Revista eletrônica de musicologia

Volume XI - Setembro de 2007

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Transformações e funções motívicas: uma análise do enérgico – 1º movimento da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez


Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC)


Resumo: Este artigo faz parte de uma pesquisa maior que abrange a análise global da Sonata Breve para piano (1947) de Oscar Lorenzo Fernandez. A escolha desta obra justifica-se em dois aspectos: a relevância do material nela contido para o aprofundamento de questões estruturais e musicais, e a carência de estudos analíticos sobre as composições do compositor supracitado. O objetivo deste estudo foi levantar aspectos analíticos sobre a utilização do motivo em uma obra musical e mostrar a estrutura do primeiro movimento da sonata, o Enérgico, visando sua realização instrumental. A estrutura do Enérgico foi determinada a partir do exame de um motivo básico. Foram destacados e analisados elementos derivados e recapitulados, e discutidas relações os contextos: melódico, rítmico e harmônico decorrentes de modificações e transformações do motivo. Como referencial teórico, optou-se por realizar a análise a partir das teorias variação progressiva e transformação temática de Arnold Schoenberg e Rudolf Reti, respectivamente. A análise revelou que o motivo básico é gerador do desenvolvimento do Enérgico e fator de unidade estrutural. Os resultados da análise mostraram que a compreensão da estrutura de uma composição é essencial para a sua interpretação e realização músico-intrumental. Com este trabalho pretende-se contribuir para a produção crítica e analítica sobre a música brasileira.


Introdução

Dentre as composições para piano de Lorenzo Fernandez, foi destacada a Sonata Breve. Para a priorização de procedimentos técnico-musicais a serem aplicados na sua realização pianística, tornou-se necessária a sua análise.

A Sonata Breve, obra em três movimentos (Enérgico, Sombrio e Impetuoso), foi composta por Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) em setembro de 1947, é sua última obra para piano e uma das últimas composições. Dedicada à Ivy Improta, foi estreada pela pianista Leonor Macedo Costa em maio de 1949, nove meses após a morte do compositor ocorrida em 27 de agosto de 1948 (FRANÇA, 1950) e encerra uma produção pianística de 33 obras entre peças isoladas e coleções que, no conjunto, somam 82 composições. Esta sonata, juntamente com o segundo Quarteto de Cordas (1946), a Primeira e a Segunda Sinfonia (1947), forma o grupo de obras que representam a última fase de Lorenzo Fernandez. Mariz (1950, p.135) destacou como características comuns às duas primeiras obras à Segunda Sinfonia: “unidade temática, exclusão de ornamentos, universalismo, [...] politona-lidade e polirritmia”.

A citação direta da temática folclórica e popular, procedimento musical freqüente nas composições de Lorenzo Fernandez até a década 1920/30, foi substituída por uma temática original. Os elementos nacionalistas acontecem como que filtrados em uma linguagem pessoal (KIEFER, 1986). Segundo os autores citados, as últimas obras apresentam uma concepção mais universalista de composição. Para Neves (1977, p. 62), Lorenzo Fernandez mostrou que “a adesão inteligente à escola nacionalista não impede o desenvolvimento de uma linguagem pessoal e não funciona como elemento uniformizador”.

Em uma análise preliminar, observou-se que esta sonata apresenta uma estrutura fortemente relacionada ao trabalho motívico. Para um melhor entendimento sobre o “motivo”, decidiu-se conduzir o estudo através do aprofundamento de suas possibilidades na abrangência de uma obra. Optou-se por trabalhar as teorias analíticas de transformação motívica propostas por Arnold Schoenberg (1874-1951) e Rudolf Reti (1885-1957). A escolha dos dois autores ateve-se às seguintes razões: Schoenberg, quando expõe sobre a variação progressiva, explica como o compositor cria, oferecendo um enfoque metodológico para a sistematização do processo analítico e Reti, através transformação temática, estabelece um referencial para a investigação analítica a partir do que o compositor cria.

Toda obra contém, internamente, duas forças capazes de dar sentido à forma musical, a externa que diz respeito ao esboço arquitetônico e a interna que compreende a formação melódico-rítmica mais o esquema harmônico. “Há, contudo, [...] outras qualidades essenciais necessárias para moldar agrupamentos musicais dentro do todo arquitetônico, [...] que nada mais são do que as relações temáticas e motívicas” (RETI, 1951, p.109).

