Revista eletrônica de musicologia

Volume XI - Setembro de 2007

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Dahlhaus e a análise de segunda ordem


Antenor Ferreira Corrêa (USP)


Resumo: Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise de segunda ordem, abordagem esboçada pelo musicólogo alemão Carl Dahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seu entendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justifica-se essa empreitada pela disponibilização de conhecimento na disciplina de análise musical, área de estudo indispensável à formação do músico.


Introdução

O musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928-1989) é uma personalidade de grande notoriedade e relevância na história da música. Autor de vastíssima bibliografia (entre estas alguns verbetes para o Grove’s Dictionary) é considerado uma das maiores autoridades dentre os estudiosos que buscaram reunir música e filosofia, e seus escritos têm influenciado músicos e teóricos ao redor do mundo. Embora seja mais conhecido dos brasileiros pelos seus textos em estética,[1] Dahlhaus também realizou aprofundadas pesquisas nas áreas de historiografia, teoria e análise musicais. Um de seus livros mais destacados sobre análise musical é Analysis and Value Judgment (originalmente publicado em 1970), em que Dahlhaus discute acerca da possibilidade de fundamentar a apreciação musical em critérios objetivos, tendo, assim, a análise musical como seu princípio de sustentação. Este livro é dividido em três partes: Premissas, Critérios e Análises. Na primeira parte, Dahlhaus se atem à diferenciação entre julgamentos de valor subjetivos e objetivos. No segundo capítulo, elenca uma série de critérios que podem sustentar um juízo estético. Entre outros, ele discorre sobre princípios formais, diferenciação e integração, analogia e compensação, abundância de relações (temáticas, motívicas, etc) e audibilidade. Na parte final, Dahlhaus oferece uma exemplificação de suas propostas ao elaborar críticas estéticas para algumas obras do repertório, tendo por base sua abordagem analítica.
Nesse trabalho, Dahlhaus mencionou en passant um tipo de abordagem analítica que gostaria de ver empregada na confrontação das obras musicais, uma espécie de hermenêutica da própria análise musical, ou seja, uma análise de segunda ordem. Esta idéia foi apenas esboçada, não merecendo posteriores desdobramentos textuais. Contudo, acredito que por meio da investigação detida de seus escritos e da maneira com que apresentou suas análises musicais, seja possível lograr um maior entendimento dessa proposta. E este é, portanto o objetivo deste trabalho: apresentar o conceito dahlhausiano para análise musical e refletir sobre a mesmo, além de exemplificá-lo com análises realizadas pelo próprio Dahlhaus e verificar suas possíveis aplicações.

Dentre a ampla bibliografia considerada, dois livros constituíram-se como a fundamentação teórica principal: Analysis and Value Judgment, no qual o autor mencionou seu conceito e desenvolveu uma série de análises musicais, e Schoenberg and The New Music, em que a problemática da tradição versus vanguarda é tratada tendo por base, critérios técnicos, estéticos, históricos e poéticos da linguagem musical.

Análise de Segunda Ordem

Uma análise pode comportar, entre outras, finalidades teórica ou estética. Pode ser empregada para sustentar a edificação de um sistema de organização de fenômenos musicais e, também, fundamentar uma apreciação crítica.[2] Dahlhaus conhecia a fundo essas facetas e, além de escrever muito a esse respeito, valeu-se de análises para promover juízos críticos sobre obras do repertório. Também observou que análises realizadas tanto por críticos quanto por músicos consistiam, em sua maior parte, de indicações de graus ou de funções dos acordes. O plano formal era tratado de modo semelhante, havendo apenas uma espécie de relato de seções e regiões tonais exploradas pelo compositor. Estes tipos de abordagens, além de carecer de profundidade, têm pouca utilização prática. Na opinião de Dahlhaus não passavam de tautologias já que “frequentemente, análises musicais ou fragmentos analíticos (em sua maior parte descrições de harmonias e tonalidades) sofrem da obscuridade de suas propostas e consequentemente provocam a suspeita de que são desnecessárias” (DAHLHAUS, 1983, p. 9).

