticado ao priorizar a recorrência como um valor mais elevado. A reiteração de materiais em conjunção com a registração promove variedade e constante recombinação.
Estudo Polirrítmico Mixolídio [30] foi escrito em 1996. Imbuído de forte espírito de paródia e ancorado em processos de recorrência, neste estudo tríades e tétrades diatônicas são monopolizadas estabelecendo o modo mixolídio centrado em Dó. Um padrão de acentos defasados entre as mãos causam figurações polirítmicas muito instigantes. Entre as notas acentuadas, o compositor esconde duas canções folclóricas, “Na mão direita tem uma roseira” e uma canção de velhos negros [31] : “Quem vem lá?
Figura 11: canções folclóricas que integram o Estudo Polirrítmico Mixolídio
A inserção das duas canções, ainda que submersas por blocos sonoros, atenua os aspectos mecânicos de uma escrita sem trégua, trata-se de um minimalismo humanizado. Esta obra exige boa dose de resistência física do instrumentista, mas seu inexaurível bom humor e sua exuberância tornam o esforço gratificante. Fazendo uso de processos de composição musical tais como a redundância, o mecânico ou até mesmo do estranho, Jamary Oliveira oculta diferenças e mescla culturas. Disparidades são atenuadas pela força de sua imaginação.
Figura 12: combinação das duas canções no Estudo Polirrítmico Mixolídio.
Esta obra permite encontros entre o que há de mais familiar, até mesmo íntimo e caseiro, com o surpreendente ou inexorável. Espontaneidade e ingenuidade engendram jogos musicais intelectualizados. O compositor confere um dinamismo inesperado e renovado para o material encontrado nas entidades nacionais, estas, por sua vez, aplacam a voracidade das engrenagens minimalistas. Escrita nos últimos anos do século XIX, a obra dialoga convincentemente com outras paisagens sonoras do nosso planeta.
Estudo Polirrítmico Mixolídio |
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Introdução [1-14] |
O padrão ostinato é introduzido e os acentos criam um padrão polirrítmico que se expande gradualmente do registro médio para todo o teclado. Esta seção conclui com a apresentação grandiosa do modo mixolídio em Dó. |
Seção A [15-33] |
Em defasagem e com um toque de humor adicional, a m.e. apresenta a canção “A mão direita tem “ e a m.d. apresenta “Quem vem lá”. As duas canções são repetidas de forma quase idêntica. |
Interlúdio [34-47] |
Fragmentos melódicos das duas canções e padrões escalares impedem o estabelecimento de uma nova seção. |
Seção B [48-65] |
A canção “A mão direita” é excutada pela m.d. e “Quem vem lá…” pela m.e. em simetria. Novamente as duas canções são repetidas de forma bastante semelhante. |
Finalização [66-76] |
Assim como na Introdução e no Interlúdio, nesta seção final, o modo mixolídio e os agrupamentos de cinco notas apresentam-se em fase e em defasagem. A figuração espicha-se para abranger todo o teclado do mais grave ao mais agudo. A obra termina com uma passagem em aumentação rítmica que reafirma a importância de Dó no registro mais grave. |
Figura 13: síntese dos principais elementos encontrados no Estudo Polirrítmico Mixolídio.
Ao chamar a atenção para as entidades nacionais inseridas entre outras vozes codificadas, tive por objetivo demonstrar que as obras recentemente compostas para piano no Brasil contêm fortes traços de:
1) convenção - cada composição, a despeito de sua singularidade, evoca um senso de familiaridade advindo de estilos e normas instrumentais compartilhadas. Cada obra retrata e canta a paisagem brasileira ao invocar canções e ritmos característicos.
2) criatividade - ainda que textualmente cada composição revele práticas com pontos em comum com as convenções herdadas, as escolhas particularizadas são sofisticadas e revelam alto teor de individualidade;
3) inovação – entidades nacionais entram em sintonia com processos e recursos composicionais utilizados na música ocidental atual, gerando uma moldura distinta para a expressão de idéias musicais fortes e convincentes.