Para Frisch  (1984, p.22) Reti provou, através da análise de inúmeras obras,  que a grande maioria das composições musicais significativas “de Bach até Debussy evoluem organicamente de um simples motivo [...] e que a “Transformação Temática” de Reti equivale à “Variação Progressiva” de Schoenberg. Segundo Epstein (1980, p. 208), “Schoenberg manifesta sua convicção de que a unidade composicional surge dos relacionamentos entre as propriedades das formas motívicas”. Dunsby e Whittal (1988) tratam destas teorias como uma evolução no pensamento reducionista da análise de relação entre tema e estrutura.
A análise processou-se através de estudos realizados no fac-símile da Sonata Breve. Foram destacadas modificações, transformações e funções exercidas pelo motivo no desenvolvimento do Enérgico nos contextos: melódico, rítmico e harmônico, mostradas relações existentes entre o motivo básico e as linhas temáticas e levantados aspectos referentes à articulação, ao timbre e à textura.
           
O motivo

O termo motivo tem sua origem na palavra latina motivu, “que move [...] pode fazer mover”.(FERREIRA, 1987, p. 949).Schoenberg (1980, p.15) definiu motivo como sendo “uma unidade que contém uma ou mais características de intervalo e ritmo. [...] Sua prática consiste de repetições freqüentes, algumas delas sem mudanças e, a maioria delas variadas”, responsáveis pela produção de novas formas do motivo que são os “materiais para continuidades, contrastes, novos segmentos, novos temas ou novas secções dentro de uma peça”. Schoenberg  (1983, p.9) ampliou este enunciado dizendo que “as características do motivo são intervalos e ritmos, combinados para produzir um [...] modelo ou contorno que implica usualmente em harmonia inerente”.

Para a compreensão da função do motivo como força direcional da linha estética de uma composição musical, aplica-se a definição de Reti:

Chamamos motivo algum elemento musical seja ele uma frase melódica ou fragmento ou até mesmo apenas uma característica rítmica ou dinâmica que, por ser constantemente repetida e variada através de um trabalho ou secção, assume um papel no ‘design’ composicional (RETI, 1951, p.11).

O design diz respeito ao esboço estrutural, aos pontos que interligam os conteúdos. Para o autor, “na maioria dos trabalhos da literatura musical os diferentes movimentos de uma composição estão conectados pela unidade temática” (RETI, 1951, p.11) que, por sua vez, é operacionalizada pela formação de temas idênticos e não somente por uma afinidade de modo. E esta unidade estabelece a homogeneidade entre os temas de um movimento, entre os movimentos de uma peça de estrutura maior ou entre peças de um opus ou série.
Sendo o motivo básico uma célula condutora e, portanto, fator de projeção do discurso musical preponderante em uma obra musical, torna-se indispensável considerar-se seus componentes melódicos, rítmicos e harmônicos nos planos horizontal, vertical e direcional. Um modelo básico cumpre a função de fator de identidade entre estruturas musicais através da sua recorrência exata, modificada ou transformada. A música, na sua condição primordial, consiste das mais primitivas repetições, e o elemento que funciona como fator unificador [...] o motivo, pode manifestar sua presença somente através da repetição” (SCHOENBERG, 1975, p.265). Sendo a repetição um meio e não somente um fim, as formas mais artísticas obscurecem este fato por uma variedade de caminhos. [...] A repetição é o estágio inicial da técnica formal da música, a variação e o desenvolvimento seu mais alto estágio de desenvolvimento” (op. cit. p.265). Tem-se, desta forma, uma compreensão do que Schoenberg trata por variação progressiva.

Sobre a transformação temática, Reti (1951, p. 67) esclareceu que as possibilidades são inumeráveis e que o compositor, ao utilizar-se da técnica temática, não só “inverte, aumenta, ou simplesmente varia os contornos, mas transforma-os no sentido pleno da palavra”. Ele determinou como categorias de transformação a inversão, a interversão e a reversão: inversão, movimento contrário e retrógrado. A interversão consiste na troca entre sons de um contorno motívico ou temático e resulta na produção de novas configurações.

