Revista eletrônica de musicologia

Volume XI - Setembro de 2007

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Improvisação & interpretação mediada


Cleber da Silveira Campos, César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli (UNICAMP)


Resumo: Descrevemos neste artigo um estudo sobre performance mediada por processos tecnológicos. O objetivo da pesquisa foi estabelecer um aprofundamento no estudo do processo de composição de obras “semi-abertas” na qual os participantes buscam novas sonoridades através da interação entre improvisação, instrumentos de percussão e tratamento computacional em tempo real. A metodologia adotada faz parte da pesquisa de mestrado em andamento onde são estudadas técnicas de interpretação mediada. O processo de interação aqui descrito culminou com a composição da obra “Sinergética”, que engendra o conceito de colaboração, alvo do estudo aqui reportado.


Introdução

No artigo “Instrumentos Musicais Digitais”, Wanderley (2006) comenta que a introdução de modelos de computadores pessoais com grande capacidade de processamento e a baixo custo popularizou a geração sonora em tempo real (síntese sonora). Isto criou a possibilidade de utilização de computadores pessoais na criação de sons de alta qualidade em modo de processamento nativo, isto é, sem a adição de placas de processamento extras para o cálculo das amostras sonoras. Associadas ao desenvolvimento contínuo de novos métodos de síntese sonora nos últimos 50 anos, estas máquinas possibilitaram o aparecimento de novos instrumentos musicais nos quais a geração sonora é toda realizada pelo computador. A vantagem deste método de geração sonora comparada aos sintetizadores eletrônicos (analógicos ou digitais) já existentes há várias décadas é a sua inerente flexibilidade, pois estes computadores podem simular inúmeros métodos de síntese por software e assim serem utilizados em diferentes contextos.

Wanderley aponta para uma questão que se colocou desde então: como utilizar esta capacidade de geração sonora em tempo real? Ou, como tocar um computador?

É nesse contexto que nosso trabalho busca, através do estudo de técnicas de interpretação para percussão no contexto da música contemporânea, buscar novas sonoridades e desenvolver a postura interpretativa dos intérpretes envolvidos no processo interativo dessa obra. O trabalho aqui reportado é o resultado de uma série de oficinas realizadas, onde os pesquisadores estudam a integração de instrumentos de percussão, sensores e interfaces computacionais.

A pesquisa aqui apresentada se insere no contexto das Técnicas Interpretativas Mediadas, onde utilizamos a improvisação como principal ferramenta para ampliar o escopo da sonoridade dos instrumentos de percussão. Também buscamos novos caminhos e possibilidades na interação da percussão múltipla com eletrônicos em tempo real.  Nosso estudo busca as sutilezas sonoras e os detalhes de cada gesto, como conseqüência das diferentes técnicas aplicadas aos instrumentos de percussão, para que assim ganhem uma nova importância ao tornarem-se matéria prima para a criação de novas sonoridades e material de comunicação entre intérpretes/percussionistas e meios eletrônicos.

Segundo Rowe (1993), uma parte substancial dos esforços de desenvolvimento tem-se voltado ao contexto de performances ao vivo, que é justamente o alvo do nosso estudo. Sistemas computacionais direcionados ao processamento sonoro em tempo real são utilizados em composições nas quais combinam-se partes instrumentais e partes sintetizadas/processadas pelo computador.

Boulez (1988) evidencia a necessidade de uma maior interação entre músicos, cientistas e técnicos, a fim de trazer uma espécie de consciência cooperativista coletiva entre essas três classes. Para que isso aconteça, seria necessário que todos adquirissem o conhecimento da tecnologia envolvida nesses princípios, gerando assim uma linguagem comum entre música e tecnologia.

Em sua dissertação de mestrado, Dias (2006) comenta que atualmente existe um movimento de pessoas que acreditam que os sons em tempo real tornam as obras mistas mais semelhantes às composições convencionais, aproximando-as da prática pré-eletroacústica. Segundo essa vertente, a utilização de sons pré-gravados não possibilita ao intérprete uma atmosfera de performance “confortável”.

