Departamento de Artes da UFPr Revista Eletrônica de Musicologia Vol. 1.1/Setembro de 1996 Home Page em Português English version
UMA TABLATURA PARA SALTÉRIO DO SÉCULO XIXRogério Budasz
I. Introdução
Geralmente aceito como o primeiro a demonstrar preocupações com o registro historiográfico na região hoje compreendida pelo Estado do Paraná, Antônio Vieira dos Santos (1) era na verdade um grande curioso. Escreveu obras no campo da genealogia e lingüística, desempenhou funções políticas e religiosas e foi um dos introdutores do cultivo da erva-mate na região.
Além disso, suas memórias revelam ainda o interesse pela música, que teria tomado impulso em 1805, quando passou a receber lições de saltério de um certo Manuel Francisco Morato, em Paranaguá (2). Entre as obras de sua biblioteca figurava já em 1823 um "caderno de marchas, minuetes e contradanças do saltério." (3) Também Francisco Negrão, na Genealogia Paranaense, afirmou que o cronista teria escrito um estudo sobre o ensino do saltério, de que era exímio executor musical (4). Partindo destas informações localizamos em abril de 1994 nos arquivos do Círculo de Estudos Bandeirantes, (5) em Curitiba, um códice manuscrito de sua autoria, contendo grande número de peças musicais de gêneros variados em tablatura para saltério. Constitui-se esta obra na mais antiga coleção de música não religiosa encontrada no Estado do Paraná e, em nível nacional, na maior e mais variada da primeira metade do século XIX. Trata-se de um documento fundamental para o estudo da música popular e de salão no Brasil e em Portugal de fins do século XVIII a meados do XIX, um verdadeiro catálogo do que se fazia em matéria de música nos salões da colônia.
II. O códice
O códice manuscrito Cifr[as de música para] s[altério] compõe-se de 114 páginas em formato oblongo, medindo 31,5 x 21,2 cm. Parece ter sido escrito em Paranaguá ou Morretes durante a primeira metade do século XIX, encontrando-se atualmente sob a guarda do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba. Embora a página de rosto onde constaria o nome do autor encontre-se mutilada, podemos identificá-lo como sendo Antônio Vieira dos Santos (6). Isso devido a uma série de razões, como a caligrafia e o tipo de papel utilizados, idênticos aos de outras de suas obras, além do já citado comentário de Francisco Negrão.
FIG. 1: Antonio Vieira dos Santos, Cifr[as de música para] s[altério], p. 1.
O quadro seguinte fornece uma visão geral da estrutura do manuscrito e distribuição das obras:
PÁGINA CONTEÚDO Pág. de rosto
Título, autor (mutilada)
Idem, verso
Advertências dos sinais que se usam na cifra (mutilada)
1
Descrição do instrumento, ilustração
2
Encordoamento e afinação
3 - 4
Salterio (introdução)
5 - 7
Tons naturais do saltério, afinação, entoação, ajuntação das vozes.