A recorrência de um motivo ou de suas características assegura a ordem e a coerência formal e quando adotada como princípio de construção musical “deverá produzir inter-relação, coerência, lógica, compreensão e fluência [...]. Tudo depende do seu tratamento e desenvolvimento” (SCHOENBERG, 1983, p. 9). Tais condições fazem do motivo um agente do inter-relacionamento entre contornos. Para Reti (1951, p.4), demonstrar a unidade entre diferentes movimentos ou partes deles, suas inter-relações mais profundas, além daquelas relacionadas às afinidades de estilo, modo ou tonalidade é questão primordial. Da força gravitacional exercida pelo motivo depende o equilíbrio entre os dois sentidos direcionais que formam o design de uma composição, o horizontal e o vertical, através dos quais é gerado o material sonoro.

O Enérgico: o motivo básico e suas recorrências
Primeiro contorno temático

 O Enérgico inicia com a apresentação de um primeiro contorno temático formado por dois segmentos. O segmento inicial, A, contém dois fragmentos (Figura 2). O primeiro fragmento (x) é apresentado em uníssono e corresponde a um motivo inicial, modelo básico (Figura 1) que, no decorrer do discurso musical do Enérgico, aparece no estado original, modificado e transformado melódica, rítmica e harmonicamente.



Figura 1. Motivo básico (m.b.)

O segundo fragmento (y) é diafônico. Inicia no ré da linha para execução da mão direita (m.d.), segue ao dó sustenido e, antes de ir ao dó natural passa pelo lá que interrompe o cromatismo iniciado no mi bemol do motivo. Na mão esquerda (m.e), a linha descendente também iniciada no mi bemol, segue em cromatismo descendente do ré até o lá sem interrupções. A idéia de cromatismo está contida no motivo inicial e o segundo fragmento já caracteriza uma progressão do elemento cromático.

 

Figura 2. 1º  Segmento, fragmentos x e y (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

 

O primeiro segmento, funciona como proposta motívico-temática e detém as relações intervalares que servem de base ao segundo segmento e demais procedimentos melódicos subseqüentes, presentes no contorno horizontal do Enérgico.

Figura 3a. Relações intervalares, Segmento temático A, fragmento x.
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Figura 3b. Relações intervalares, Segmento temático A, fragmento y.
                                          

O segundo segmento temático, B (Figura 4), compassos [2] ao [4], corresponde à conclusão da proposta inicial e à primeira pontuação cadencial. Sua textura é mais densa devido a uma maior compactação sonora causada pela presença de acordes e reiterada pela utilização dos registros médio e grave. Há predominância de movimento paralelo com discreta movimentação melódica, rítmica e harmônica. O motivo (m.e.) faz contraponto com a continuidade temática delineada por acordes paralelos de sétimas maiores (m.d.).

 

Figura 4. 2o Segmento temático (B), compassos [2]-[4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

 

Em uma análise superficial pode-se não observar a relação entre este segmento e o modelo inicial. No entanto, se analisada suas estruturas melódicas, esta relação torna-se evidente (Figuras 5.a e 5.b).

 

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Figura 5a. Relação entre segmento B e motivo.
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Figura 5b. Relação 2, padrão 1d modificado.

Neste segmento, encontra-se definido o fator harmônico mais recorrente na sonata, o acorde de sétima. Seu uso freqüente coloca-o como a cor tímbrica essencial do Enérgico, encontrada nas seguintes formações harmônicas de sétimas: maior com terça maior e com terça menor, menor com quarta justa e sem terça, maior com trítono, e de oitava menor (sétima aumentada) e quinta diminuta.  

Este contorno temático inicial, resultante da conexão entre os segmentos A e B, primeiro correspondente à proposta motívico-temática e o segundo, à resposta, representa uma síntese do Enérgico devido à compactação das principais configurações melódicas, rítmicas e harmônicas nele contidas, além de deter a densidade textural e as qualidades tímbricas mais características. Estas se estendem nos compassos [5] ao [13] e deste ao [14] encontra-se a primeira expansão rítmica do motivo (Figura 6), passagem que faz conexão entre o primeiro e a apresentação segundo contorno temático da exposição.