Ao deparar com esses tipos de análises descritivas, percebe-se que estas revelam mais acerca da teoria analítica do que a respeito da própria obra. Isto deve-se ao fato da análise constituir-se de um procedimento taxionômico, em que um dado observado é reportado e/ou classificado segundo um modelo prévio. Isto fez com que Dahlhaus apontasse para a inutilidade desse procedimento, porque uma análise não deveria funcionar como demonstração ou prova de uma teoria nem como tradução para outro idioma de uma particularidade da obra. Argumentava que não bastava apenas isolar e enumerar os acordes, abstraindo-os de elementos rítmicos; outrossim, era preciso que o caráter individual da estrutura e das relações harmônicas fosse “expressamente demonstrado e articulado por uma interpretação da análise: uma análise de segunda ordem” (p. 9. Grifo meu). De outro modo, as análises tornar-se-ão meras aplicações de nomenclaturas ou rotulações “que não dizem nada pois são inobjetivas” (p. 9). Se os elementos observados no plano musical são considerados como fatos ou dados empíricos, deve haver, então, uma interpretação desses dados. Esta hermenêutica da análise estaria a cargo da análise de segunda ordem, preconizada por Dahlhaus, e indicaria a maneira organizacional subjacente ao relacionamento desses fatos, sua forma de integração e conexão, seu contexto e seu modus operandi.

O problema que se apresenta de imediato é saber como realizar essa interpretação da análise. Seria útil, portanto, primeiramente a definição de seus termos. Uma análise harmônica é uma comparação de um fato constatado com um modelo sugerido por alguma teoria. Por teoria entende-se uma proposição para o funcionamento, organização e ordenação das relações existentes nos fatos observados. Nesse sentido, uma teoria da harmonia, ao propor um modelo de ordem para o relacionamento sonoro, é que possibilita a compreensão dos chamados fatos harmônicos e permite que o entendimento dessas relações seja transmitido. No entanto, para a consecução teórica não basta apenas indicar os elementos comuns, mas sim, promover a explicação das possibilidades de combinações feitas destes fenômenos. A harmonia não é uma instituição auto-suficiente, validada em si mesma, ela só tem seus aspectos comunicativo e significativo valorados se estiver amparada por uma teoria que organize e torne inteligíveis os fenômenos harmônicos por ela contemplados.

Imagine-se, por exemplo, uma análise em que foram descritos os graus de um determinado encadeamento harmônico. Uma das possíveis maneiras de prosseguir para um nível interpretativo posterior seria considerar as relações que os acordes mantém entre si e para com o centro tonal, isto é, avaliar sua dimensão sintática. Ao combinar sons de maneira lógica e expressiva, a música liga-se ao aspecto da comunicação, permitindo ser considerada como linguagem, decorrendo dai a possibilidade de ser analisada em termos de seus elementos básicos de construção e estruturação, ou seja, elementos sintáticos.

