Revista eletrônica de musicologia

Volume XI - Setembro de 2007

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Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro

 


Maria Ignez Cruz Mello (UDESC)


Resumo: Este trabalho parte de uma discussão sobre música e relações de gênero no contexto da música indígena no Brasil, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero na musicologia e na teoria musical ocidental, inserindo tais reflexões dentro de uma perspectiva de crítica pós-moderna que pretende se aproximar de uma análise feminista no campo musicológico. Trabalhos da área da antropologia, como o de Maria Mello (2005), e da musicologia, como os de Susan McClary (1994) e Susanne Cusick (2001) servem de base para esta reflexão, que ao final, aponta caminhos para futuras pesquisas que tratem da dimensão das relações de gênero no cenário da música brasileira.


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É muito comum se ouvir falar da inexistência ou, ao menos, da irrelevância da mulher no cenário da composição musical no meio erudito da música ocidental. Também não se observa uma quantidade expressiva de mulheres no campo da regência orquestral ou coral, da teoria musical ou da musicologia. Indo mais adiante, vê-se que as mulheres, também no cenário da música popular, vão merecer algum destaque como compositoras somente a partir da segunda metade do século XX e, ainda assim, em número consideravelmente inferior aos homens. Pretendo nesta comunicação refletir sobre o que há por trás destes fatos que, ao mesmo tempo em que naturalizam uma série de “incapacidades femininas”, mascaram as estratégias que dão sustentação a esta realidade estatística.

O papel da mulher, sob o prisma de diferentes áreas do conhecimento, tem sido sistematicamente revisto nos últimos vinte anos , compondo um campo de estudos que se passou a conhecer por “estudos feministas”. O universo musical, tanto no que concerne à produção quanto aos estudos sobre estas produções, tem sido, por longo tempo, uma prerrogativa masculina. Contudo, nas últimas décadas, pesquisas originadas no campo dos estudos culturais, da antropologia, da musicologia e da história têm mostrado novos caminhos para se pensar tanto o trajeto feminino ao longo das transformações e da consolidação de várias narrativas que permeiam a música ocidental, quanto as implicações que as relações de gênero têm sobre a política e a produção musical mundial.

Sob este angulo, algumas áreas ainda não trataram suficientemente do assunto, como é o caso dos estudos sobre a produção musical feminina no Brasil. Nesta comunicação, partindo de uma discussão sobre música e relações de gênero em um contexto que difere radicalmente daquele da musica ocidental, a saber, o da música indígena das terras baixas da América do Sul, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero no campo da musicologia e da teoria musical ocidental, pretendo apontar alguns caminhos para futuras pesquisas que possam ajudar a preencher a lacuna existente em relação ao caso brasileiro, ainda pouco estudado. Tais reflexões se inserem dentro de uma perspectiva pós-moderna de crítica a conceitos como “música em si” e “música absoluta”, aproximando-se de uma análise feminista no campo musicológico.

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Em minha tese sobre os Wauja (MELLO, 2005), um dos grupos indígenas que vivem no Alto Xingu, apresento uma densa etnografia de um ritual musical, o ritual de iamurikuma, realizado exclusivamente pelas mulheres. Este ritual é analisado em seus aspectos musicais e sob o ponto de vista das relações de gênero, dentro dos marcos teóricos da antropologia social. Procuro mostrar que entre os Wauja, bem como entre outros grupos indígenas, as questões de gênero estão ligadas indissociavelmente à música, desde o que se observa na mitologia quanto o que se vê nas práticas rituais. No Alto Xingu todas as aldeias possuem uma “casa das flautas”, também chamada por “casa dos homens”, que ocupa o centro de uma aldeia circular e não pode ser freqüentada pelas mulheres. As flautas que esta casa abriga, chamadas kawoká, não podem ser vistas pelas mulheres, sob pena de virem a sofrer um “estupro coletivo”. Se num primeiro momento pensamos em dominação masculina, não se pode dizer que as mulheres simplesmente se submetam a ela, pois, durante o iamurikuma elas ocupam também o centro da aldeia e ameaçam os homens com seus cantos, entoando provocações e denúncias. Elas colocam de forma poético-musical sentimentos individuais em um plano coletivo e assumem o domínio de seus corpos através da música. Partindo da afirmação das mulheres Wauja de que “música de iamurikuma é música de flauta”, e com base nas análises de mitos e em análises musicológicas, é apresentada a ligação entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká. Destas análises, ressalta a complexidade das construções composicionais (MELLO, 2006) que tanto as músicas de iamurikuma quanto as das flautas kawoapresentam, bem como surpreende o grau de imbricação entre os dois repertórios. Estas operações musicais complexas exigem uma excelente memória e alto grau de conhecimento tanto por parte das mulheres cantoras quanto dos flautistas mestres. Como os motivos rítmicos e melódicos dos cantos de iamurikuma podem ser vistos como uma versão cantada e feminina daqueles apresentados nas músicas de kawo, fica evidente que o aspecto sonoro do repertório das flautas não é objeto de proibição, mais sim, que são estes sons comuns “que unem a extrema masculinidade, exclusiva e interdita às mulheres, representada pelo complexo simbólico das flautas kawo, e a feminilidade em sua expressão mais marcante, o iamurikuma” (2005, p. 11), formando um único complexo mítico-musical.

