Departamento de Artes da UFPr
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 1.1/Setembro de 1996
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OS MODOS E A GÊNESE MUSICAL EM LUIS DE MILAN

Paulo Castagna

Este artigo foi inicialmente publicado em Cadernos de Estudo: Análise Musical, S. Paulo: Atravez, v.3, out. 1990. p.86-104.

Este artigo apresenta os resultados de uma análise do sistema modal na música para "vihuela de mano" de Luis de Milan (c. 1500 - após 1561). Os dados obtidos foram comparados com indicações deixadas pelo próprio compositor e com conceitos musicais de sua época, numa tentativa de examinar os elementos estruturais mínimos de que dispunha o vihuelista para a elaboração de sua música.

I. Milan e sua produção

Luis de Milan viveu na Espanha entre cerca de 1500 e pouco após 1561. Cortesão valenciano, poeta, escritor, vihuelista e compositor, de seu trabalho se conhecem apenas três livros impressos, todos destinados às necessidades artísticas da aristocracia ibérica. O "Livro de motes de damas y caballeros : Intitulado el juego de mandar", de 1535, e o "El Cortesano", de 1561 (baseado no "Libro del cortegiano, de Baldassare Castiglione"), são obras literárias com textos e poesias que versam sobre assuntos da corte (1). Já o "Libro de mvsica de vihuela de mano. Intitulado El maestro", de 1535, sua única publicação no gênero, foi dedicada ao rei D. João III de Portugal e voltado à prática musical da nobreza que o cercava (2).

Tida como a primeira coleção impressa de música instrumental espanhola, o El Maestro foi escrito para vihuela de mano [Figura 1], instrumento peninsular de origens medievais, como o violão, mas para o qual só foram encontradas até hoje, composições feitas no século XVI. Suas seis ordens, ou pares de cordas, eram afinadas como as do alaúde (3), permitindo a execução de música polifônica, original e/ou transcrita de obras vocais.

A notação da música para vihuela era feita por meio de um hexagrama, que representava as ordens do instrumento (a linha superior correspondendo à primeira ordem), e de números e figuras de canto de organo que indicavam, respectivamente, os trastes a serem usados pela mão esquerda e o tempo que deve separar os ataques da mão direita.

Milan apresenta suas composições por esse sistema de cifras, quase sempre precedidas por reglas ou declaraciones, pequenos textos com informações destinadas à sua compreensão e execução.

No El Maestro encontram-se, além de inúmeros textos, 72 peças musicais. Destas, 50 são "para tañer de vihuela" (31 fantasias, 13 tentos e 6 pavanas) e 22 para "cãtar y tãner en castellano y en portugues, y en italiano" (12 villancicos, 4 romances e 6 sonetos). O livro não é apenas uma coleção repertorial, mas também uma obra didática, contendo uma seqüência cuidadosamente planejada de textos, "reglas e musica en cifras, pois es su intencion formar e hazer vn musico de vihuela de mano; daquella misma manera que vn maestro haria en vn discipulo que nunca huuiesse tañido" (fol. Br) (4) .

II. Modos e transposições modais

Quase como um tratado teórico, Milan fornece informações básicas para a compreensão do sistema utilizado, permitindo uma análise que revele as estruturas musicais mínimas conhecidas e empregadas pelo autor.

Na "Inteligencia y declaracion delos tonos que en la musica de canto figurado se vsan", o vihuelista adverte que "no auez de entender que ay mas de ocho tonos en la musica" (fol.R6r), como era sabido de todos os músicos práticos e teóricos, antes que o sistema de 12 modos fosse descrito por Glareanus no Dodecachordon (5), de 1547. Desses 8 modos ou "tonos", 4 são "maestros" e 4 são "discipulos", termo hoje entendido como autênticos e plagais (6). Colocando em pauta as informações encontradas na Inteligencia, observamos no Diagrama I os 8 modos de que fala o autor, cada qual com sua numeração, seu "termino" (o antigo "ambitus") e sua "clausula final " (a antiga"finalis"), além dos modos mixtos, assim descritos pelo compositor: "se el tiple sube nueue puntos encima de su clausula final, y abaixa tres o quatro puntos debaxo de dixa clausula final : entonces vsa del termino del tono maestro y el discipulo, y se mescla conellos : y por esto se dize mixto" (fol. R6r).