8
Modo de afinar a viola pelo saltério
8
1 Prelúdio
11 - 26
23 Marchas
27 - 29
9 Retiradas
29 - 30
4 Zabumbas
30 - 31
3 Séries Amáveis
32 - 67
53 Minuetes
68
1 Miudinho
68
1 Composição
69 - 72
2 Tocatas
72 - 73
1 Giga
74 - 77
4 Adagios
77
1 Modinha
78
1 Solo Inglês
78
1 Turel
78 - 79
3 Cotilhões
79 - 80
3 Valsas
80 - 85
19 Contradanças
86 - 87
8 Modinhas
87
1 Cantiga ou Hino
87
1 Hino nacional
88 - 90
5 Lundus
90
1 Baiana
90
1 Tonta
91 - 92
1 Chula ponteada
92 - 93
1 Desterro
93 - 95
7 Tiranas
95
1 Vilão
95
1 Fandanguilho espanhol
95
1 Chico do Rio
96
1 Recortado
96
1 Furrundu
96
1 Anu
96
1 Batuque
97 - 98
2 Repiques
98
1 Miudinho
98
1 Bitu
99
1 Lundu
99
1 Modinha
99
1 Hino
99
1 Composta (Comporta?)
[109-111]
Índice
[112]
Nomes de varios toques e modinhas (?) brasileiras
O conteúdo do códice, que totaliza 171 músicas, pode ser dividido em dois grupos principais:
III. Saltério, cítara ou dulcimer?
Há séculos e sob diversas formas empregado na música tradicional de povos asiáticos e europeus, o saltério conheceu grande popularidade também no âmbito da música culta européia. Foi instrumento preferido dos diletantes durante boa parte do século XVIII. Talvez porque, segundo Mersenne, "aprende-se a tocá-lo num espaço de uma ou duas horas", ou então, citando o mesmo tratadista, porque é um instrumento de sonoridade "muito agradável", tanto que "poderia ter-se a mesma ou maior satisfação dele do que a obtida com a espineta ou a harpa, se se encontrasse alguém que o tocasse com tanta perícia como a com que o cravo é tocado."(7) O saltério despertou o interesse de compositores como Vivaldi (Giustino, 1729), Jomelli (sinfonia para saltério, violinos e baixo-contínuo) e outros, mas praticamente desapareceu do cenário antes da virada do século.
Quanto à difusão do instrumento na península ibérica, a existência de obras portuguesas e espanholas para saltério, tanto no campo da música erudita como na de salão, demonstra que o instrumento gozava de uma importância razoável. Entre os compositores portugueses e espanhóis que incluiram partes de saltério em obras religiosas e operísticas, destacam-se Francisco Antonio de Almeida (Te Deum, 17__: Venerandum tuum verum), Antonio Teixeira (As guerras do alecrim e mangerona, 1737: aria Não posso, ó Sevadilha), Antonio Soler (villancico Ciego y Lazarillo, 1762) e Blas de Laserna (Los amantes chasqueados, 1779).
Numa das raras informações a respeito do saltério no Brasil colonial, Cunha Mattos narra em 1824 (8) que, na província de Goiás,
Algumas senhoras cantam soffrivelmente e tocam psalterio, citharas, guitarras e violas.
A despeito desta escassez de informações, existem indícios de que o saltério desempenhou um papel importante na música brasileira durante o período colonial. Uma amostra de saltério fabricado no Brasil em fins do século XVIII pode ser vista no museu da Escola Nacional de Música da UFRJ , com a seguinte informação de procedência: Antonio Miz. S. Tiago, o fez no Castello do Rio de Janeiro, ano de 1767. (9) Como evidência da popularidade dos saltérios deste construtor, também o Museu da Música de Lisboa e o Museu Martins Sarmento, em Guimarães, possuem instrumentos de sua autoria, datados respectivamente de 1767 e 1762.
O catálogo do museu da Escola de Música da UFRJ classifica o instrumento de Antonio Martins [?] Santiago como "cítara". Confusões deste tipo são comuns e embora Cunha Mattos tenha-se referido ao saltério e à cítara como instrumentos diversos, o termo parece ter sido usado para designar tanto instrumentos da família do cittern (que originaria a guitarra portuguesa) como do saltério. Mário de Andrade, no Dicionário musical brasileiro (10) apoia em parte esta tese, classificando o saltério como uma espécie de cítara:
CÍTARA (s.f.) - 1. Família de instrumentos de cordas pinçadas com os dedos ou plectros, ou percutidas com vaquetas ou martelos. A caixa de ressonância das cítaras pode ter formatos diversos como um tubo (V. Valiha), retângulo (V. Koto), trapézio (V. Saltério, Santir) ou triângulo (V. Medio canún), com orifício para saída do som (V. Harpa eólia) ou com uma cabaça acoplada para aumentar a reverberação. As cordas, em geral, acompanham todo o comprimento da caixa de ressonância.