Trazer estes dados para a discussão em torno do papel da mulher e do feminino no campo da musicologia atual tem como objetivo principal desconstruir certas formulações universalizantes que tanto o discurso comum quanto o discurso acadêmico se esforçam por manter. Ao tratar de povos que vivem e pensam as relações de gênero de forma tão peculiar e tão explicitamente associadas ao campo da música, nos vemos forçados a reformular nossas próprias idéias a este respeito em nossa sociedade.[1]

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De modo geral, nos estudos sobre relações de gênero, é consenso que  há uma condição biológica dada para toda a humanidade que liga a diferença de sexo à capacidade reprodutiva, assim como há também em toda parte uma construção social feita sobre estes dados elementares que, no entanto, não se traduz da mesma forma em todo lugar (HÉRITIER, 1996, p. 22). Sabe-se que o sistema das relações de gênero está ligado às atribuições sociais de papéis, poder e prestígio, sendo sustentado por ampla rede de metáforas e práticas culturais associadas ao masculino ou ao feminino. Desde Platão, vê-se uma preocupação no O cidente com o poder exercido pela música e, em torno desta ansiedade, muito se tem elaborado em termos de metáforas de gênero, diferença sexual, atração e repulsa sexual. Apresento a seguir uma reflexão sobre parte da bibliografia da musicologia e da teoria musical atuais, no sentido de inserir as discussões em torno das relações de gênero neste campo. 

Como aponta Joseph Kermann (1985), a tradição musicológica esteve sempre muito mais voltada para análises formais do que para questões sensíveis às humanidades, e isto se deve muito ao fato de que, no desenvolvimento da música ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de pressupostos teóricos, explicitados através de convenções e construções retóricas repletas de metáforas sexuais. Estas se ligam a questões de gênero que estão na base de um paradigma narrativo poderoso,  em cujo âmago está o ponto de vista masculino. Contudo, apesar da centralidade destas questões, a disciplina não parece tratá-las de modo consciente (McCLARY, 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico, os tempos fortes de um determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é dito que elas exercem atração, em oposição às menores, ligadas à repulsão; também percebe-se “ímpetos procriativos” ocorrendo por meio das qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a idéia prevalente, desde o século XVII, do processo desencadeado pela expectativa (clímax) e resolução da expectativa, também chamado de tensão vs. relaxamento, presente no cerne da música ocidental, o que parece uma forte metáfora da atividade sexual. A forma sonata-allegro é estruturalmente um exemplo deste modelo: o tema de abertura deve ter um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heróico, enquanto que o tema subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”. Todos estes pontos são “naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca dê a última palavra neste contexto: no mundo da narrativa musical tradicional não há terminações femininas (McCLARY , 1994, p. 16).

Como nos lembra Susan McClary, para o bem ou para o mal, a música nos socializa. Ela contribui fortemente na formação das identidades de indivíduos, pois os ensina a experimentar emoções, desejos e até mesmo seus próprios corpos (1994, p. 53). Se boa parte dos estudos que tratam do universo da música pop já têm claro que a música lida direta e deliberadamente com a sexualidade (WALSER, 1993; COHEN, 1991), não se pode dizer o mesmo dos estudos sobre a música erudita. Estes, especialmente os realizados pelo viés de uma musicologia presa aos moldes do pensamento social do final do século XIX, gostam de afirmar que a música clássica trata apenas de coisas “superiores”, que ela não seria contaminada pelo “libidinal”, ou quem sabe, mesmo pelo social (McCLARY, 1994, p. 54).