O estudo que apresentamos neste artigo, parte da interação entre percussão múltipla e tratamento computacional realizado com o software Max/MSP.[1] O Max/MSP é um ambiente para desenvolvimento de programas para interação sonora em tempo real. A tecnologia é utilizada para modelagem musical ampliando assim as possibilidades tímbricas através do controle dos parâmetros de percepção musical como amplitudes de onda, timbres, espaço, tempo, gerando novas ferramentas de composição (RONDELEUX, 1999).
Na seção “Da Oficina à Composição”, o artigo apresenta o processo de composição da obra através de oficinas de interação no qual descrevemos o processo de criação. Segue a descrição da “Metodologia” utilizada. Em “Improvisação” apresentamos a relação entre novas possibilidades interpretativas e sonoras relacionadas às estruturas de composição que utilizam à improvisação como elemento fundamental da obra. Finalmente, apresentamos os resultados e as considerações finais onde discutimos e projetamos os próximos passos do trabalho.

Da oficina à composição

Estrutura do processo criativo


As oficinas foram realizadas por dois percussionistas que compartilham uma mesma configuração de percussão formada por oito tom-toms, um bumbo sinfônico, quatro tambores de freio, um temple bell, cinco tubos de alumínio de diferentes tamanhos e espessuras, quatro latas de diferentes tamanhos, quatro wood-blocks, um apito e um roem-roem.[2]

A realização da obra, num processo sinérgico de experimentação/composição, foi concretizada com as diversas peculiaridades tímbricas encontradas pelos três agentes do processo, ampliando assim as possibilidades sonoras de cada instrumento modificado por diferentes técnicas de execução e pelo processamento sonoro em tempo real.

Com o desenvolvimento de diversos aspectos musicais, a partir de um guia de improvisação em forma de partitura gráfica, gradativamente foram surgindo novas texturas musicais. Juntamente com o compositor os intérpretes selecionaram e organizaram elementos como: padrões de manipu-lação, instrumentação, técnicas de execução e disposição da configuração dos instrumentos, de maneira a criarem um diálogo entre os sons acústicos e eletrônicos buscando uma coesão sonora ao discurso musical.

Descrição do processo criativo

A partir da consolidação desses processos, a estrutura passou a ser subdividida em três grandes seções. A primeira é formada por um breve início com efeitos de apito e roem-roem, indo rapidamente para instrumentos de pele com a utilização de dinâmica iniciando em forte decrescendo e a utilização de notas espaçadas. Na segunda seção são utilizados instrumentos de metal e madeira com dinâmica meio forte e um maior número de notas em relação à primeira parte. A terceira seção foi formada pela utilização de instrumentos de pele com dinâmica iniciando em fraco crescendo até fortíssimo e início com notas espaçadas aumento a densidade até o clímax da obra. As três seções são interligadas por pequenas pontes/intersecções onde os elementos e os timbres utilizados são uma mescla da seção anterior e da próxima.
As interfaces utilizadas foram cinco microfones, sendo três deles unidirecionais (cardióide) e dois omnidirecionais. Os microfones foram utilizados para captar o material sonoro produzido pelos instrumentos de percussão e enviar para um computador, onde o som foi processado através do software Max/MSP.


Figura 1. Imagem do Patch - Max/MSP utilizado na obra.

 

                       


Metodologia

A metodologia foi dividida em três etapas:

1. Criar, selecionar e utilizar os modelos sonoros que irão formar a estrutura da obra, observando as diversas características dos instrumentos na execução das oficinas;

2. Fomentar aptidão com as interfaces/processamentos sonoros implicados na mediação dos processos tecnológicos utilizados;

3. Explanar o escopo das sonoridades desses instrumentos e adequá-las ao processo de composição, ampliando assim a paleta tímbrica utilizada no processo de improvisação.

A interação entre intérpretes e eletrônicos nessa obra tem um fluxo recorrente onde os intérpretes geram sinal para o computador e respondem as sonoridades produzidas pelo mesmo. Pode-se ampliar este processo, pois há também uma troca de informação entre os dois percussionistas, onde a interação entre ambos é estimulada pelo processamento sonoro gerado pelo computador.


Figura 2. Ilustração do sistema de interação entre percussão múltipla e computador utilizado.

 


Improvisação

Segundo o ponto de vista de Eco (1965), a característica principal da música instrumental está relacionada à liberdade de interpretação atribuída pelo intérprete na performance de uma obra. Assim o intérprete assume o papel de co-autor da obra ao executar estruturas improvisadas dando assim uma nova perspectiva para a estrutura musical, utilizando novos parâmetros estruturais como: duração de notas, escolha de timbres, etc. Desta maneira, a improvisação determina a estética da música em questão.

Eco (1965) transfere ao intérprete a função de co-autor da obra. Neste âmbito, a obra marcante é a Klavierstuck XI de Stockhausen, composta em 1956, onde o intérprete (nesse caso um pianista), escolhe o caminho a ser seguido, no momento da execução, entre algumas das regras oferecidas na partitura.