O relacionamento funcional já é, de fato, conhecido há tempos por aqueles que empregam o método de análise preconizado por Riemann.[3] Nesta teoria os acordes são considerados segundo o tipo de vínculo que mantém para com a tônica. As relações existentes entre as progressões acórdicas, isto é, de acorde para acorde, remontam aos postulados de Rameau no seu tratado de harmonia (1722). A noção de progressão de fundamentais implicava que as notas reais escritas no baixo contínuo não eram as verdadeiras fundamentais dos acordes, pois estes, independentemente de encontrarem-se invertidos ou não, possuíam um baixo (ou nota fundamental natural e racional) subentendido. Este baixo implícito, por seu turno, era o elemento viabilizador das conexões entre os acordes. Esta formulação de Rameau foi por ele mesmo denominada de basse fondamentale, que na visão de Dahlhaus é uma teoria de progressões acórdicas. Note-se a correspondência deste princípio com o cartesianismo, que substituía a ordem real pela racional, ficando a cargo da razão a competência para organizar as sensações. A diferença entre as propostas de Riemann e Rameau é que este se concentrava nas distintas tendências que os acordes têm para progredir (descer ou subir uma quinta, por exemplo), enquanto aquele definia estados ou estatutos harmônicos das tríades (T-D-S).
Tomando-se como exemplo o Prelúdio n°. 1 (em dó maior) do Cravo bem Temperado de Bach, observa-se que o mesmo possui uma concatenação entre acordes baseada, majoritariamente, em graus conjuntos diatônicos. A concepção harmônica dessa movimentação, entretanto, é funcional, pois sempre faz referência à tônica principal da obra (dó maior). Mesmo em passagens com ligeiros afastamentos da tonalidade inicial, em que ocorrem tonicizações no nível estrutural secundário (comp. 6, 10 e 12), a idéia básica do relacionamento harmônico continua, encontrando sua fundamentação no ciclo de quintas.

No relacionamento acórdico, por sua vez, as conexões ocorrem a partir da movimentação linear de entidade para entidade envolvidas na passagem em questão. O cromatismo é o agente de integração desse artifício, já que a condução acórdica não implica a primazia de algum pólo de atração. Os Prelúdios de números 2 e 4 do opus 28 de Chopin são exemplos do relacionamento acórdico, cuja movimentação é realizada, predominantemente, por meio de cromatismos. No Exemplo 2 é mostrada uma progressão baseada no relacionamento acórdico. Trata-se de uma sucessão iniciada em um acorde de F com sétima no baixo cuja movimentação é realizada, predominantemente, por meio de cromatismos, fazendo com que o sentimento tonal, ou seja, a indução para um pólo de atração, seja enfraquecido. Nota-se que as harmonias usadas não pertencem exclusivamente ao campo harmônico de F, este é estendido pelo acréscimo de acordes de outras regiões tonais.


Exemplo 1: J. S. Bach, Cravo Bem Temperado, Prelúdio n. 1 em dó maior, compassos 5-19 (verticalização da movimentação linear).



Exemplo. 2: Camargo Guarnieri, Sonata n. 3 para violoncelo e piano, II movimento, compassos 16-28 (parte do piano).

A partir, principalmente, do pós-romantismo, o relacionamento funcional foi sendo substituído pelo acórdico. Não era interesse principal dos compositores manter vínculos com um único pólo tonal, mas sim, expandir o discurso harmônico por regiões inusitadas, ou seja, explorar tonalidades cada vez mais afastadas do ponto de partida. Em médio prazo, esta tendência conduziria à fragmentação do sistema tonal e impulsionaria o engendramento de diversos artifícios composicionais, como pandiatonicismo; tonalidades expandida, suspensa e flutuante; atonalidade e pantonalidade; entre outros.[4] Essa situação demandaria a criação de outras proposições analíticas para explicar as relações entre as entidades acórdicas, pois estas não mais comportavam explicações nos modelos teóricos vigentes. Uma questão a ser considerada seria, por exemplo, que princípio de base permite a articulação entre entidades acórdicas ou aglomerados sonoros envolvidos no discurso musical pós-tonal? Qual a lógica, ou psicológica, subjacente a essas progressões?
Sobre esse estado de coisas, Dahlhaus verifica que:

Na Música Nova do século XX, a idéia de processo harmônico foi universalmente degradada em favor da noção de sistema harmônico, mas sem abolir a relação dialética existente entre sistema e processo. A variação de ênfase é tão claramente aparente no dodecafonismo de Schoenberg e, mais especialmente, Webern quanto é nos métodos de camadas ou de estratificação desenvolvidos por Stravinsky. (DAHLHAUS, 1990, p. 69).  