Milan indica a possibilidade do uso de duas notas além da oitava, escala básica dividida em quitas, ou diapente, e quartas, ou diathesaron, com a função de permitir cadenciamentos completos. Mas nem sempre usa em música o termino que descreve. Em vários casos há notas que excedem os 10 "puntos" e em outros a oitava não chega a se completar, demostrando a não rigidez do sistema na questão dos âmbitos modais.

Sabemos, pelo autor, que "el tono se ha de conocer en solo en tiples en las cõposturas de musica" (fol. R5r), ou seja, apenas na voz superior da peça polifônica. As vozes inferiores participam do contraponto, mas sempre regidas pelo modo configurado no "tiple". A tarefa mais difícil, entretanto, é distinguí-las entre si, pois o vihuelista alterna o uso de uma, duas, três e quatro vozes, em muitos casos entrelaçando-se de tal maneira, que o termo pseudo-polifonia se torna mais apto a caracterizar o tipo de música que se observa, quando se transcreve suas "cifras" para notação moderna. [Ex. I]Por isso, o conhecimento preciso do modo de uma peça se torna fundamental para uma transcrição criteriosa.

Facilitando a análise, Milan informa também que cada peça para "tañer de vihuela" está composta em torno de um único padrão modal, seja ele "maestro, discipulo" ou "? mixto" (7). Apesar de pequenos segmentos de uma obra poderem apresentar incursões em outros modos, esse comportamento é apenas uma das propriedades da escala sobre a qual a música foi construída. Os modos atuam como gene na criação musical, determinando a prior grande parte das características melódicas e harmônicas que terá e peça acabada.

Mas não é apenas nessa forma que os modos são usados por Milan. O autor descreve um recurso que denomina "mutacion de termino" (fol. E2v), que nada mais é do que a transposição do ambitus e da finalis do modo "por otra parte en la vihuela" (fol. F3v), ou seja, para outra parte do braço do instrumento. O mesmo modo pode aparecer, portanto, "mudado por otras partes" (fol. K2v) ou "por otros terminos" (fol. E2v).

Catalogando todas as transposições utilizadas por Milan em sua música, constatamos seis categorias diferentes ou, na linguagem de vihuelista, seis "clausulas finales" com seis "terminos" possíveis para cada modo, apesar de não mais quatro delas serem usadas em cada caso (Diagrama II).

Notamos ainda, que as "clausulas finales" do mesmo modo, em cada transposição, estão separadas entre si pela mesma distância que separa as alturas ut re mi fa sol la, os signos de solmização conhecidos na época e, aqui, correspondentes à escala Dó-Ré-Mi-FáSol-Lá (8). Assim sendo, usaremos tais signos para dar nome às transposições e facilitar o reconhecimento da escala básica em cada peça (9).

Esse diagrama foi construído levando-se em conta uma transcrição das "cifras" para a notação moderna com base na afinação do violão, uma vez que não existia na época nenhuma indicação precisa para a altura das cordas da vihuela, além do intervalo que separa suas ordens (10). Também não existia um padrão que estabelecesse a altura absoluta das notas musicais, fazendo com que o sistema de leitura musical, ou solmização, fosse sempre relativo. Por isso, qualquer que fosse a transposição usada na vihuela, as "clausulas finalis" dos oito modos recebiam sempre as mesmas designações, baseadas apenas na nomenclatura teórica das notas musicais. Tais nomes eram o resultado da superposição vertical de letras e signos de solmização, de acordo com o Diagrama III (11).

Isto significa que os vihuelistas não faziam seus cálculos sobre pentagramas, mas diretamente sobre o braço da vihuela (12). Representando-se nas cordas do instrumento a posição de cada uma das seis "clausulas finales" possíveis para cada modo, temos uma idéia bem mais clara dos pontos sobre os quais Milan construía as escalas modais em cada tipo de transposição [Diagrama IV].