A Klavierstück XI é uma obra bem particular do repertório pianístico deste século. Trata-se de uma obra na forma aberta apresentada em uma página única com a dimensão de 93x53 cm - uma apresentação por si inusitada. Ela contém 19 grupos de variados tamanhos, sendo a execução destes orientada pelas instruções que se encontram no verso da partitura: “O intérprete se colocará à frente da partitura sem idéia preconcebida e começará a execução da peça pelo primeiro grupo que sua visão encontrar; ele decidirá o andamento, [...], o nível dinâmico fundamental e a forma geral dos ataques segundo os quais os grupos devem ser articulados. Ao fim do primeiro grupo, ele lerá as indicações de andamento, de intensidade fundamental e de forma de ataque. Em seguida, sem intenção preconcebida, ele dirigirá sua visão em direção a um outro grupo qualquer e o tocará de acordo com as três indicações anteriormente lidas, [...] encontrando um mesmo grupo pela segunda vez, ele deve interpretar o grupo segundo as indicações entre parêntesis, [...] encontrando um mesmo grupo pela terceira vez uma das possíveis realizações da peça se encontrará acabada  (TRAJANO, 1998).

Assim, podíamos prever que as formas de indeterminação do percurso musical a serem seguidas pelo intérprete se diversificassem e alargassem cada vez mais. Surgem as primeiras obras que utilizavam como matéria prima o texto, na qual os músicos poderiam reagir conforme a inspiração momentânea. Stockhausen aumenta essa complexidade compondo peças onde utilizava a interação de vários textos e grupos de músicos reagindo ao mesmo tempo em salas diferentes e recebendo estímulos uns dos outros através de circuitos elétricos manipulados pelo compositor (por um dos autores dos textos verbais) durante a interpretação. No séc. XX, a improvisação tornou-se uma prática comum de grupos instrumentais e elemento composicional de diversos estilos.

Na pesquisa aqui descrita, utilizamos a improvisação como elemento fundamental da obra. Através da improvisação foi possível a criação e execução de estruturas ritmicas complexas, criando assim novas sonoridades que não seriam possíveis de serem representadas através da notação tradicional e que ocasionariam no aumento da dificuldade de execução da obra para os dois percussionistas. A interação com dispositivos eletrônicos cria novos elementos na performance e exigem dos intérpretes uma nova postura interpretativa como observado pelo percussionista norte americano Frank Kumor:

A música para percussão obteve um tremendo crescimento no século XX a medida em que os compositores começaram a olhar para ela como um meio representativo para obras solo e música de câmara. Em paralelo com o desenvolvimento dado pelos compositores a obras para percussão, alguns deles adicionaram novos elementos na interpretação como o uso do movimento ou de gesto corporal com significado específico. A inclusão destes elementos em obras recentes para percussão apresenta-se ao intérprete como um desafio técnico que não está ainda identificado no padrão curricular do ensino de percussão (KUMOR, 2002).

Através da utilização da improvisação os intérpretes puderam dedicar maior atenção para as diversas interações que estavam ocorrendo durante o processo. Primeiramente, ambos os intérpretes interagiam entre si, através do diálogo estabelecido entre a execução dos instrumentos disponíveis no set-up e as respostas obtidas pela geração de estímulos entre ambos, num processo sinérgico estabelecido na execução da obra. Por outro lado, ao interagirem em tempo real com o computador, ampliam-se ás possibilidades sonoras gerando assim novos estímulos e novas interações estabelecidas em dois sentidos:

1. Busca de determinadas sonoridades encontradas e pré-estabelecidas nas oficinas, definidas como interessantes á serem executadas, relacionando-as com determinados efeitos gerados pelo computador;

2. Resposta às novas sonoridades resultantes do tratamento eletrônico dos sons.

Nessa obra a improvisação é o elemento principal da música, assim as oficinas de preparo da obra ganham uma grande e vital importância para conscientização e criação de uma linguagem que proporcione o desenvolvimento e a coesão da obra. É durante as oficinas que os dois percussionistas juntamente com o compositor/programador, irão selecionar os caminhos e as sonoridades que, ao critério deles, melhor desenvolvem a obra. É nesse momento que os intérpretes assumem a posição de co-criadores, pois é através da experiência musical de cada um que os elementos principais da obra serão selecionados.