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Figura 6. Expansão rítmica do motivo básico.


O segundo tema e demais procedimentos do plano horizontal do Enérgico foram examinados, segundo padrões melódicos e rítmicos de referência.

Contorno Horizontal: Padrões melódicos e rítmicos

Como referencial para a análise do contorno melódico do "Enérgico”, foram organizados padrões conseqüentes das permutas uma tabela de entre os sons do motivo básico inicial, mostrados na Figura 7.

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Figura 7. Padrões melódicos de referência.


Na primeira coluna, à esquerda da tabela, encontram-se representados o motivo básico e os três contornos melódicos nele contidos e, na segunda coluna, as respectivas reversões. Nas colunas três, quatro, cinco e seis, encontram-se os padrões resultantes das permutas entre os sons do modelo e suas reversões. Nas linhas intermediárias estão outros contornos decorrentes da mudança de altura do som inicial de cada padrão. Alguns deles se repetem, razão pela qual estão entre parênteses.

Para Schoenberg (1983, p. 58), as “circunstâncias que produzem os vários aspectos do motivo básico provêm das considerações de variedade, estrutura e expressividade”. Sua concepção sobre a abrangência do trabalho motívico também foi explicitada quando tratou sobre conexão. Segundo esclarece, de um mesmo motivo derivam novas figurações e recorrências de particularidades que podem agir como elementos unificadores. Reforçando a coerência global das estruturas ou formas, ao trabalho motívico, é acrescido o inter-relacionamento harmônico.

O ritmo do motivo básico serve de base para fórmulas rítmicas resultantes de sua expansão (1), contração (2) e transformação (3), mostradas na figura seguinte.


 
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Figura 8. Padrões rítmicos de referência.


A diferença entre os padrões 3.a.l e 3.a.2 é de acentuação métrica. O primeiro faz parte de passagens que dependem de subdivisão ternária e o segundo obedece à métrica simples na reexposição, conforme as figuras seguintes.

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Figura 9a. Similaridade rítmica, compasso [1].

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Figura 9b. Similaridade rítmica, compasso [60].
           
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Figura 9c. Similaridade entre formações rítmicas.


Nos compassos [73] e [74] encontram-se outros exemplos de expansão e modificação motívica conforme mostra a figura seguinte.

Figura 10. Expansão e modificação motívica. (FERNANDEZ, 1968, p. 4).


A extensão cadencial do final da recapitulação para a coda contém o motivo expandido (ritmo e melodia) com os sons distanciados, caracterizando uma fragmentação.

 

 



Figura 11. Expansão e fragmentação motívica, compassos [92]-[94]. (FERNANDEZ, facsimile).

 

Dos compassos [72] ao [79], o contorno delineado pela mão esquerda reafirma a função do motivo de elemento propulsor, em repetições, ritmicamente em contraído e expandido conforme Figura 12.

 

Figura 12. Contração e expansão rítmica, compassos [72]-[74] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).


O motivo é ritmicamente contraído na recapitulação (m.e.) entre os compassos [60] e [71], exercendo a função de ostinato rítmico, base para o segundo tema. Nos compassos [61]-[64] tem seu último som (fá#) repetido (Figura 13.a), nos quatro seguintes é intermediado por oitavas repetidas (Figura 13.b) e nos compassos [68]-[71] é repetido em duas alturas e intercalado por acordes de sétima sem a terça (Figura13.c).

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Figura 13a. Contração rítmica, compasso [60].
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Figura 13b. Contração rítmica, compasso [63].
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Figura 13c. Contração rítmica - acordes de sétima sem terça.

 

A partir do compasso [68] há ênfase no motivo básico ritmicamente contraído, na mão esquerda, priorizando o mi e o lá - relação de quarta justa até o compasso [79], sempre situado na segunda parte do tempo, intercalado por oitavas e acordes de sétima. Contrasta ritmicamente com o contorno melódico desenhado por acordes na mão direita.

Entre os compassos [80]-[92] ocorre um jogo de sonoridades. Os efeitos tímbricos são provocados por trocas de registro entre recorrências do motivo duplicado nos registros médio e agudo, intermediadas por oitavas (m.e.) acordes de sétima (m.d.) nos registros grave e médio. Há alternância entre os materiais do motivo e de parte do segmento B, conforme Figura 14 (compassos [84]-[91]).