Entende-se, portanto, como um mesmo "punto" da vihuela pode ser "clausula final" de modos diferentes: "por estas mismas ptes (6º modo, transposição Lá) se puede azer el octauo (transposição Sol) la diferencia es ~q feneciedo los dos en vn mismo p~uto (1ª ordem, 3º traste) se dira fefaut si es sexto y gesolreut si es octauo" (fol. Pr).

O uso de várias transposições teria a função de dinamizar o sistema, de atribuir matizes diferentes para a mesma cor (tono ou modo): "mejor paresce el tercero y quarto tono enla vihuela por donde esta fantasia anda (3º modo, transposição Fá) que no por dõnde va la fantasia passada (3º e 4º modos, transposição Sol) (fol. K2v)". Teoricamente, Milan apresenta a possibilidade total de 48 escalas diferentes. Muitas delas, entretanto, não são usadas, ou pela dificuldade técnica que implica sua execução, ou pelas limitações de âmbito impostas pelo instrumento, já que o número máximo de 10 "trastes" na vihuela impedia a formação completa de certas escalas: "no se puede perfectamente formar por aq sino el sexto" (transposição sol): "porq pa el qu~ito tono faltale su justo termino " (fol. Mr). A nota correspondente à 2ª ordem, 3º "traste" (Ré3, no violão) era a "clausula final" mais aguda sobre a qual se podia construir uma oitava completa.

III. Aspectos Didáticos

Além de proporcionar grande variabilidade de caracter, o uso de diferentes modos e transposições teve uma intenção claramente didática. Milan organiza as obras de seu livro segundo vários critérios, dois deles envolvendo fatores ligados ao sistema modal:

  1. a apresentação coerente dos modos para cada forma musical;
  2. a apresentação de número e dificuldade técnica crescente de transposições modais.

O primeiro critério pode ser observado na Tabela I, onde a numeração das obras que adotamos é seguida, entre parênteses, pela numeração proposta por Ruggero Chiesa, atualmente a mais conhecida (13). As indicações de livros, cadernos (grupos de peças identificadas por letra maiúsculas), das formas musicais e, no caso das peças para vihuela solo, dos seus modos, são originais de Milan ( seja VC= villancico en castellano, VP= villancico en portugues, RC= romance en castellano e SY= soneto en ytalino).

Observamos, então, que as fantasias apresentam ao principiante, numa ordem quase perfeita, os modos maestros, discipulos e mixtos, mas com interpolação, em ambos os libros, dos grupos de tentos. Estes últimos, assim como as pavanas, apresentam também em ordem os modos mistos. Já os dois grupos de musica para cantar e tañer, para os quais indicamos apenas os modos relativos às partes vocais, fazem uso desordenado dos modos, mas com uma nítida preferência pelo 1º e 7º, rejeição do 3º e 4º e raro uso dos modos mistos.

O segundo critério de organização pode ser observado na Tabela II. Nesta, utilizamos como medida da quantidade de peças o quaderno, conjunto de 3 folhas grandes impressas em frente e verso e dobrado no momento da encadernação, totalizando 12 páginas de musica en cifras e englobando número e tipos cuidadosamente planejados de composição.

É o próprio vihuelista quem indica quais são as escalas que resultam em música de execução mais simples, como o 1º modo na transposição re: "por estos terminos se da la musica mas facil enla vihuela que por otras que la musica huiesse de subir mas arriba del cinqueno traste y porque no sean dificiles de tañer al principiante" (fol. B2v).

Percebemos, assim, como o primer libro, que es para pricipiante (fol. B3v), serve-se de modos por partes faciles (fol. B3v), enquanto a música do segundo livro, muito mais difícil, está feita sobre transposições de execução mais complexa: "y asi vereys eñste segundo libro los tonos por otras partes en la vihuela q eñste passado libro haueys visto" (fol. H8v). Já nas peças para canto e vihuela, a diferença é mais sutil, com um predomínio das transposições sol e la no primeiro livro e ut e re no segundo, além de número maior de transposições usadas, com relação às peças para vihuela solo.

Com isso, o compositor acaba fornecendo ao principiante as informações necessárias e suficientes para a construção das escalas na vihuela, mas de uma maneira completamente integrada à sua prática musical e ao seu grau de domínio técnico do instrumento.