É curioso observar que a cítara não é quase nunca referida como de existência brasileira pelos nossos cronistas ou viajantes coloniais. No entanto, Lopes Gama (citado em Pereira da Costa, Folclore pernambucano, RIHGB, 1908, p.221), cronista pernambucano muito realista e exato, se refere a ela e a dá como de uso bem generalizado, pelo menos em Pernambuco, pois lá a cítara servia para acompanhar o coco, o sabão, a comporta, os cotilhões e o lundum chorado.
A que tipo de cítara, dentre os citados no verbete, referia-se Lopes Gama é informação que Mário de Andrade não fornece.
O fato é que tanto o instrumento descrito por Vieira dos Santos como o existente no museu da UFRJ apresentam mais afinidades com a família do dulcimer anglo-saxão e hackbrett germânico do que com o psaltery, ou psalterium medievais. Lembramos ainda que, se no inglês e no alemão dulcimer e hackbrett referem-se a instrumentos diversos do psaltery, ou psalterium, esta diferenciação não existe na língua portuguesa, que utiliza o termo "saltério" em ambos os casos. Distingüem-se os dois grupos principalmente pela existência, nos primeiros, de duas fileiras de cavaletes e de um sistema de encordoamento cruzado, permitindo que as cordas sejam percutidas com o auxílio de baquetas ou marteletes, sendo esta a forma usual de execução. Já que o uso destes acessórios não é mencionado no manuscrito, pode-se pensar na técnica de pulsar as cordas com os dedos, semelhante à do psaltery. Esta possibilidade está em harmonia com as observações de Minguet e Yrol (11) referentes à maneira de se tocar o psalterio:
Con la mano derecha siempre se ha de procurar herir, o tañer las cuerdas, que son de los signos que pertenecen à la dicha mano, y con la izquierda los que corresponden à ella.
Golpes sencillos. Pongamos por exemplo, se han de tañer Alamire grave, y Alamire agudo; el grave toca à la mano derecha con el dedo indice, y el agudo à la izquierda con su dedo indice [...]
Consonancias. Se han de tañer, supongamos, el Elami agudo, y Csolfaut agudo, los dos à un tiempo; el Elami con el dedo indice, y el Csolfaut con el pulgar de la dicha mano [...]
O instrumento ali apresentado também assemelha-se mais ao dulcimer do que ao psaltery.
De qualquer forma, pelo menos no caso do saltério ibérico, existem evidências de que as cordas poderiam ser pulsadas com os dedos ou percutidas com martelos.
Sobre a difusão destas duas técnicas, Beryl Kenyon de Pascual esclarece que, "em termos gerais, se pode dizer que nos séculos XVII e XVIII a forma ponteada predominou no sul da Europa e a forma percutida no norte." (12) Para vários lexicógrafos portugueses e brasileiros, entretanto, a técnica básica do instrumento envolvia a percussão das cordas:
VIEIRA, Ernesto. Diccionario musical. Lisboa, 1899. [p. 432] Psalterio, s.m. Instrumento de cordas metallicas, percutidas, composto de uma caixa aproximadamente triangular, sobre cujo tampo se estendem as cordas. [...]
Na Europa encontram-se vestigios do psalterio desde o seculo IX, tendo então seis a doze cordas. No seculo XII foi aperfeiçoado pelos modelos arabes e o numero das suas cordas augmentou atè trinta e duas.
Compunha-se então de uma caixa em forma de um triangulo troncado no vertice, tendo uma, duas ou mais aberturas circulares para facilitarem a resonancia. Chamava-se-lhe tambem segundo as dimensões, canon e mediocanon pela analogia com o qanon dos arabes.