 


Figura 14. Alternância motivo básico e segmento B, compassos [84]–[91] (FERNANDEZ, fac-símile).

O motivo básico tem sua seqüência melódica alterada em conexões que preparam a reapresentação do tema, no compasso [4] (Figura 15) e [30], anterior ao início do desenvolvimento.


Figura 15. Motivo modificado - elemento de conexão, compasso [4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

O segundo contorno temático inicia no compasso [15], tem caráter lírico com características de melodia acompanhada e contrasta com o tema inicial.

 


Figura 16. 2o segmento temático, compassos [15]-[22] (FERNANDEZ, fac-símile).


Nas figuras seguintes o primeiro e o segundo contornos temáticos são confrontados.

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Figura 17a.
Comparação entre temas, primeiro tema, compassos[1]-[4].

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Figura 17b. Comparação entre temas, segundo  tema, compassos[15]-[20].


A comparação entre os segmentos iniciais dos dois temas mostra particularidades comuns.


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Figuras 18a. 2o contorno temático, relação 1, motivo básico.
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Figuras 18b. 2o contorno temático, relação 2, motivo básico modificado.

             

Sobre a homogeneidade entre temas, Reti (1951, p.4) esclareceu que “o primeiro e o segundo sujeitos de uma sonata são, [em geral], considerados contrastantes, certamente não idênticos [...]. Na realidade eles são contrastantes na superfície mas idênticos em substância”.  ParaKiefer (1986), existe um sensível contraste entre o segundo e o primeiro temas do Enérgico embora haja reminiscências deste no segundo. Na reexposição, os segmentos A e B do segundo tema são literalmente reapresentados a uma terça abaixo da exposição. O motivo encontra-se contraído ritmicamente em uma figuração (m.e.) ostinato. A reexposição tem características politonais com trabalho sobre mi, ré e fá sustenido conforme compassos [60]-[64] mostrados na Figura 19.

 



Figura 19. Segundo contorno temático, ritmo contraído, compasso [60] (FERNANDEZ, 1968, p. 3).


Nos compassos [65]-[71] o trabalho melódico (m.d.) tem sua continuidade sobre material do segundo fragmento do segmento B modificado sobre a linha da mão esquerda em ostinato. Apesar do contraste entre o primeiro e o segundo tema, o primeiro segmento do segundo caracteriza uma transformação do motivo inicial e o segundo representa uma inversão modificada do segmento B do primeiro sujeito. Os compassos [72]-[80] (Figura 20) caracterizam-se por permutas entre padrões motívicos e os padrões rítmicos l.c, 1.a, 2, 3.a.2 e 3.a.3,e 3, l.c, m.c e 1.d modificados. Acorde de sétima sem a terça encontram-se no contorno para a mão esquerda, com ênfase em fragmentos do segundo tema intercalados por reapresentações do motivo básico ritmicamente contraído.

 

Figura 20. Transformação motívica, compassos [72]-[80] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).


Aspectos da estrutura vertical do Enérgico


No contexto harmônico do Enérgico, os intervalos conversíveis de quarta aumentada e quinta diminuta, sétima maior e segundas menores contidos no motivo básico (Figura 3.a), correspondem à base da estrutura harmônica do Enérgico, esta mesclada por acordes diferenciados com ou sem agregação de notas que contém, via de regra, a sétima, a segunda, a quarta ou a quinta. Contudo, é a sétima que tem a função de suporte harmônico e é fator de unidade no sentido vertical. "As características de um motivo são intervalos e ritmos combinados para produzir um memorável contorno que implica, via de regra, numa harmonia inerente" (SCHOENBERG, 1981, p.9).

O ré, terceiro som do motivo, em suas repetições vem acompanhado no baixo pelo dó sustenido e do dó bequadro (ver Figura 2). As inversões dos intervalos de segunda menor e maior, resultantes desta coincidência vertical são, respectivamente, as sétimas maior e menor. Esta estrutura melódico-harmônica é reiterada no segmento B, vertical e horizontalmente (compassos [2] e [3], Figura 4), em suas recorrências (compassos [6] e [7] e [10]-[12]. Estes últimos caracterizam uma extensão e pontuação cadencial anterior à apresentação tema. Nos compassos [32]-[37] do desenvolvimento, o acorde de sétima faz parte do contorno temático, intensificando a textura nas recorrências do fragmento y (segmento 1) em oitavas (compassos. [1], [5] e [31]).