Para alguns autores, orientados por um posicionamento mais ideológico em relação ao campo de estudos musicológicos (cf. HATTEN, 2004, ver adiante), seria imprescindível revelar as construções de gênero, sexualidade e poder que estão presentes tanto no texto musical quanto no discurso sobre a música que o meio teórico e o musicológico se esforçam por desenvolver (p. 4-5).

Nesta esteira, o trabalho de Susanne Cusick (2001) analisa os primeiros movimentos da academia norte-americana em torno da fundação da New York Musicological Society, em 1930, e da American Musicological Society, em 1934. Cusick apresenta uma breve história de como a compositora Ruth Crawford, na época uma proeminente estudante de composição que já possuía várias obras publicadas, se interessou em estudar contraponto atonal com o Prof. Charles Seeger e teve seu ingresso barrado ao se candidatar para compor o quadro da New York Musicological Society. Sua exclusão deliberada foi, anos mais tarde, assumida por Seeger,[2] pois ele acreditava que, com isso, estaria evitando que chamassem a então emergente musicologia de “trabalho de mulher”. Este pequeno episódio serve a Cusick para mostrar como a questão de gênero está no âmago da identidade da musicologia norte-americana e, por extensão, da musicologia contemporânea em geral. O medo levantado por Seeger era de que a musicologia fosse associada à posição que a mulher ocupava (e ainda ocupa em muitas áreas) na “vida real”, ou seja, inferior, sem poder, caracterizada pela emocionalidade, sensualidade, frivolidade, todas as características que há muito estão ligadas ao próprio objeto da musicologia, a música. Esta antiga associação da música com o universo feminino faz com que os musicólogos tentem sistematicamente manter as mulheres longe do campo, na tentativa de atingir um reconhecimento como ciência, de serem vistos como racionais, sérios e objetivos. Desta forma, a marginalidade do gênero na musicologia acentuou a marginalização histórica das experiências musicais das mulheres, bem como reforçou a ocultação do que é tido como feminino na “vida real”.

Entender o porquê da misoginia impregnada na musicologia nos faz ir mais fundo na rede de metáforas pelas quais nossas idéias de gênero são constantemente reforçadas. Cusick enfatiza que, para os homens da associação norte-americana, a presença das mulheres traria à tona a similitude entre música e poder erótico (p. 478). Haveria, portanto, uma necessidade de controle sobre o fluxo do desejo para que a objetividade da musicologia fosse afirmada. A exclusão do prazer seria então importante para a aceitação no campo das ciências, lembrando que a ciência, particularmente nos Estados Unidos, é o campo legitimador das profissões.

Assim sendo, a musicologia, posta como a ciência da música, busca disciplinar e treinar compositores, intérpretes e ouvintes a se separarem da intuição, sentimentos e imaginação, todos aqueles atributos femininos associados à arte musical. Seguindo de perto as pesquisas musicológicas ao longo da história, McClary (1994) observa que há uma constante tentativa de dissociação da atividade musical de uma carga supostamente “feminilizadora”: talvez pelo fato desta arte, assim como a dança, estar ligada aos prazeres sensuais, os musicólogos parecem assumir, ao longo da história da música ocidental, uma postura extremamente formalista. Definem a música como a mais ideal (em oposição à física ou material) das artes, insistindo na dimensão racional da música, e clamam por virtudes tidas como masculinas, tais como objetividade, universalidade e transcendência, além de lançarem mão, em diferentes épocas e ocasiões, da proibição da participação feminina.

Neste caminho de cientificização, observa-se claramente o projeto hegemônico do “homem branco”, heterossexual, classe-média ocidental, de ditar os cânones que devem ser aceitos e de provocar a exclusão do que crê ser inadequado, projeto já tão contestado pelas correntes pós-modernas do pensamento contemporâneo que vêm nas grandes narrativas,[3] formas exacerbadas de exclusão social. Segundo Ellen Koskoff, a construção de cânones - estes pensados como conjunto de trabalhos que corporificam valores que são medidos e controlados como um discurso - que advêm desta postura universalizante da música ocidental por si só não representaria um problema: a questão surgiria com o processo de canonização, ou seja, “the institutionalization of certain works over others through the imposition of hierchies of self-invested values upon other people and their musics” (KOSKOFF, 2001, p. 547).

