Revista eletrônica de musicologia |
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Volume XIII - Janeiro de 2010 |
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Criação contemporânea para piano no Brasil
Maria Helena Pinto da Silva Elias (OMF) *
Resumo: O presente texto pretende estabelecer as principais correntes da composição contemporânea para piano no Brasil. Na tentativa de definir os objetivos estéticos das obras brasileiras faz-se imperioso rever dois aspectos essenciais: a produção musical e a pedagogia do piano adotada atualmente no Brasil. No contexto da produção contemporânea do Brasil, a autora comunica as bases de sua sugestão de classificação dos compositores brasileiros, estudo em curso ao qual se dedica atualmente.
Palavras-chave: musica brasileira contemporânea, compositores brasileiros, classificação
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à direção da Paris IV, ao OMF e em especial à Professora Danièle Pistone por esta oportunidade de apresentar a nossa música para piano no espaço da Sorbonne. Creio que todos os presentes conhecem o acolhimento caloroso e o incentivo que a Professora Pistone sempre dedicou aos brasileiros, o que agradeço de todo coração. Agradeço também ao publico presente no qual se encontra para minha surpresa e grande honra o musicólogo, compositor e professor Serge Gut com o qual tive o privilégio de estudar.
Tentarei agora transmitir-lhes a minha percepção da criação contemporânea no Brasil, muito particularmente da criação dedicada ao piano.
Situação da música erudita no Brasil
Examinarei vários aspectos: a criação da música erudita brasileira, os repertórios de referência na prática pianística e no ensino do instrumento, bem como as condições de difusão da música contemporânea no Brasil.
No conjunto da criação contemporânea de música erudita no Brasil o lugar do piano permanece importante, o que permite supor que está assegurado o futuro desse instrumento no país e, sobretudo, que a execução pianística oferece um caminho real para revelar ao público as novas composições.
Entretanto, fatores sociais, econômicos e políticos pouco animadores dificultam a difusão dessas criações.
Como conseqüência, é flagrante que essas músicas não são muito conhecidas no Brasil e muito menos no exterior.
Particularmente no âmbito das composições para piano, os pianistas brasileiros precisam reagir a tal situação e divulgar amplamente o repertório nacional. Ainda mais porque essas músicas dão testemunho de idéias estéticas interessantes e diferentes de um país cuja qualidade essencial é a de oferecer uma extraordinária diversidade cultural, já destacada antes neste colóquio.
Prática pianística - escolha de repertório
A observação da prática pianística no Brasil revela uma relativa ausência da música atual e uma frágil presença da produção brasileira do passado.
Nas salas de concerto e nas aulas de piano em todo o país nota-se a presença de um repertório que vai até a década de 1950, com ênfase nas obras de Villa-Lobos.
A propósito, apesar da admiração que dedico à obra de Villa-Lobos, notável nas suas nuances e contradições, acho necessário renovar o repertório e a prática do piano. Impõe-se esta reação, pois a escassa divulgação da produção musical brasileira em geral tem sérias conseqüências além das nossas fronteiras.
Quase sempre as músicas brasileiras estão ausentes dos trabalhos sobre a criação musical atual e tais estudos, quando tratam das Américas, só incluem os Estados Unidos e seus compositores.
Não tentarei explicar os motivos da situação, mas deve-se reconhecer que se um país não se preocupa em difundir a sua música erudita no seu próprio território, é improvável que o resto do mundo tome a iniciativa.
Não se trata aqui de patriotismo descabido, nem da intenção de atribuir qualquer julgamento de valor às produções brasileiras. Ainda menos de alegar injustiça, pois a responsabilidade pelo problema é, sobretudo, brasileira.
Este estado de coisas me parece inadmissível em um mundo onde a informação circula livremente em todos os setores. Por isso creio que o problema exige uma atitude que, para chegar à prática, depende exclusivamente da decisão conjunta dos políticos e musicistas do nosso país.