A estrutura melódico-harmônica baseada em acordes de sétima na primeira posição (m.d.) acompanhados por oitavas (m.e.), é mantida nos compassos [38]-[42], extensão cadencial da pontuação entre as duas partes do desenvolvimento. O pedal de ré que inicia no compasso [38] é mantido até o compasso [58], final do desenvolvimento.

 



Figura 21. Extensão cadencial, compassos [38]-[42] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

 

Na última parte do desenvolvimento, a característica politonal do segmento B do primeiro tema continua presente através do emprego de acordes paralelos de sétima, trabalhados sobre um pedal de ré. A textura é intensificada por uma linha intermediária de quintas e de acordes de sétima com supressão da terça. Nos compassos [8] e [9] (Figura 22), [23]-[25], [49]-[59], [68]-[69] (Figura 13.c) e [75]-[80] (Figura 21) há forte presença destes acordes. Nestas partes ocorrem passagens politonais a exemplo da Figura 23. No compasso [8] estas formações harmônicas configuram-se em uma seqüência descendente sobre cromatismo livre, base para a segunda recorrência do fragmento B do primeiro tema, onde a textura é intensificada por intervalos harmônicos de quartas e quintas aumentadas e diminutas, agregados.

 



Figura 22. Acordes de 7as/intervalos harmônicos agregados, compassos [8] e [9] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

 

Nos compassos [68] e [69], os acordes de sétima (m.e.) encontram-se também em alternância com o motivo básico. Nos compassos [63]-[71] da recapitulação, o compositor utiliza-se da terceira inversão do acorde de sétima com supressão da terça em posição afastada (m.e.), fato este que resulta em uma seqüência de acordes de nona. A transição, entre os compassos [25] ao [29] contém uma figuração de acordes, formada por oitavas, quintas e segundas em (m.d.) seqüências descendentes paralelas com oitavas (m.e.), fragmentos do segundo tema e o motivo modificado. Os acordes com segunda agregada (m.d.) funcionam como suporte harmônico, em ostinato, para fragmentos do segundo tema. Quando movimentados paralelamente com as oitavas (m.e.), servem de base ao motivo modificado. A força destas seqüências reside no fato delas englobarem o segmento B e o motivo básico.

 



Figura 23. Agregados harmônicos, compassos [23]-[28] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

 

Acordes idênticos a estes fazem parte do movimento melódico-harmônico entre os compassos [71]-[77] e [79] e da extensão cadencial do final da recapitulação (compassos [92]-[94]). O contorno vertical está submetido, via de regra, à sétima.

O acorde de nona e outras formações verticais decorrem da agregação de uma ou mais notas, ou são resultantes da coincidência vertical do movimento dos planos horizontais.

Enérgico: macro estrutura

O Enérgico segue os princípios formais do allegro de sonata, apresentando secções de exposição (compassos [1]-[23]), desenvolvimento (compassos [23]-[59]), recapitulação (compassos [59]-[94]) e coda (compasso [95]). Sua textura geral é densa, definida pelo tratamento melódico-harmônico e polifônico, com livre utilização de contraponto. No decorrer das três secções há constantes mudanças de compassos. Na exposição, dos compassos [1] ao [14]), observa-se a alternância das fórmulas 6/♪ e 9/♪. Do compasso [15] até o [29] há alteração da métrica e do andamento, modificação esta preparada pela indicação do rallentando no compasso [11] e definida pela citação "tranqüilo" (compasso [15]), Figura 16, e na passagem de conexão ao desenvolvimento (compasso [30]). A métrica de subdivisão ternária é retomada e mantida até o compasso [58], onde inicia a recapitulação. Esta nova secção retorna à métrica simples, com base nas fórmulas 2/4 e 3/4 que se alternam. A coda final não apresenta indicação métrica nem barra de compasso, mas detém subdivisão simples. Na figura seguinte pode ser visto um esquema geral do Enérgico.