IV. Cadências Intermediárias

Compreendida a estrutura básica dos modos em Milan, passemos a analisar as características estruturais de cada um deles. Segundo o autor, um modo não se individualiza apenas enel termino ou en la clausula final, mas também en las clausulas (fol. R5v), ou seja, nas pontuações ou cadências intermediárias que acontecem no decorrer da peça. [Ex. II]

Muitas são as formas de cadências que aparecem, com relação ao material empregado, apesar de Milan identificar apenas duas delas como clausula (cadência que faz uso da suspensão e resolução de uma das vozes), e cadencia (cadência plagal): "no todas las fantasias acaban en clausula: porque algunas acaban en vna cadencia o consonancia" (fol. R6r). Porém, o que nos interessa aqui não é a maneira como ocorrem as cadências, mas em que graus do modo são encontradas.

O autor aponta, na Inteligencia, três tipos de cadências, com relação aos graus das escalas em que se formam: generales (I, IV e V graus), voluntarias ou punto descançar (III grau) e, apenas para o 1º modo, un punto mas baxo d su clausula final (VII grau, abaixo da finalis). A análise demonstra um sistema bem mais complexo, mas confirma a existência de uma hierarquia para as cadências, que teóricos como Gallus Dressler agrupava em clausulae pricipales, clausulae minus principales e clausalae peregrinae (14). Observamos na Tabela III a taxa média de cadências que cada grau recebe em modos e transposições específicos na música para vihuela solo (entre parênteses a quantidade de peças encontradas) (15).

Embora seja possível constatar diferenças quantitativas que estatisticamente confirmem as categorias cadencias de Milan e Dressler, percebemos como as transposições podem influir na ocorrência de certas clausulas, por razões puramente instrumentais (a transposição sol, por exemplo, aparece como a mais pobre em variedade de cadências intermediárias).

Mas há particularidades no cadenciamento de cada modo: enquanto para o 1º, 2º, 7º e 8º modos as clausulas generales são I-IV-V, no 3º e 4º modos temos I-IV-VI e no 5º e 6º, I-IVb-V (modos plagais e mistos podem, evidentemente, cadenciar abaixo da finalis). Outras diferenças acontecem ainda ao nível das cadências que chamaremos de excepcionais e inexistentes, como veremos na Tabela IV e no Gráfico I, apresentados a seguir:

Gráfico I

A razão desse comportamento específico pode ser encontrada na própria estrutura de cada escala. Em todos os modos há dois graus que distam um trítono entre si, ou seja, uma quarta aumentada ou uma quinta diminuta. Conhecido há séculos como diabulus in musica, este intervalo ainda era tido como elemento desestabilizador do sistema, dado o desequilíbrio acústico que causava sua ocorrência. Não era um intervalo proibido no século XVI, mas usado com extrema cautela, de modo a ser ouvido com a mínima ênfase possível. Como a cadência é um repouso sobre determinado grau, resultando em seu evidenciamento, duas delas jamais podem estar separadas por um trítono dentro de uma mesma peça.

Assim é que no 3º e 4º modos, o caso mais drástico, as duas extremidades do trítono deixam de receber cadências (II e V graus). Já no 5º e 6º modos, dos graus extremos (I e IV) só não ocorre cadência no IV, mas esta se dá no IVb, onde o grau fundamental é bemolizado. Com isso, novo trítono interno é formado, impedindo agora que ocorra o cadenciamento no VII grau.

Nos outros modos, apenas uma das extremidades do trítono é evitada como grau cadencial (VI no 1º e 2º, VII no 7º e 8º), o que nos permite, finalmente, compreender o significado das categorias de cadências intermediárias.

As clausulas generales (cadências próprias) ocorrem sobre os graus, em termos estruturais, perfeitamente consonantes de cada modo, graus esses que variam de um modo para o outro, caracterizando-os. Já a clausula voluntaria (cadências facultativas) é feita sobre um grau estruturalmente também consonante (ainda que uma consonância imperfeita, pela teoria da época), mas situado no meio da quinta do modo e idêntico para todos eles (III grau): é um punto para descansar, comum a todas as escalas, onde a cadência, como nas clausulas generales, sempre é permitida.