Como conseqüência, na execução do piano no Brasil me parece essencial uma revisão do repertório, principalmente do aplicado ao ensino. Medida eficaz seria ampliar-se esse repertório com composições atuais e inéditas de todo tipo, preservando a presença das anteriores a 1950. Assim se estaria preenchendo as lacunas e ao mesmo tempo contribuindo para mudar um pouco a imagem segundo a qual a música brasileira contemporânea tem em Heitor Villa-Lobos a sua única expressão.
Em todo caso, no Brasil percebe-se que a exigência de se promover melhor as criações de música erudita é uma necessidade real e inegável. O país difunde e promove prioritariamente a música popular que, na sua diversidade, não deixa de ter exemplos interessantes e atraentes. Mas, a meu ver, a música erudita brasileira também os possui. Por isso talvez seja hora de ajudá-la um pouco mais.
Creio estarmos todos cientes de que a distância entre o público e a criação musical contemporânea constitui um impasse que todos os países enfrentam. Entretanto, no Brasil esse problema é mais grave porque abrange o conjunto da composição erudita brasileira.
Sem querer passar uma impressão equivocada da realidade musical nacional, que possui impulso consequente com as realizações da Academia Brasileira de Musica que reune grande número de artistas e compositores, esclareço que as criações contemporâneas contam com as ações de pessoas e organismos dedicados a divulgar essas músicas, notadamente através de Bienais, alguns festivais, difusão de certos programas por emissoras de rádio como a Rádio MEC, (na qual figuram séries de interesse nacional como as de Lauro Gomes “Sala de concerto” e “Música e músicos do Brasil”), e certamente através do trabalho de musicistas e professores de música que realizam recitais apresentando obras novas em universidades, conservatórios e escolas de música.
Infelizmente, tais eventos, apesar de bem sucedidos, não conseguem sair de um pequeno círculo de iniciados para alcançar o grande público, exatamente o público que é preciso atingir!
Quando refletimos sobre a época de Villa-Lobos e a sua trajetória, somos forçados a reconhecer que ele teve a grande sorte de dispor do apoio político e financeiro do governo brasileiro, apoio esse que nenhum outro compositor brasileiro recebeu até hoje, pelo menos que eu saiba.
Em todos os aspectos, o desconhecimento da nossa música erudita comprova e também sofre os efeitos de uma política cultural inadequada, divergente dos interesses e das necessidades dessa arte.
Dois obstáculos a ultrapassar
O primeiro está vinculado a uma das orientações culturais brasileiras, descrita pelo compositor Jorge Antunes.
Com efeito, no artigo “Fica, Gil”, publicado no jornal Correio Brasiliense de 15.11.2007, Antunes denuncia o privilégio e o apoio concedidos pelo Ministério da Cultura aos músicos e aos eventos de forte potencial comercial. A música erudita não teve espaço, e muito menos a música contemporânea. Esse artigo revela em detalhes o embaraço do nosso Ministro, que terá de elaborar os preparativos para receber todos os eventos musicais de alto nível que a França prevê para 2009 no Brasil, ano consagrado à cultura francesa no Brasil.
Para que os representantes franceses sejam acolhidos adequadamente, o nosso ministério precisará da colaboração das organizações artísticas brasileiras, que foram descartadas pelos nossos políticos por ocasião das comemorações do ano de 2005, ano do Brasil na França. Antunes ressalta a diferença entre as decisões de política cultural aplicadas na França e no Brasil e apela para que as organizações brasileiras esqueçam os acontecimentos de 2005 e acolham honrosamente a cultura francesa.
A propósito, lamento muito a ausência de Jorge Antunes nesta ocasião, devido a um imprevisto da sua agenda.