Enquanto desenvolvimento continuado, o discurso harmônico consistiria de um conjunto de etapas ordenadas com um objetivo a ser atingido: a consecução tonal. Além disso, compreendido historicamente, isto é, no conjunto seqüencial do fluxo do pensamento musical, a harmonia deixa transparecer a concomitância entre o pensamento de época e as modificações ocorridas no decurso temporal. A passagem de um estágio para outro (por exemplo, no acolhimento de dissonâncias ou uso funcional renovado) é entendida linearmente e não de forma abrupta. Esse percurso teve no cromatismo seu principal elemento dinâmico, expressivo, integrador e impulsionador. Essa condição processual, no entanto, foi substituída pela noção mais perene e atemporal de um conjunto de elementos interconectados por atributos quaisquer, um sistema de interações.[5] A dinâmica implícita na resolução de tensões, pelos movimentos de sensível, é suprimida nos sistemas não hierárquicos como o serial, em que as doze notas da gama temperada são similares no que se refere a primazias funcionais. No discurso pós-tonal, de um modo geral, a propensão dinâmica dos cromatismos é nivelada, anulando a expectativa gerada pela resolução das tensões cromáticas. Dahlhaus aponta que isto é válido tanto para Stravinsky quanto para Schoenberg, pois

Enquanto a tensão interna do que nós chamamos de harmonia estática stravinskyana é devido a esse elemento dinâmico suprimido, a harmonia de Schoenberg (como a sistematização da técnica dodecafônica pode ser interpretada) é conseqüência [...] do cromatismo do Tristão, e similarmente representa um fenômeno de neutralização. A conexão entre acordes, em que um segundo acorde apresenta as notas da escala cromática ausentes no primeiro, está baseada sobre o princípio da complementaridade, a adição de partes para compor um todo, e também, sobre o movimento de sensível nas vozes, ou seja, sobre um elemento expressivo e dinâmico (DAHLHAUS, 1990, p. 69).

Dahlhaus acrescenta ser difícil identificar o momento em que esse aspecto dinâmico do movimento de sensível, que dominou inicialmente esse tipo de harmonia baseada em complementaridade, foi relegado em favor de relações acórdicas complementares subjetivas. “O cromatismo dinâmico-processivo é substituído por uma complementaridade estática-estrutural tais como as existentes entre as notas ou complexo de notas de uma série dodecafônica: complementaridade cuja característica estética essencial é poder, em princípio, ser revertida no tempo” (p. 70). A possibilidade desta reversão no tempo deve-se ao fato de que não há uma direcionalidade implícita nos agregados “atonais”como há no discurso tonal.

É possível notar que Dahlhaus não acreditava no retorno da forma processual:

Uma posterior objeção à tentativa de reviver uma forma dinâmica da harmonia é o simples fato de que a atmosfera de a-historicidade [...] é unida à tendência de considerar todas as coisas como utilizáveis e de jovialmente empilhar camada sobre camada de um todo heterogêneo constituído de diferentes fragmentos estilísticos e citações. O resultado virtualmente inevitável disto tudo é um efeito que em Stravinsky foi uma técnica precisamente calculada que claramente estabeleceu suposições estéticas designadas para neutralizar o elemento processual, mas que no presente geralmente parece não ser mais que um cego agarramento a uma lata de biscoitos do passado (p. 70).

E ao mesmo tempo admitia a possibilidade dos novos complexos acórdicos serem compreendidos intelectual e perceptualmente:

Certamente, se desejamos fazer justiça estética ao complexo de técnicas de superposição na Sagração da Primavera [...], devemos não falhar ao apreciar que a neutralização da funcionalidade tonal dos acordes não deve ser entendida como determinadas (um fato auto-contido que nós temos que aceitar pelo que ele é), mas como um procedimento que pode ser compreendido. Quando uma tônica é mutilada funcionalmente por ter uma dominante colocada sobre ela, o ouvinte deve tornar-se consciente que isto é o resultado de um conflito e não apenas um fato mudo. (p. 69).

Essa articulação via complementaridade é demonstrada no exemplo a seguir (Ex. 3).