Resultados

Como resultado dessas experiências, notamos que a realização de obras com interação entre intérpretes e eletrônicos em tempo real, necessitam de intérpretes que conheçam a tecnologia envolvida e suas possibilidades. Esse conhecimento foi obtido no nosso trabalho através das oficinas de maneira que os intérpretes/ pesquisadores desenvolveram a capacidade de “prever” a reação do computador aos seus estímu-los sonoros e assim, no momento de performance, antecipar a ação do outro instrumentista. Ou seja, desenvolveram uma paleta de gestos sonoros e estruturas improvisadas para se adaptar a determinados gestos do outro instrumentista ou a determinada resposta sonora do computador, evidenciando assim um processo recorrente nas diferentes performances da obra.

As improvisações em obras “semi-abertas” geram uma espécie de indeterminação controlada, pois ao determinar alguns parâmetros iniciais utilizados no processo, obtemos as chamadas máscaras de tendência, ou seja, uma determinada amostra final obtida por esse processo reapresentará em algum momento algumas características, mesmo que sejam muito pequenas, adquiridas pela influência dos parâmetros inicias referidos na amostra. Observamos que após a realização de algumas oficinas, os intérpretes passaram reagir de maneira similar em cenários interativos semelhantes, pois buscavam referências sonoras memorizadas anteriormente. Desta forma, a obra adquiriu gradativamente uma estrutura musical própria, que pode ser notada pela recorrência de alguns elementos nas diversas performances já realizadas da obra.

Este senso de equilíbrio musical, por parte dos intérpretes e compositor, é único. Assim a realização da mesma obra por outros instrumentistas irá resultar em uma nova estrutu-ração e, conseqüentemente, em novas sonoridades, diretamente vinculadas às experiências assimiladas  nas oficinas de preparação e relacionadas ao conhecimento e à vivência musical de cada um.

Conclusão

Notamos que a utilização de técnicas interpretativas mediadas num contexto vinculado a utilização de elementos de improvisação exigiu dos intérpretes a capacidade de controle de diferentes estruturas sonoras e a habilidade de percepção e reação aos eventos e as sonoridades geradas pelo computador.

Os elementos estudados nesse trabalho mostraram a necessidade do desenvolvimento de uma nova visão interpretativa dos percussionistas frente a obras mediadas por processos tecnológicos em tempo real e que utilizam a improvisação como elemento de coesão estrutural. Trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num ato de improvisação criadora, ou seja, o intérprete passa da posição de simples executante, onde a performance está totalmente pré-determinada, para uma postura de co-criador.

Nas próximas etapas da pesquisa buscaremos elementos de interação multi-modal com dança, imagens e outros. Projetamos também o desenvolvimento de novos dispositivos, ambientes interativos e continuaremos nossa atividade de performance

[1] Software desenvolvido pelo IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique)

[2] Instrumento tradicional do norte do Brasil, que produz som através da fricção de um barbante em um cabo de madeira, sendo amplificado através de um cilindro de papelão preso na outra extremidade do barbante.

Agradecimentos

Esta pesquisa tem o apoio da FAPESP e CAPES,  através de bolsa de mestrado e do CNPq através de bolsa de produtividade em pesquisa
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Referências

BLADES, James. Percussion instruments and their history. New York: Praeger, 1970.

BOULEZ, Pierre. Technology and the composer. In: EMMERSON, Simon (org.). Language of electroacoustic music. Londres: Macmillan, 1986 [1977], p. 5-14.

BOULEZ, Pierre; Andrew Gerzso. Computers in music. Scientific American, v. 258, n. 4, 1988.

DIAS, Helen. A “querela dos tempos”: um estudo sobre as divergências estéticas na música eletroacústica mista. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2006.

ECO, Umberto. L'oeuvre ouverte. Paris: Éditions du Seuil, 1965.

KUMOR, F. Interpreting the relationship between movement and music in selected twentieth-century percussion music. Tese (Doutorado) - University of Kentucky, 2002.

ROWE, Robert. Interactive music system. Cambridge MA: MIT Press, 1993.

WANDERLEY, M. Instrumentos musicais digitais: Input devices and music interaction laboratory, music technology area – Faculty of Music / McGill University, Montréal, 2006.

TRAJANO, E. A Klavierstück XI de Stockhausen: uma imensa melodia de timbres. XI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Anais..., Campinas, 1998


 

 

 

 

 

Cleber da Silveira Campos

César Adriano Traldi

Jônatas Manzolli