(p.433) A principio encostava-se ao peito segurando-o com os braços emquanto as mãos feriam as cordas, mas tendo depois augmentado muito no tamanho, era assente sobre uma mesa, podendo então o tocador percutil-o com duas baquetas. Chamavam-lhe n'este caso tympano ou cymbalo - em italiano cembalo - d'onde derivou o clavicembalo ou cravo. Apezar d'este ultimo instrumento, e mais do que elle o piano, ter inutilisado o psalterio, este era ainda ha poucos annos bastante conhecido no nosso paiz, e mesmo hoje ainda ha em Lisboa quem o saiba tocar. [...]
NEWTON, Isaac. Dicionario musical. Maceió, 1904. [p. 232] Psalterio - Instrumento antiquissimo, de madeira e cordas de metal, que se tocava com as unhas do index e do pollegar. [...]
Modernamente é um instrumento de forma triangular, de treze ordens de cordas, umas de aço e outras de latão, que se toca com uma baqueta.
No entanto, uma análise da escrita musical de Vieira dos Santos leva-nos a conclusões diferentes acerca da técnica de execução. São comuns os acordes de três, quatro e até cinco notas, o que torna ilógico e quase impraticável o uso de duas baquetas, mesmo admitindo-se o arpejamento. A forma de execução mais apropriada é a ponteada, conforme exposta por Minguet e Yrol, utilizando especialmente os dedos polegares e indicadores, talvez com o auxílio de dedeiras.
IV. Paralelos
Dada a presença maciça no manuscrito de músicas de origem portuguesa, a possibilidade de consulta direta a fontes primárias em Portugal, possibilitada por uma bolsa de investigação concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, contribuiu de forma notável para o desenvolvimento da investigação. Vários paralelos puderam então ser traçados entre peças do manuscrito e obras portuguesas e brasileiras dos séculos XVIII e XIX. Alistamos a seguir os mais destacados:
|
|
MS p. 22 Marcha Francesa |
"A Marselhesa". |
MS p. 26 Minuete da Rosinha |
RIBEIRO, Nova Arte de Viola, Lisboa, 1789. MM 4504. Lisboa, Bibl. Nacional |
MS p. 27 Minuete Contra Rosinha |
RIBEIRO, Nova Arte de Viola, Lisboa, 1789. MM 4504. Lisboa, Bibl. Nacional |
MS p. 32 Minuete da Corte |
LEITE, Estudo de Guitarra, Porto, 1796. MM 44, Lisboa, Bibl. Nacional. |
MS p. 62 Minuete afandangado |
MM 4178, Lisboa, Bibl. Nacional |
MS p. 62 Minuete da Saudade |
LEITE, Estudo de Guitarra, Porto, 1796. MM 4504, Lisboa, Bibl. Nacional. |
MS p. 63 Minuete da Enviada |
LEITE, Estudo de Guitarra, Porto, 1796. MM 4460, Lisboa, Bibl. Nacional. |
Solo Inglês MS p. 78 |
NEVES. Cancioneiro de Músicas Populares, Porto, 1895. |
Modinha de J. Teixeira MS p. 86 |
Modinhas do Brazil, Lisboa, Bibl. da Ajuda, MS 54-X-37/27-55. |
MS p. 90 Lundum de Marruá |
Landum de Monrois, MM 4473, Lisboa, B .N. Landum do Marruá, MM 4460, Lisboa, B. N. |
MS p. 99 Modinha |
SPIX & MARTIUS. Reise in Brasilien, München, 1823-1831. |
Na seqüência, confrontamos as versões de duas das modinhas citadas:
Vieira dos Santos (p. 36, 3ª estrofe) |
Modinhas do Brazil(p. 15v-16) (13) |
gosta dos meus ais que eles são saudosos dar-te não posso mais. |
gosta dos meus ais mas eles me cansam eu não posso mais. |
|
|
Antes de te conhecer Agora que vi teus encantos Sei suspirar sei morrer |
Antes de te conhecer; Mas depois que vi teus olhos Sei suspirar, sei morrer. |
Embora em ambos os casos a música seja diferente, o texto (que no primeiro exemplo apresenta em Vieira dos Santos duas estrofes a mais) evidentemente possui origem comum.