Dentro desta narrativa masculina da musicologia estabelece-se implicitamente uma hierarquia na vida acadêmica musical que sistematicamente desvalorizou a performance e a educação musical em prol da valorização da ciência da música. Os instrumentistas e educadores necessitariam de outros que pudessem falar em seu lugar, ou seja, dos musicólogos. Estes, por sua vez, proclamariam o que deveria ser a mais alta forma de música, a “música absoluta” ou a “música em si”, elevando a Forma Musical ao verdadeiro prazer que a música pode oferecer, o prazer da mente.

Toda esta discussão parece remontar às idéias de Adorno sobre música, que mereceram longa análise de Richard Middleton (1990). Este autor, ao mesmo tempo em que reitera a importância do pensamento de Adorno para os estudos sobre música, critica duramente seu pessimismo diante do desenvolvimento das sociedades industriais e ataca sua utilização do “método imanente” para criar uma autonomia da música em relação à esfera sócio-cultural, revelando sua perspectiva etno e eurocêntrica (p.44-45). Como exemplo da riqueza de um repertório repudiado por Adorno, Middleton analisa uma canção da Tin Pan Alley - famoso reduto nova-iorquino de produtores de hits das primeiras décadas do século XX - e avalia como o etnocentrismo do pensador da Escola de Frankfurt o impediu de ver a importância da música popular e das grandes mudanças que ocorriam no mundo da música ocidental.

Já Charles Hamm (1995) detecta os modelos narrativos modernistas sobre música popular que têm sido construídos a partir dos fins do século XVIII, que se ligam às lutas e estruturas de classe européias. Estes escritos são construções que têm em sua base uma estrutura hierárquica e excludente, que privilegia um gênero musical (e sexual) em detrimento de outros. São narrativas como a da autonomia musical -ligada ao idealismo germânico que explicita divisões como highbrow e lowbrow-, a narrativa da cultura de massa -todos aqueles que produzem, criam e/ou consomem os produtos de massa são de classe, etnia ou moral “inferiores”-, as narrativas da autenticidade -valorização da música folclórica ou da música de culturas diferentes a partir de seu grau de “não-contaminação”. Com o desvendamento destas narrativas, torna-se possível perceber que elas estão sendo articuladas ainda hoje em relação a diferentes fenômenos no mundo da música.

Voltando à questão da autonomia da musicologia em relação aos “encaixes” sociais, vê-se que esta postura é amplamente aceita por teóricos da música de um modo geral, e que todas as narrativas e posturas por eles assumidas estão de acordo com o proclamado ideal do “homem-branco  classe-média norte-americano ou europeu”, ou seja, que através da objetividade e da exclusão da sensualidade, pode-se alcançar a “forma pura” e o prazer que o entendimento desta provoca na mente. Fred Maus (1993), em seu ensaio sobre teoria musical relacionada ao discurso masculino, trata as idéias de Hanslick, descritas em seu clássico livro O belo na música (HANSLICK, 1989), como que ressoando as poderosas características do patriarcado ocidental - exaltação da dominação masculina (heterossexual) sobre todas as outras formas de relacionamento humano. Na crítica a Hanslick, Maus observa que a “música absoluta” deixa de fora de suas fronteiras toda música que não corresponde ao modelo proposto. Márcia Citron (1991), por sua vez, também relaciona a idéia de “música absoluta” à representação cultural da masculinidade, pois esta se caracterizaria por considerar seus pressupostos como universais. Ela crê que cultuar a “música absoluta” é cultuar a masculinidade, ou seja, a experiência da “música em si” não pode ser considerada inocente, livre das relações de gênero e livre da política que lhe dá sustentação.