 

Figura 24. Esquema geral do Enérgico.

 

A exposição (compassos [1]-[30]) tem seu primeiro contorno temático motívico apresentado nos quatro primeiros compassos e prioriza os sons lá -ré. Os compassos [10]-[12] completam a primeira parte da exposição. Os compassos seguintes, dois, fazem a conexão entre as partes da exposição e caracterizam a primeira modificação rítmica do motivo (Figura 6). A segunda parte da exposição contém o segundo tema (compassos [15]-[22], Figura 16) e a transição (compassos [23]-[29], Figura 24) para o desenvolvimento. A secção do desenvolvimento tem duas partes: 1a- compassos [31]-[42] e 2a- compassos [43]-[59] com uma extensão cadencial (compassos [38]-[42], Figura 19) entre elas.

A primeira parte da recapitulação (compassos [59]-[73], Figura 19) apresenta material do segundo tema (m.d.) apoiado em repetições do motivo básico, estas intercaladas por sons repetidos e seqüências (compassos [60]-[67]) de acordes de sétima sem terça (Figuras 13.c, 20). A segunda parte (ver Figura 20), caracterizada pela permuta entre padrões motívicos, tem início no ponto de elisão com o término da primeira parte (compasso [73]). Há ênfase no motivo básico ritmicamente diminuído (m.e.), aumentado (d.m.) e modificado (m.d.). A terceira parte (compassos [80]-[94]) apresenta uma maior concentração de trabalho sobre material do primeiro contorno temático. As interrupções do movimento horizontal, provocadas pelas pausas, têm significativa força rítmica e imprimem um caráter definitivamente enérgico e brilhante. Estas características são reiteradas pelo jogo sonoro, resultado da exploração dos timbres grave-médio e médio agudo. A recapitulação termina com uma extensão cadencial de três compassos (parte na Figura 11) que prepara a coda final em termos de dinâmica (ff -pp) e de andamento. Esta coda é caracterizada por contrastes de ritmo, dinâmica, andamento e caráter, com apresentação do segundo contorno temático no registro médio no registro grave do piano e o modelo básico nos registros médio-agudo. A dinâmica indicada para o contorno temático é p-mf-p e para as chamadas do motivo básico é fff com diminuição gradativa até o ppp. A expansão rítmica do motivo, nas duas últimas apresentações auxilia o decrescendo final.

Conclusões

O Enérgico foi construído segundo o princípio composicional da recorrência motívica. Este processo construcional está determinado pela manipulação do motivo básico, apresentado no início deste primeiro movimento da Sonata Breve. O discurso musical adquire impulso no direcionamento melódico ascendente e suspensivo do motivo básico: lá, mi b, ré, projetado a partir da sétima maior, esta adotada como cor tímbrica do contorno melódico-harmônico. O desenvolvimento da composição é decorrente da reprodução dos materiais melódicos, rítmicos e harmônicos, inerentes ao motivo, através de suas recorrência no estado original, modificado e transformado, aos quais se agregam os efeitos promovidos por procedimentos como expansão e contração melódica e rítmica, polirritmias e acentuações. A esta metamorfose motívica aliam-se as diferentes funções que o modelo básico assume como responsável por aspectos de ordem estética: variedade textural, tímbrica e articulações que influem diretamente na expressividade. O motivo básico promove a evolução do movimento, imprimindo suas características na formação estrutural nos diferentes níveis do espaço sonoro.

O Enérgico pode ser situado no limiar entre o tonal porque as funções não estão totalmente descaracterizadas, atonal porque não obedece aos parâmetros tradicionais de movimento e de resolução harmônica e politonal, a exemplo da Figura 19. O delineamento melódico está construído em sólidas bases tonais, mas apoiado em um contorno harmônico livre. A análise mostrou que a ocorrência de acordes de nona e demais agregados está invariavelmente submetida ao acorde de sétima maior com terceira maior ou menor.

A compreensão do texto musical através do processo analítico foi essencial na decodificação do texto musical e com reflexos no nível do desempenho instrumental, tanto no aspecto técnico quanto no musical. São necessários mais estudos para o aprofundamento desta análise.


Referências

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Maria Bernardete Castelan Póvoas