Notável é a existência no códice de uma Marcha dos Encantos de Medéia, que pode tratar-se de fragmento da música de Antônio Teixeira para a ópera Os Encantos de Medéia de Antônio José da Silva, o "Judeu", estreada em 1735. Destacamos ainda a presença de um Hino Nacional, embora sem relação com o de Francisco Manuel da Silva, e do mais antigo registro do Bitu de que se tem notícia.
V. A música
Vieira dos Santos utiliza uma tablatura lida em sentido vertical, dividida em quatro colunas, uma para cada um dos quatro grupos de cordas do instrumento, representadas por números. Números horizontalmente em um mesmo nível representam acordes. A seqüência dos números não corresponde à das alturas dos sons, mas à disposição das cordas do instrumento:
EX. 1: Representação em tablatura da extensão do instrumento
EX. 2: Transcrição do exemplo anterior
EX. 3: Afinação do instrumento
EX. 4: Tablatura de Vem cá, Bitú
EX. 5: Transcrição do exemplo anterior
A tablatura não apresenta o elemento rítmico de forma precisa, limitando-se a indicações verbais do tipo devagar, corrida, apressado e algumas barras horizontais anotadas por vezes de forma incoerente. Mesmo reconhecendo que a exatidão é impossível, em alguns casos a comparação com outras versões existentes ou peças de gênero similar pode ajudar-nos a estabelecer valores rítmicos aproximados. O trabalho de restauração pode então ser realizado em diversos níveis, como se tentará demonstrar em seguida.
Totalizando 53 números, os Minuetes constituem a forma
musical mais expressivamente representada no manuscrito, o que
reflete sua primazia nos salões do reino e primeiro
império. O já citado
Minuete da
Corte (15)
pertence a um grupo de obras das quais
dispomos de versões alternativas em outras fontes. Pode-se,
por exemplo, a partir de uma comparação entre a
versão apresentada no Estudo de Guitarra de
Antônio da Silva Leite e a de Vieira dos Santos, suprir o
ritmo a esta última.
É este também o caso do
Solo
Inglês , do qual localizamos uma
versão no Cancioneiro de músicas populares de
César das Neves, publicado no Porto entre 1893 e 1898.
Diversos relatos do início do século XX atestam a
popularidade do Solo Inglês, que era dançado
com toda a etiqueta, de calção e cabeleira empoada à século XVIII, com sapatinhos de cetim, nas ocasiões mais solenes. Era realmente admirável pela elegância, destreza e perfeição de atitudes e movimentos. (16)
César da Neves apresenta, além da versão musical, uma coreografia completa desta dança, afirmando que
esteve muito em voga no principio d'este seculo [XIX], tanto nos salões aristocratas como nas reuniões burguezas e de pessoas bem educadas, e tambem nos botequins dos portos maritimos, onde havia musicata. Quem não dançasse, ou pelo menos não presenceasse com attenção e silencio, a dança do solo inglez, era censurado por todos como pessoa grosseira e indigna de entrar n'uma sala. É dança d'uma só pessoa, homem ou senhora. Nos theatros as bailarinas, nos circos os clows e os gymnastas, arrancavam applausos enthusiastas quando dançavam com pericia o solo inglez, ao qual muitas vezes juntavam um passo novo; ainda hoje não ha artista de theatro ou circo que não baile mais ou menos mal o solo inglez, mas é raro o que o execute com o rigor, aprumo e graça de nossos antepassados. Os clows dançam-no frequentes vezes com uma garrafa na mão.