Em tom mais leve, gostaria de chamar a atenção de todos para um estudo de mercado elaborado por uma organização canadense em 2005, que evidencia as condições do segmento da música e do espetáculo no Brasil. É desse estudo o parágrafo que reproduzo a seguir, cuja conclusão nos tranqüiliza quanto ao futuro da música erudita brasileira:
“No que se refere à música clássica, o público brasileiro padece de uma curiosa xenofilia. Os recitais de música clássica brasileira atraem menos público do que os de compositores estrangeiros, tanto seja uma sinfonia de Beethoven como a apresentação de um compositor contemporâneo. Por outro lado, o público brasileiro é ávido por informações. Precisa ser incitado a sair da sua inércia para conhecer novas sonoridades. Os promotores garantem que vale a pena insistir.”
Etapas da criação erudita no Brasil
Historicamente, a música erudita brasileira sempre foi um reflexo da produzida na Europa. Esta relação exerceu uma influência fundamental na evolução dos parâmetros da composição musical no Brasil. Ao evoluir em consonância com a música européia, a composição brasileira ficou um tanto semelhante à música que se encontra no mundo inteiro. Ou seja, uma diversidade de caminhos sonoros dos quais todas as tendências encontram representantes no Brasil.
Essa globalização adquiriu tamanha importância que hoje é quase supérfluo se falar de uma influência precisa. No universo sem fronteiras da criação sonora atual, todo autor que busca expressão, diferença e identidade artística tem as qualidades individuais cada vez mais postas à prova.
No Brasil, cada vez mais as composições contemporâneas para piano se integram nesse contexto mutante.
Tentarei apresentar a seguir um panorama do conjunto da criação erudita brasileira, sugerindo uma classificação dos compositores segundo três grandes correntes de pensamento.
Classificação dos compositores da música contemporânea brasileira
Liberdade – distanciamento da tradição
Devo ressaltar que esta classificação está em curso e destaco três grupos de compositores. Em primeiro lugar esclareço que é centrada no grau de liberdade do discurso dos compositores. Liberdade considerada em termos de distanciamento da tradição, sendo o discurso como é sabido, a expressão musical do pensamento. Acessoriamente, esta classificação considera a escolha dos materiais e dos elementos que servem à invenção sonora. Quanto às diferentes técnicas de composição, podem figurar indistintamente nos três grupos. Assim, os compositores foram agrupados conforme as suas abordagens musicais. Deixamos claro também que nossa divisão não comporta qualquer julgamento de valor artístico das obras e dos compositores de cada grupo. Os três grupos se posicionam assim lado a lado como aspectos de uma realidade sonora que é múltipla e diferenciada. Isto dito, os três grupos de compositores se apresentam assim: grupo de compositores apresentando uma liberdade do discurso limitada ; grupo de compositores guardando uma liberdade relativa do discurso musical ; grupo de compositores defendendo uma liberdade absoluta do discurso. As linguagens a serviço do pensamento musical de cada grupo correspondem às maneiras, aos modos de estruturar os diversos elementos do pensamento musical de cada um.
O grupo de compositores que apresenta um discurso de liberdade limitada integra assim todos os autores que em linguagens contemporâneas se inscrevem no prolongamento da tradição sonora do ocidente. Ou seja, sem uma ruptura total com o passado. O que não impede, por exemplo, que Almeida Prado compositor deste grupo, utilize um processo chamado transtonal – ultrapassar a tonalidade --, (trata-se da pesquisa de ressonâncias em um largo espectro sonoro, criado no piano principalmente através de uma profusão de trilos, arpejos, e tremolos em velocidade), processo que ele emprega principalmente nas suas “ Cartas celestes ”, grande ciclo de composições para piano cujo primeiro volume data de 1974. Salvo engano da minha parte, esse ciclo já está no sexto volume.
O mesmo vale para Ricardo Tacuchian com o seu sistema T = técnica de composição que objetiva o controle das alturas. E igualmente para o emprego do aleatório de Cláudio Santoro, em especial em “ Diagrama cíclico ” (peça escrita para Jocy de Oliveira) e “ Agrupamento a dez ” (onde ele utiliza a voz sobre um texto de Vinicius de Moraes).
Gostaria que ouvissem dois pequenos exemplos: Cláudio Santoro e Ricardo Tacuchian.