Como resultado da tensão entre a inserção das entidades nacionais e processos composicionais herdados do hemisfério norte, a música para piano aqui apresentada e recentemente composta no Brasil permanece como um campo aberto de experimentação e fusão, conflito e resolução. É justamente a polifonia de vozes codificadas que confere valor ao repertório pianístico brasileiro e que o torna tão instigante para o instrumentista e para a audiência.
Notas:
[1] Jason Toynbee, p. 103, in: Clayton, Martin, Herbert Trevor, Middleton, Richard. The cultural Study of Music– A Critical Introduction . Routledge, 2003, p. 105.
[2] Em "O Sol do Brasil" (2008), Lilia Moritz Schwarcz afirma que n unca existiu uma Missão Artística Francesa com a conotação que se dá atualmente ao grupo. A própria expressão ("Missão Artística de 1816") foi formulada, apenas em 1912, pelo bisneto do pintor Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o historiador Afonso Taunay, para a "Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro". (consulta efetuada em 6.9.2008) no site http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u378087.shtml.
[3] Maria Alice Volpe. “Compositores românticos brasileiros: estudos na Europa”. RBM, XXI, Rio de Janeiro, 1994/95, p. 51-76: Dos 41 compositores que se dirigiram à Europa entre 1834 e 1884, 20 dirigiram-se para a Itália, 15 para a França, 6 para a Alemanha, 4 para a Bélgica, 3 para Portugal, 2 para a Áustria e somente 1 para a Suíça (p. 51).
[4] Philip V. Bohlman argumenta que, no período posterior ao Iluminismo, a música tornou-se capaz de articular o nacionalismo por representar lugar [local ou voz da nação]. “As paisagens da nação e suas canções tornaram-se isomórficas”, Music and Culture- Historiography of Disjuncture. in : : Clayton, Martin, Herbert Trevor, Middleton, Richard. The cultural Study of Music– A Critical Introduction . Routledge, 2003, p. 50-51.
[5] Carl Dahlhaus. The Idea of Absolute Music . Roger Lustig, trad., Chicago : University of Chicago Press , 1989, p.7.
[6] Gary Tomlinson, Musicology, Anthropology, History , Chapter 2, 38-39 in: Clayton, Martin, Herbert Trevor, Middleton, Richard. The cultural Study of Music– A Critical Introduction . Routledge, 2003.
[7] Tomlinson, p. 51.
[8] Inscrição na pedra tumular do compositor, Cemitério João Batista, Rio de Janeiro, Brasil. http://www.museuvillalobos.org.br-villalob-cronolog-1951_59-index.htm (19/01/2008).
[9] Em trabalho anterior, discuto como o ideal sonoro francês permanece como forte referência para um número significativo de compositores brasileiros no século XX. Vide: Cristina Capparelli Gerling. Échos de la Sonatine pour Piano de Maurice Ravel dans les Sonatines de Compositeurs Brésiliens. In: Brésil Musical, 2005, Paris. Actes du colloque du 12 octobre 2005 réunis et edités. Paris, França : Observatorie Musical Français- Université de Paris-Sorbonne, 2005. v. 1. p. 37-53 ou “Ecos da Sonatina de Ravel nas sonatinas para piano de compositores brasileiros”, BRASIL MUSICAL, UFPR, 2005, 43-65.
[10] Leyla Perrone-Moisés. Vira e Mexe Nacionalismo. Paradoxos do Nacionalismo Literário . São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.24.
[11] Oliveira, A. Widmeriana . Série Compositores da Bahia, vol. 44, Escola de Música da UFBA, 1992 (p.13-19).
[12] Termo empregado por Mário de Andrade com sentido flexível e diverso de identidade nacional, vide Leyla Perrone-Moisés, Vira Mexe Nacionalismo, 2007, 188-209.
[13] Os Dez Estudos Polirítmicos fazem parte do Terceiro Volume da Coleção Ludus Brasiliensis de Ernst Widmer, Ricordi.