Em outras obras a restauração pode tomar como
base a comparação com peças de mesmo
gênero e com fortes elementos de
identificação, como estruturas melódicas
semelhantes. O 1º Lundu
da Bahia , por exemplo, pode seguir a
figuração de semicolcheias em compasso 2/4,
característica de vários lundus instrumentais do
século XIX, entre eles o Landum recolhido por Spix e
Martius. Se aplicarmos certos padrões ali observados a
estruturas paralelas em Vieira dos Santos obtemos o seguinte
resultado, dentre vários possíveis:
Num terceiro grupo de obras valemo-nos apenas da comparação com peças de mesmo gênero, sem maiores elementos de identificação. O problema é que, em fontes de fins do século XVIII a início do XX, encontramos diferentes possibilidades de figurações rítmicas para um mesmo tipo de dança ou canção, tornando-se difícil precisar qual destas pode servir de modelo rítmico à peça a ser restaurada. De qualquer forma são úteis as informações referentes ao tempo, andamento e estrutura das obras.
Finalmente, existem aquelas obras das quais não localizamos paralelos. De algumas só restaram informações verbais, como as encontradas em relatos de cronistas e viajantes. Outras caíram no completo esquecimento.
A transcrição do conteúdo do códice e a localização de novas fontes possibilitará a correção de eventuais falhas, a restauração de novas peças e o aprofundamento da análise. Destacando a importância deste último aspecto, notamos, através das comparações acima mencionadas, um certo processo de simplificação em algumas músicas. Reduzidas às vezes a uma linha melódica em terças paralelas, algumas destas peças lembram certas práticas musicais características da música popular, como o canto em fabordão, ou alguns toques de viola. O conteúdo musical do códice parece constituir-se assim num elo entre a música de salão e muitos gêneros populares, e o prosseguimento dos estudos contribuirá para a melhor compreensão das origens e transformações de muitos dos elementos formadores da música brasileira.
(1) No Breve rezumo das memorias mais notaveis acontecidas desde o anno de 1797 ate 1827, Vieira dos Santos relata que nasceu no Porto em 12 de dezembro de 1784. Em 1797 emigrou para o Brasil e, após passar alguns meses no Rio de Janeiro aportou em Paranaguá em novembro de 1798. Em 1803 esteve na Bahia e, em várias ocasiões retornou ao Rio de Janeiro Faleceu em Morretes, PR, em 1854. (retorna)
(2) Breve rezumo [...] , p. 6: "Em 16 de maio de 1805 Quinta fr.a principiei a aprender a tocar salterio com Mel Fran.co Morato. (retorna)
(3) Breve rezumo [...] , p. 264. (retorna)
(4) Vol. III, p. 47. (retorna)
(5) Rua XV de Novembro 1050. Vinculado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná. (retorna)
(6) De acordo com o fragmento da página de rosto, o título da obra seria provavelmente: CIFR[AS DE MÚSICA PARA O] S[ALTÉRIO]. Em que se mostrão March[as...] Lunduns, Repiques de Ig[rejas...]. ANTON[IO VIEIRA DOS SANTOS]. (retorna)
(7) Harmonie universelle, 1957 [1636]: p. 226. (retorna)
(8) Chorographia histórica [...], p. 310 (retorna)
(9) O próprio Vieira dos Santos cita este construtor ao comparar dois tipos de instrumentos: o Author deste Salterio acrescentado era = Antonio Martins Santiago este asim o delineou e fes no Rio de Janrº no anno de 1768. (Cifr[as de Música], p. 2). (retorna)
(10) 1989, p. 143 (retorna)
(11) Reglas y advertencias generales [...]. Madrid, 1754, p. 83 [ed. Minkoff]. (retorna)
(12)Los salterios españoles del siglo XVIII, Revista de musicologia, VIII, nº 2, p. 304, Madrid, 1985. (retorna)
(13) Lisboa, Biblioteca da Ajuda, MS 54-X-37. Manuscrito de fins do século XVIII. (retorna)
(14) Reise in Brasilien, München, 1823-1832, suplemento musical. (retorna)
(15) Mário de Andrade, no Dicionário musical, p. 337 apresenta algumas notas acerca desta dança:
O minuete europeu, com todos os seus passos e regras, se chamava aqui "Minuete da Corte", pelo menos na metade do século XIX.