De Cláudio Santoro, o adágio e o andante da “ Quinta Sonata ” (ele compôs dez), obra datada de ( ) na interpretação do pianista Ney Salgado.
De Ricardo Tacuchian, “ Avenida Paulista ”, composição de 1999, com o pianista José Eduardo Martins.
No grupo de compositores apresentando uma liberdade do discurso que é relativa, se enquadram todos aqueles que revelam inspiração, explícita ou sutil, tendo como fontes as tradições populares ou o folclore brasileiro, embora não exclusivamente. Por exemplo, Marlos Nobre, compositor deste grupo, escreveu uma “Sonata” para piano sobre um tema de Bartok.
E necessário ressaltar para evitar mal entendidos, que nossa classificação em âmbito internacional incluiria neste grupo, compositores como Gyorg Ligeti et Maurice Ohana. Ligeti pela suspensão e abolição da percepção temporal que ele realiza em obras como “ Poème symphonie pour 100 métronomes ” de 1962, por suas concepções micropolifônicas resultando em verdadeiras nuvens de som que “ Lux aeterna ” de 1966 e “ Kammerkonzert ” de 1970 bem exemplificam, pelas suas referências à música tradicional húngara e à complexidades da poliritmia africana que inspiram obras para piano como seus “ Estudos ” de 1991, e o “ Concerto” de 1988. Ohana pelo uso que faz de recursos oriundos de elementos da Idade Média de “ Neumes ” de 1965, ou “ Messe” de 1977, pela inspiração no jazz do “ Concerto ” para piano e orquestra de 1981, pelas referências à música árabe -andaluza de “ La Celestine ” de 1987, e ainda pelo apelo que faz às características do Nô japonês e da opera chinesa de “ Trois comptes de l'Honorable Fleur ” de 1978. Por outro lado, um compositor também independente como Henri Dutilleux, dono de uma linguagem contemporânea na qual a clareza e o rigor da escrita são evidentes, com seu modo pessoal de conceber o silêncio e de criar complexas polifonias de timbres em construções de grande envergadura orquestral e ainda por suas referências plásticas e literárias, possui um discurso integrado numa visão que o inscreve no prolongamento da anterior embora sua linguagem seja inédita e estruturada. Com as características de seu discurso, Dutilleux se qualificaria, dentro das convenções adotadas nesta classificação, como compositor possuindo um discurso contemporâneo de liberdade limitada.
Creio que estes exemplos demonstram que nossa classificação exclui qualquer conotação com a estética “dita” nacionalista, que outrora se justificou como período de transição na história musical de determinados paises. Na realidade social contemporânea, a convenção que estabelecemos como base de reflexão sobre a multiplicidade de tendências da produção musical atual, indica que o nivel explícito ou implícito da introdução de elementos inusitados no discurso sonoro é responsável da liberdade relativa dos discursos quanto à tradição. Em todo caso, a presença de elementos “regionais” na música ocidental – com maior ou menor ênfase, como ocorrência voluntária ou ocasional -, sempre foi um importante fator de enriquecimento e ampliação do universo sonoro da composição.
Retrospectivamente,Villa-lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli entre muitos outros se inserem neste grupo, como também:
Guilherme Bauer, que se inspira nas tradições musicais populares e no folclore, em contextos atonais livres. Na sua obra nota-se às vezes a utilização do processo aleatório e da colagem: “Dirg”, para piano solo (1978) e “ Variações rítmicas”, para piano e orquestra (1991).
Com o seu “ Concerto” para piano e orquestra (1981), Sérgio de Vasconcellos Corrêa se apóia em elementos da música dos indígenas do Brasil. Entre as suas obras, “Potyrom” (1978), para piano e percussão; para piano solo, “Contrastes ” (1968), e “3 Estudos” (1981). Nessas composições observa-se o emprego do atonal, do modal e do politonal.