Também para Cusick, destronar a “música em si” é um dos objetivos de uma musicologia feminista, visto que cultuá-la significaria cultuar a imagem da masculinidade. Para ela, este destronamento representaria uma ameaça à mais profunda crença das democracias capitalistas ocidentais: a idéia de indivíduo liberal, aquele que se vê como livre para escolher o que quiser, quando quiser. A experiência encorajada pelo culto da “música absoluta” é a de uma experiên-cia estética onde o indivíduo pode imaginar a si próprio como um anjo, até mesmo um Deus, em um espaço que seria como o éter onde não haveria gênero, sexualidade ou corpos (2001, p.494). Contudo, os musicólogos não se perdem no éter da fruição, pois eles são os guias das viagens musicais. Para Maus, a audiência, de um modo geral, pode ser descrita como bottom, os “de baixo”, enquanto que os musicólogos seriam vistos como top, os “do alto”. Com isso, esta audiência (nós, a maioria) parece gostar de assumir uma posição de subordinada, de aprendiz dos superiores, ao mesmo tempo em que aprende a confundir sua subordinação com uma participação imaginária na divindade através da identificação com a entidade chamada “música em si”.

Cusick, por sua vez, faz um paralelo entre esta relação da audiência com a “música em si” e a leitura de novelas, afirmando que em ambas existiria uma fantasia de mobilidade e controle social. A imobilidade física imposta pela sala de concerto nos coloca na posição de top e bottom simultaneamente, momento em que há uma liberação de nossos rígidos papéis sexuais, políticos, de etnia e de classe. Tudo estaria projetado na “música em si”, que nos fornece o modelo sônico da imagem de Deus, nos termos como o indivíduo da classe média o concebe, aquele indivíduo liberal descrito pela teoria política clássica (p.495).

Cusick apresenta, por fim, o que poderia ser uma musicologia feminista, observada em dois planos explicitamente políticos de salvamento do feminino na música: o primeiro, chamado de “Onde estão as mulheres?”, que busca retirar as mulheres compositoras e intérpretes do obscurantismo. O segundo plano, chamado de “Como as mulheres e o feminino têm sido representados?”, tem como intenção salvar o poder expressivo, sensual e erótico da música. Neste sentido, a prática musical poderia ser vista como relacionada ao aprendizado da prática erótica, dos relacionamentos sociais e sensuais.

Segundo Robert Hatten, toda a discussão das últimas décadas em torno de uma busca do significado musical foi orientada e afetada basicamente por duas correntes musicológicas às quais chamou de crítica e ideológica (HATTEN, 2004). A primeira, representada por musicólogos como Joseph Kerman, Leo Treitler e Leonard Meyer, buscou superar o positivismo e o formalismo em prol de análises e interpretações com uma crítica historicamente mais informada. Na segunda orientação, que envolve um posicionamento mais ideológico, Hatten coloca Lawrence Kramer e Susan McClary, envolvendo a crítica pós-moderna, a desconstrução, a hermenêutica e o feminismo, revelando as construções de gênero, sexualidade e poder no texto musical (p. 4-5).

Como se pode depreender do que foi escrito até aqui, esta comunicação centrou-se claramente nesta segunda orientação, por concentrar autores e trabalhos que questionam as relações de gênero no campo da música. Os dados apresentados sobre a música indígena servem aqui de contraponto para nos ajudar a pensar questões que rotineiramente temos como claras e certas, como por exemplo: (1) em geral se crê que sociedades indígenas não possuem música estruturalmente elaborada, enquanto que na sociedade ocidental, principalmente no meio da música erudita, falar de tal elaboração é quase uma obviedade; (2) uma sociedade que coloca a “casa dos homens” em seu centro e proíbe as mulheres de freqü entá-la pode ser vista como machista e autoritária, enquanto que a sociedade em que vivemos é tida como “idealmente” liberal e democrática. Contudo, depois do que foi dito sobre a música ocidental e o papel das mulheres neste cenário, dificilmente poderíamos comparar a atuação das mulheres na música erudita àquela das mulheres indígenas que tomam o centro da aldeia e impõe suas idéias e anseios através das músicas que criam e executam publicamente. Neste contexto indígena, homens e mulheres produzem, interpretam e absorvem a música de forma equilibrada e entrelaçada, procurando expor e conter o que há de mais conflitante nas relações sociais, enquanto que na sociedade ocidental, através de um discurso universalizante, impõem-se significados claramente “generizados”.