Do entremez "Casquilharia por força":
"Jacinta: O que eu desejava saber era o minuete da corte. (...)
"Roberto: Para hoje é impossível porque tem muitos passos dificultosos."
No entremez "Basófia no público e a fome escondida":
"porque quer a noite sai a dançar o minuete da corte.
Pantaleão: Pois minha mana quer aprender o minuete da corte em tão pouco tempo?"
(Almeida, P. Brazil-Theatro, 1: 257, 1901/2. (os dois entremezes são dados como do tempo colonial de D. João VI) (retorna)
(16) FERNANDES, João Ribeiro. O Folklore, 1919, p. 284. Citado por Mário de Andrade, op. cit., p. 484. (retorna)
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro; coordenação Oneyda Alvarenga, 1982-84, Flávia Camargo Toni, 1984-89. Belo Horizonte: Itatiaia / [Brasília]: Ministério da Cultura / São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1989. 701 p. (Coleção reconquista do Brasil. 2 série, v. 162).
Biblioteca Nacional de Lisboa, MM 44; MM 4178; MM 4460; MM 4467; MM 4473; MM 4504.
Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa: MS 54-X-37/27-55, Modinhas do Brazil, séc. XVIII, 32 f.
CUNHA MATTOS, Raimundo José da. Chorographia historica da Provincia de Goyaz. Revista do Instituto Historico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXVII, 1ª parte, p. 213-398, 2º trim. de 1874.
KETTLEWELL, David. "Dulcimer". In New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadle. London: Macmillan, 1980, vol. 5, p. 695-707.
LEITE, Antônio da Silva. Estudo de Guitarra. Porto: Antonio Alvarez Ribeiro, 1796. 40, XXIII p. Reimpressão, Lisboa: Ministério da Cultura / Instituto Português do Património Cultural, 1983, 5 f. inum., 40 p., XXIII p. (Lvsitana mvsica, II/opera rervm mvsicarvm scriptorvm).
MERSENNE, Marin. Harmonie universelle. Trad. Roger E. Chapman. The Hague: Marinus Nijhoff, 1957. 596 p.
MINGUET E YROL, Pablo. Reglas y advertencias generales que enseñan el modo de tañer todos los instrumentos mejores, y mas usuales, como son la guitarra, tiple, vandola, cythara, organo, harpa, psalterio, bandurria, violin, flauta traversera, flauta dulce y la flautilla. Madrid: o autor, 1754. Reimpressão, Genève: Minkoff, 1982, 120 p.
NEGRÃO, Francisco. Genealogia Paranaense. Curitiba: Impressora Paranaense, 1926-1950, 6 vol.
NERY, Rui Vieira; CASTRO, Paulo Ferreira de. História da Música. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991. 202 p.(Sínteses da Cultura Portuguesa).
NEVES, César das. Cancioneiro de Músicas Populares, contendo letra e música [...] trasladadas para canto e piano. Coord. Gualdino de Campos, pref. Teophilo Braga. Porto: Typographia Occidental, 1893, 95, 98, 3 vol. 307, 303, 305 p.
NEWTON, Isaac. Dicionario musical. Maceió: Typographia Commercial,1904. 315 p.
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SPIX, Joh. Bapt. von; MARTIUS, Carl Friedr. Phil. von. Reise in Brasilien, in den Jahren 1817-1820. Neudruck des 1823-1831 in München in 3 Textbänden und 1 Tafelband erschienen Werkes, herausgegeben und um ein Lebensbild der Botanikers von Martius sowie ein Register erweitert von Karl Mägderfrau. Stuttgart: F. A. Brockhaus, 1967.
SPIX, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820 / Spix e Martius. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1980. 3 vol. (Coleção Reconquista do Brasil; nova série, v. 46-47-48).
VIEIRA, Ernesto. Diccionario musical. 2ª edicção, Lisboa: Typ. Lallemant, 1899. 11 p., 551 p.