Maria Helena Rosas Fernandes figura também neste grupo, com as suas composições de inspiração indígena, às vezes baseadas em transcrições de cantos de pássaros e outras sonoridades da natureza. Da sua obra pode-se citar “Ciclos” para piano solo, dos quais o terceiro data de 1990 e “ Brasil 92” , com sonoridades do Pantanal brasileiro.
Este grupo também inclui “ 12 Ponteios”, “Ciclo Miniatura”, “Homenagem a Ravel”, para piano solo, de Nilson Lombardi ; as “ Danças charruas ”, para piano solo, de Brenno Blauth ; a “Sonatina ” para piano solo, de Alceu Bocchino, e o seu “ Divertimento Curitiboca ”, de 1991, para piano, clarineta e percussão.
Osvaldo Lacerda, cuja obra para piano solo é importante: “3 Sonatinas”, “10 Ponteios”, “12 Brasilianas”, sendo a nº 8 para piano a quatro mãos e, com certeza, os seus “ 12 Estudos ”, o primeiro datando de 1960.
De Guerra-Peixe, “ Miniaturas” para piano; “ Sugestões poéticas (Fernando Pessoa)”, “Sete prelúdios tropicais ”.
Gostaria que ouvissem dois compositores deste grupo. Duas expressões não exatamente opostas, mas que demonstram o percurso da linguagem musical de inspiração regional para piano. Uma datada de 1918 e a outra de 1963.
Trata-se do piano de Villa-Lobos no seu “ Polichinelo ”, peça da primeira suite “ A família do bebê”, interpretada por Edson Elias, que a tocou como extra programa no seu recital de encerramento do Segundo Festival de Piano de Yokohama; e “ Variações rítmicas ” para piano e percussão de Marlos Nobre, na qual o compositor utiliza uma idéia serial na estruturação dos elementos rítmicos. Ao piano, Moura Castro, com o Conjunto de Percussão de Genebra.
Integrando o grupo de liberdade do discurso absoluta evidentemente se encontra toda a produção de música eletroacustica, o Teatro musical, a música eletrônica e toda composição por processos algoritmicos.
Como exemplo, citarei Jocy de Oliveira, com suas criações de músicas eletroacústicas e, sobretudo, suas peças multidimensionais, que englobam sonoridades, palavras, ação e imagens. “ Fata Morgana ” (1981), “Ibake pora ” (1991), “Inori” (1993).
Igualmente, Gilberto Mendes dotado de veia humorística, introduzindo elementos que revelam uma abordagem musical em um universo semelhante ao de John Cage, com experiências tais como “ Santos Football Music ” (1974), para cordas, sopro, percussão, três gravações de transmissão de um jogo de futebol, ação dramática e participação do público. Ou ainda “ Asmatur” e “Beba coca-cola” . Nas suas criações ele faz a caricatura (paródia) de estilos de música do século XX. Da sua produção para piano destacarei o “Concerto ” para piano e orquestra (1982), cuja linguagem conserva uma expressão clara e profunda. Para piano solo, “ Vento do nordeste” (1982), “Lenda do caboclo, a outra” (1991), e “Estudo Magno” (1993).
Citarei também Raul do Valle, com o seu “Tríptico” para piano (1978), “Variações” para piano, “3 Sonatinas”, obras de 1971, salvo engano quanto à data, além de “ Os ventos quentes” (1984) para orquestra, coro, narrador, dançarina, órgão e gravação; “Bleublancrouge” (1988), para narrador e orquestra (encomendada pela Société Française de Musique Contemporaine para as comemorações dos duzentos anos da Revolução Francesa).