[14] O texto: Minha sabiá, minha Zabelê , Toda meia-noite eu choro por você, Se você duvida vou chorar pr´ocê ver!
[15] Mário de Andrade. Macunaíma. São Paulo: 1928. Veja ainda: http://www.angelfire.com/mn/macunaima Segundo os autores Dácio Antônio de Castro e Frederico Barbosa, o escritor Mário de Andrade “ buscava uma relação de igualdade real da cultura brasileira com as demais. Não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira. Não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que mereça ser comido. Assim como na música brasileira recente, nesse romance encontram-se dadaísmo, futurismo, expressionismo e surrealismo aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.” (consulta efetuada em 01/03/2008).
[16] “Piano Alda Oliveira”. UFBA stereo 1012, em 33pm, vinil, inclui A Prole do Bebê n. 2 de Heitor Villa-Lobos e Piano Piece (1984) de Jamary Oliveira, produzido pela Pró-Reitoria de Extensão e Escola de Música da UFBA, s.d.
[17] Neste caso “vozes codificadas” referem-se à pluralidade de atores na trama e à multiplicidade de enredos e subenredos como em : Bakhtin, Mikhail. Problems of Dostoevsky´s Poetics . Caryl Emerson, editor e tradutor. Introdução deWayne C. Booth. University of Minnesota Press.2003.
[18] Perrone-Moysés, p.164
[19] Alda Oliveira. Azikirê . Série Compositores da Bahia, vol. 44, Escola de Música da UFBA, 1992 (p. 20-25).
[20] Polifonia de vozes não no sentido estritamente musical, mas no sentido empregado em: Bakhtin, Mikhail. Problems of Dostoevsky´s Poetics . Caryl Emerson, editor e tradutor. Introdução deWayne C. Booth. University of Minnesota Press.2003.
[21] Esta melodia foi coletada por Gérard Béhague, durante uma cerimônia religiosa em Salvador, Bahia. Cantada apenas por mulheres, foi registrada no Terreiro da Mãe Olga do Alakêto´s durante o ritual. O texto: Azikirê nivodum ivodum cabri cabri ; Azikirê nivodum ivodum cabri cabri
[22] Baseado em trabalho anteriormente apresentado por Cristina Capparelli Gerling e Daniela Tsi Gerber. “A Práxis na Execução Musical: O Estudo da Obra Azikirê de Alda Oliveira” in: Anais do XII Encontro da ABEM, Natal, 2002.
[23] Marcelo Macedo Cazarré. A Trajetória das Danças de Negros na Literatura Pianística Brasileira: um estudo hitórico-analítico . Pelotas, 2001.
[24] Durante o século XX, os compositores buscaram se livrar de vários tipos de contaminação e, debalde, empreenderam incessante busca por uma “pureza” artística. A este respeito, veja Celso Loureiro Chaves “Darmstadt”, ZH, Caderno de Cultura, p.7, 22 de março de 2008.
[25] Cervo, Dimitri . “ Minimalismo e pós-minimalismo: distinções necessárias ”. Debates: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Música, UNIRIO, 9 (2007 ago.), p. 35-50.
[26] Jamary Oliveira (1944) tem se distinguido também por desenvolver programas de computação para análise de peças recentes.
[27] Oliveira, Jamary. Mesmamúsica .Série Compositores da Bahia, vol. 44, Escola de Música da UFBA, 1992 (p. 33-36).
[28] Dados coletados em: “Análise da Peça Mesmamúsica ”, Dimitri Cervo in: Perrone et al, A Música de Jamary Oliveira- Estudos Analíticos . Porto Alegre, PPGMUS/UFRGS, 1994.
[29] Celso Loureiro Chaves, ZH, 19/04/2008, Caderno de Cultura, 7.
[30] Oliveira, Jamary. Estudo Polirrítmico Mixolídio . ( A partitura pode ser obtida em contato direto com o compositor: jamary@ufba.br ou ainda pelo site : www.ufba.br)
[31] Possivelmente cantada por escravos idosos ou alforriados.