 



Exemplo 3. Webern, Gleich und Gleich. Op. 12, n. 4, compasso 18.

Fazendo uso de suas formações arquetípicas, Webern apresenta três agregados sonoros (clave de sol, mão direita do piano) que juntos compõe-se de nove notas do total cromático. As três notas ausentes são articuladas na voz mais grave (clave de fá, mão esquerda do piano), completando o total cromático. Percebe-se então, que diferentemente da teoria funcional, na qual os acordes distinguiam-se e relacionavam-se pelas funções que cumpriam (T-S-D), nas concepções sistêmicas (sobretudo após a emancipação da dissonância e conseqüente neutralização do dinamismo implícito no cromatismo) as relações passam a ser de complementaridade e não dialéticas, em que a formação posterior complementa a anterior ao invés de se opor funcionalmente. Nota-se, também, que a abordagem de Dahlhaus está sempre atrelada ao entendimento histórico, conforme tratado a seguir.

Análise e Contexto Histórico

Espécie de consenso entre os biógrafos de Dahlhaus é a influência que ele recebeu de duas escolas do pensamento histórico: “os historiadores estruturalistas franceses ligados a Fernand Braudel e a teoria crítica do círculo de Frankfurt” (Robinson, 2000). De acordo com Robinson, dos estruturalistas Dahlhaus formou sua concepção de história enquanto sucessão de complexas interações de estratos, enquanto teria emprestado da escola de Frankfurt as imagens de constelação e de campo de força como princípios para a história escrita. Desta escola teria herdado, também, sua atitude analítica,

que não era empregada primariamente para revelar conexões musicais ocultas em uma obra, mas para sondar a história sedimentada dentro dela. Brilhante analista, Dahlhaus preferia não apresentar os passos de suas análises, nem mesmo os resultados, mas as conclusões históricas advindas destas descobertas (Robinson, 2000).

Este vínculo absoluto com a historicidade pode ser demonstrado em várias das análises feitas por Dahlhaus, porém, a seguir tomarei como exemplo a análise do Quarteto de Cordas n. 3, opus 30, de Schoenberg.
Dahlhaus, de saída, apresenta uma questão estética: o conceito schoenberguiano de analogia. De acordo com esta idéia, todas as partes de uma composição deveriam estar igualmente desenvolvidas, isto é, nenhum dos parâmetros do discurso musical devia apresentar menor cuidado na sua composição. Os elementos temáticos, por exemplo, não receberiam um grau maior de elaboração em detrimento dos elementos rítmicos. Schoenberg, no entanto, era acusado de contraria o seu próprio princípio, pois os fatores intervalares da técnica serial mereciam maior importância que os componentes rítmicos, dinâmicos e formais. Com isso, as composições dodecafônicas acabavam por apresentar um ritmo “tonal” ao lado de formas tradicionais.

No Quarteto n. 3, Schoenberg faz uso da forma sonata em ambiente atonal, o que na visão de Dahlhaus “é um desejo historicamente atrasado que não logrará êxito, pois sua substância (tonalidade) foi desintegrada, e a marca da esterilidade histórica ou filosófica é o fracasso estético” (DAHLHAUS, 1983, p.83). Ao encontro desse juízo, Dahlhaus oferece uma descrição dos procedimentos técnicos utilizados por Schoenberg, descrevendo a série, suas inversões e retrogradações, bem como a maneira como estão associados às suas respectivas células rítmicas, para ao final concluir:

O princípio básico da forma sonata restaurado pelo dodecafonismo – após o declínio da disposição tonal – é o desenvolvimento técnico, a elaboração temática, que no Terceiro Quarteto de Cordas, contudo, está exposto ao criticismo por ser tautológico. Dodecafonismo, a rede de inversões, transposições e fragmentações da série – o criticismo continua – é em si mesmo nada mais que uma conseqüência extrema (e historicamente, o último passo) da elaboração temática que na composição com 12 sons, na qual cada nota é deduzida da série, estende-se no movimento inteiro ao invés de restringir-se à parte do desenvolvimento da exposição e ao desenvolvimento, enquanto seção em si.  Elaboração temática, como Theodor Adorno expressava, é “pushed back into the material”;[6] porque a “deformação” do material geralmente consiste de elaborações temáticas a todo o momento, elaboração temática como uma técnica específica da composição torna-se uma duplicação supérflua. A forma sonata, o criticismo continua, é desprovida de substância, porque a única substância deixada após a dissolução da tonalidade, ou seja, a elaboração temática, é anulada pela técnica serial propriamente dita – antes do ato composicional – e não pode, assim, ser constitutiva de uma forma particular. (DAHLHAUS, 1983, p. 85).

É possível perceber que o teor das preocupações de Dahlhaus antes de essencialmente técnicos, são históricos, buscando avaliar não só os artifícios composicionais empregados pelo compositor, mas, sobretudo, a correspondência entre esses elementos e a época de onde surgiram. Do mesmo modo que é válido indagar a respeito dos motivos que levaram Ravel a compor uma valsa em 1919, é lícito questionar o uso das formas tradicionais em ambientes atonais. E esse tipo de questionamento é uma constante nas análises de Dahlhaus.

Considerações Finais

O intuito deste trabalho foi oferecer uma abordagem preliminar à proposta de análise de segunda ordem. Esta idéia vem da repulsa, por parte de Dahlhaus, às análises musicais de cunho meramente descritivo, chamadas por ele de tautológicas; assim, na tentativa de dar um passo adiante, preconiza uma interpretação da análise.

A observação dos modos de relacionamento acórdico segundo sua sintaxe serviu como uma maneira de dar prosseguimento às análises. Neste sentido, a explanação sobre a substituição ocorrida, principalmente no século XX, da concepção harmônica processual pela sistêmica mereceu uma apreciação mais detida. A seguir, a descrição sumária do atrelamento histórico intrínseco ao discurso analítico de Dahlhaus, também se apresentou como um importante material para ampliar o entendimento musical ao encontro do compreensão da hermenêutica da análise, ou seja, da análise de segunda ordem.

Notas


[1] Talvez isto se deva ao fato de que o único livro de Dahlhaus traduzido para o idioma português seja, justamente, um livro de estética: Estética Musical. Lisboa: Edições 70, 1983.

[2] Uma teoria pode ser pré-condição (é necessário que haja um sistema teórico que norteie a realização de uma análise) e, também, resultado de análises musicais (quando um modelo teórico é obtido pelas deduções efetivadas a partir da análise direta das obras).

[3] Sobre uma análise mais detida do conceito de função ver Função e refuncionalização em CORRÊA (2006).

[4] Sobre uma conceituação mais detida sobre esses procedimentos ver Estruturações harmônicas pós-tonais (2006), capítulo 5.

[5] O acorde-centro de Scriabin é um exemplo deste tipo de pensamento harmônico.

[6] Redundar forçosamente no material (composicional).


Referências

CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós-tonais. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

DAHLHAUS, Carl. Analysis and value judgment. Trad. Siegmund Levarie. New York: Pendragon Press, 1983.

_____ Che cos’è la musica?. Trad. Angelo Bozzo. Bologna: Sociedade Editrice IL Mulino, 1988.

_____ Estética musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991.

_____ Fundamentos de la historia de la música. Trad. Nélida Machain.Barcelona: Gedisa, 2003.

_____ “Harmony”. In:SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music and musicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 8, p.175-188.

_____ Schoenberg and the new music. Trad. Derrick Puffett e Alfred Clayton. New York: Cambridge University Press, 1990.

_____ “Tonality”. In:SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music and musicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 19, p. 51-55.
ROBINSON, J. Bradford. “Carl Dahlhaus”. Grove Music Online. 2000. Disponível em: <www.grovemusic.com>

 

 

 

 

 

 

 

Antenor Ferreira Corrêa