Pode acontecer de um mesmo compositor apresentar obras de diferentes níveis de liberdade do discurso. Todavia, este método de classificação continua sendo uma ferramenta eficaz para o meu estudo, uma convenção necessária, um modo de enquadrar uma realidade tão complexa e múltipla. Nesta classificação, o que se verifica é o nível de liberdade observado na maior parte da produção de cada autor. Este é o parâmetro a ser levado em conta. Por exemplo:
Aylton Escobar é um compositor que de início se integra ao segundo grupo, com os seus “Movimentos ” (1970) para piano, violino, clarineta e violoncelo, e também com um bom número das suas composições. Entretanto, em seguida ele se revela um compositor mais ligado ao terceiro grupo desta classificação, nas composições que reúnem instrumentos e gravações, e também pelas suas experiências no teatro musical. A sua obra “O nascimento da canção ” é uma composição para cordas e sons eletrônicos.
Ao contrário, Willy Correia de Oliveira retornou ao sistema tonal depois de uma passagem pelo teatro musical para voz e ação dramática e pela composição eletroacústica, como a obra “Materiales” (1980), para percussão e sons eletroacústicos. Entre as suas obras para piano, citarei “Pequena peça zen” (1989 ), “In Memoriam Hans Eisler”, “L'éternel printemps”, e os “Estudos ” para piano, obras de 1990.
Uma observação a respeito da criação de música erudita no Brasil : as contribuições de vários compositores de origem estrangeira influenciando, desenvolvendo e enriquecendo a nossa música. Por exemplo, Kollreutter, Bruno Kiefer e Ernst Mahle, de origem alemã; de origem suíça, temos Ernst Widmer e Walter Smetak (interessado pelo microtonalismo e com o ineditismo de todos os instrumentos que ele concebe); de origem argentina, Eduardo Escalante e Emilio Terraza; e de origem francesa, Didier Guigue, pesquisador associado ao Observatoire Musical Français, que realiza importante trabalho em composição eletroacústica na Universidade Federal da Paraíba, região Nordeste do Brasil.
Para dar uma idéia das atividades musicais de Didier Guigue, reproduzo a seguir um comentário da Fundação Itaú:
“Enquanto a maior parte da produção eletracústica brasileira está concentrada nas cidades do Rio, São Paulo e Brasília, Didier Guigue, promove um processo eficaz de descentralização, ao criar um grupo de pesquisa na Paraíba. Esse pesquisador e compositor tem dado uma importante contribuição para o desenvolvimento da música eletroacústica no Nordeste do país. A sua produção de múltiplas facetas reúne composições eletroacústicas, experiências com composições algorítimicas criadas em computador. Ao mesmo tempo, no seu disco “Vox Victimae”, de 1999, percebe-se uma fusão entre os processos eletrônicos, computadores, além de alguns estilos musicais, como o rock e o jazz, assim eliminando as fronteiras entre a música erudita e a música popular.”
Ouviremos dois breves registros sonoros de composições eletroacústicas.Por motivos alheios a minha vontade, a composição de Didier Guigue sera substituida por “Das bolinhas de ar que brilham no ceu”, composição datada de 1999 de Ricardo Mazzini Bordini, discípulo de Jamary Oliveira do grupo de música eletroacústica da Bahia, e de Jorge Antunes ouviremos “Voyage au fond de l'ocean cérébral,” obra de 2005. São dois compositores que entram na categoria que se expressa com liberdade absoluta de técnica e de meios.
Características principais da criação contemporânea para piano
Para concluir, gostaria de assinalar as três principais características que me parecem comuns nas composições para o piano contemporâneo brasileiro, independentemente das diferenças de classificação dos compositores do Brasil, a saber:
em primeiro lugar, a busca por uma expressão pessoal;
em seguida, o emprego de todas as técnicas de composição;
e finalmente, a utilização de todos os recursos mecânicos e sonoros do instrumento.
Classificação dos compositores brasileiros
(estudo em realização)
Grupo de Compositores apresentando um discurso sonoro de liberdade limitada :
Os compositores integrados a este grupo se inscrevem no prolongamento da tradição sonora Ocidental, apresentando linguagens renovadas e expressões musicais que desenvolvem os parâmetros da composição musical sem que este desenvolvimento realise um distanciamento total com o passado. Apresentam grande liberdade na escolha e emprego de técnicas de composição e também, como fator recorrente, a preocupação de sistematizar seus discursos e de estabelecer um novo sistema de linguagem sonora.