A dimensão das relações de gênero no cenário brasileiro revela-se em estruturas institucionais que não têm sido estudadas sob esta perspectiva, tais como Academia Brasileira de Música, Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, Sociedade Brasileira de Musicologia. Há uma carência de pesquisas musicológicas produzidas no Brasil que problematizem pontos como: faixa etária das mulheres que atuam no cenário da música pop/rock, em grupos folclóricos e na música erudita; questões étnicas e raciais que perpassam os grupos musicais; produções individuais e coletivas; formas de organização dos grupos; visões da mídia sobre as mulheres na música, entre outros. O estudo das trajetórias de vida de mulheres emblemáticas da música brasileira, tais como Chiquinha Gonzaga, Carmem Miranda, Guiomar Novaes, Dolores Duram, revistas sob a ótica de uma musicologia orientada pelos estudos de gênero, representaria também um passo importante a ser dado. O estudo da musicalidade brasileira revista sob tal perspectiva poderá revelar como o “feminino” e o “masculino” se projetam e se constroem através do discurso musical, tanto no nível das estruturas composicionais, dos arranjos instrumentais e vocais, bem como no plano das letras das canções.

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Notas


[1] Devemos também considerar que não estamos tratando de povos presos a um passado inatingível, muito pelo contrário, estes povos estão nos dias de hoje vivendo seus rituais de forma plena, mesmo que em contato com a sociedade envolvente, tão repleta de ofertas de bens, como CDs, DVDs, e outras mídias a que eles têm acesso.

[2] Que se tornou marido de Ruth algum tempo depois deste episódio.

[3] O termo “pós-moderno” aparece nos anos 80, para dar conta da exaustão dos pressupostos modernistas, como o fim daquilo que Lyotard chama de grandes narrativas (LYOTARD, 1986) e com mudanças na ordem da economia e da produção industrial (HARVEY, 1993). Já GIDDENS (1991) afirma que o que vivemos hoje não corresponde ao fim da modernidade, mas sim a uma radicalização e universalização das conseqüências da modernidade, embora possamos ver relances da emergência de novos modos de vida e formas de organização social. Algumas características desta modernidade radicalizada seriam: a dissolução dos grandes relatos e, com eles, do evolucionismo; o desaparecimento da teleologia histórica; o reconhecimento da reflexividade constitutiva da modernidade; por fim, a evaporação da posição privilegiada do Ocidente.


Referências

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CUSICK, Suzanne. Gender, musicology and feminism. In: COOK, Nicholas; EVERIST, Mark (org.) Rethinking music. New York: Oxford University Press, 2001, p. 471- 498.

COHEN, Sara. Rock culture in Liverpool. New York: Oxford University Press, 1991.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.

HAMM, Charles. Putting popular music in its place. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.

HARVEY, D. A condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1993.

HATTEN, R. Interpreting musical gestures, topics, and tropes: Mozart, Beethoven, Schubert. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2004.

KOSKOFF, Ellen. What do we want to teach music? One apology, two short trips, three ethical dilemmas, and eighty-two questions. In: COOK, Nicholas; EVERIST, Mark (org.) Rethinking music. New York: Oxford University Press, 2001, p. 545 – 559.

LYOTARD, J. F. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

MAUS, Fred Everett. Masculine discourse in music theory. Perspectives of New Music, v. 31, n. 2, 1993, p. 264-293.

McCLARY, Susan. Feminine endings: Music, gender, and sexuality. Minneapolis: University of Minnesota, 1994.

MIDDLETON, R. Studying popular music. Philadelphia: Open University Press, 1990.

MELLO, Maria Ignez C. Iamurikuma: Música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2005.

_____ Processos composicionais em um ritual musical indígena. In: DOTTORI, M.; ILARI, Beatriz (org.) Anais do I Encontro Nacional de Cognição & Artes Musicais. Curitiba: DeArtes /UFPR, 2006, p. 52-58.


WALSER, Robert. Running with the Devil: Power, gender, and madness in heavy metal music. Hanover, NH: Wesleyan University Press, 1993.

 

 

 

Maria Ignez Cruz Mello é bacharel em Composição pela Universidade Estadual de Campinas, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina, leciona nas áreas de Percepção Musical e Musicologia-Etnomusicologia. Suas publicações tratam especialmente de música indígena, música popular e música e relações de gênero. migmello@gmail.com