Eunice Katunda(1915+1985), Hans Joachim Koellreutter (1915+2005), Claudio Santoro (1919+1989), Esther Scliar (1926+1978), Ernst Widmer(1927+1990), Ernest Mahle (1929), Henrique de Curitiba (1934), Mario Ficarelli, (1937), Ricardo Tacuchian (1939), Almeida Prado (1943), (Ronaldo Miranda (1948), David Korenchendler (1948), Amaral Vieira(1952), Guilherme Ripper (1959)
Grupo de compositores apresentando um discurso sonoro de liberdade relativa :
Em um primeiro tempo, as composições deste grupo conservam uma cor local, regional pela utilização de elementos de inspiração oriundos de tradições sonoras populares e folclóricas diversas e diversificadas. Estes elementos de inspiração, utilizados na intenção de dotar as composições de um certo regionalismo ou ineditismo, se encontram em alguns compositores da atualidade transcendidos pela utilização de técnicas de composição e particularidades de discursos que diluem, metamorfoseam esta inspiração de base, em linguagens originais. A utilização de todo e qualquer elemento de inspiração é na atualidade a pratica mais recorrente nos compositores deste grupo. O que significa que a expansão do universo sonoro da criação musical guarda com o passado uma liberdade « relativa » que possibilita exatamente esta expansão do universo dos sons que se integram às composições e transcendem o objetivo primeiro deste grupo que foi o de guardar uma colorido, uma atmosfera regional. Como nos demais grupos, a liberdade de escolha e emprego de técnicas de composição é muito diversificada. A preocupação de certos autores com a renovação da linguagem e com uma sistematização do discurso é também um fator importante.
Mozart Camargo Guarnieri (1907+1993), Guerra Peixe (1914+1993), Alceu Bochino (1918), Bruno Kiefer (1923-1987), José Penalva (1924), Nilson Lombardi (1926) Osvaldo Lacerda (1927), Edino Krieger (1928), Brenno Blauth (1931- 1993), Maria Helena Rosas-Fernandes (1933), Sérgio de Vasconcellos Corrêa (1934), Eduardo Escalante (1937), Marlos Nobre (1939), Lindembergue Cardoso (1939+1989), Guilherme Bauer (1940),
Grupo de Compositores se exprimindo em liberdade absoluta do discurso em técnica e meios :
Estes compositores objetivam novas formas de expressão musical pelo emprego de recursos inéditos sonoros estruturais e extra-musicais em total liberdade. A grande particularidade dos compositores deste grupo é sem duvida a preocupação com o som em todos seus parâmetros pelo desenvolvimento, pela modificação e reorganização dos dados. As propostas de teatro musical, a composição eletroacústica e todas as concepções inter-disciplinares conjugando (som, luz, a palavra, ação, odores e cores etc), se integram a este grupo no qual se inserem também todas as práticas de improvisação aleatórias.
Gilberto Mendes (1922), Emilio Terraza(1929), Luis Carlos Vinholes (1933), Jocy de Oliveira (1936), Willy Correia de Oliveira (1938), Raul do Valle (1936), Jorge Antunes (1942), (Aylton Escobar (1943), Jamary Oliveira(1944), José Coelho Barreto (1953), Amaro Borges (1957), Ricardo Mazzini Bordini (1957), Wellington Gomes (1960),Walter Smetak (1937+1984), Didier Guigue (1954), Pedro Kroger (1974), Roberto Victorio (1959).
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* Maria Helena Pinto da Silva Elias, pianista e musicóloga brasileira residente em França, natural de Belém do Para. Pesquisadora Associada ao Observatoire Musical Français (l'OMF), Sorbonne Paris IV. Uma das organizadoras, representante de l'OMF do colóquio « Le piano Brésilien » realizado em 30 de janeiro de 2008, na Sorbonne Paris IV, Salle des Actes.