Por essa razão, o 1º, 2º, 7º e 8º modos cadenciam no III grau, deixando a outra extremidade do triângulo com cadências inexistentes. Cadências excepcionais podem ocorrer ainda em outros graus, desde que não repousem sobre um dos graus formadores do trítono.

Assim sendo, deduzimos não haver, pelo sistema, proibição de cadências no II grau para 5º e 6º modos (apesar de Milan não ter se utilizado desse recurso), uma vez que não existe trítono entre esse e outro grau nessas escalas.

V. Alterações Cromáticas

Analisaremos, agora, os acidentes ou alterações cromáticas que ocorrem em cada modo, cuja utilização não é comentada por Milan. Por uma análise estatística, quantificamos essas alterações em três categorias distintas, para apresentá-las no Diagrama V como:

a) muito freqüentes (acidentes grandes;

b) pouco freqüentes (acidentes pequenos);

c) raras ( acidentes pequenos, entre parêntesis).

As escalas modais são novamente representadas neste diagrama (apenas pelos modos autênticos), com notas brancas indicando graus de cadência inexistente e os acidentes quantificando e qualificando as alterações cromáticas encontradas. Para facilitar a compreensão da análise, ao lado dos modos representamos as suas cadências intermediárias características.

Observamos, em uma das extremidades do trítono interno de cada modo, o uso de acidentes muito freqüentes. Usados, dentre esses extremos, sobre os graus estruturalmente menos característicos do modo, sua função é abrandar a ocorrência melódica ou harmônica desse trítono. [Ex. III]

Já os acidentes pouco freqüentes e raros têm como função primeira permitir a formação das clausulas, que necessitam um semitom superior ou inferior (mas nunca ambos) para polarizar o grau cadencial e, em muitos casos, a "terça de picardia" (acidente que torna maior a terça do acorde) para enfatizar o acorde formado. [Ex. IV]

Constatamos, então, quatro categorias hierárquicas para as alterações cromáticas. Assim como nas cadências, temos para estas as próprias (muito freqüentes), facultativas (pouco freqüentes), excepcionais (raras) e inexistentes. Mas o que torna o sistema interessante é o fato de todas as alterações poderem ocorrer com outras funções, aparecendo as peças quase sempre repletas desses acidentes, aparentemente estranhos ao modo, mas perfeitamente integrados à sua estrutura. Foi possível detectar muitos casos diferentes para as alterações cromáticas, além dos mencionados, porém sempre utilizando os acidentes indicados, em suas respectivas transposições. [Ex. V]

Como conseqüência dessas alterações, é nítida a aproximação que existe entre o 5º e o 7º modos (e respectivos plagais), pela tendência à sua equiparação intervalar, o mesmo acontecendo entre o 1º e o 3º (ídem), a ponto de ser quase impossível, em muitos casos, a sua diferenciação. O trítono, que provoca em cada modo a necessidade do uso de certas alterações, agora é responsável pela tendência à fusão, ou hibridização de certos modos, acarretando a desestabilização progressiva do sistema. Compreende-se o cuidado que se tinha com esse intervalo.

VI. Conclusões

Percebemos, então, a relação entre a estrutura da escala modal escolhida e as principais características melódicas e harmônicas da peça acabada. De um lado, a posição dos tons e semitons no modo determina a posição do trítono interno e, como conseqüência, os graus onde ocorrerão cadências e os tipos de acidentes que serão usados. De outro, a adoção de um modo autêntico, plagal ou misto já determina o âmbito, a posição exata dos graus cadenciais e das alterações cromáticas na escala, limitados e distribuídos no braço do instrumento de acordo com a transposição empregada.

A gênese da música modal, como esta que vimos em Milan, lembra a própria gênese dos seres vivos, onde a posição dos amino-ácidos na molécula de DNA determina a seqüência dos genes, que já no embrião contêm codificadas todas as características estruturais do indivíduo adulto, e não apenas tais indivíduos possuem características absolutamente individuais, como estas são o resultado da troca de genes, e portanto características, dos dois indivíduos que o geraram.

Observamos como o 1º e o 2º modos se aproximam do 3º e 4º pela troca de fatores comuns, o mesmo se dando entre o 5º e 6º e o 7º e 8º modos. Estes são, respectivamente, os pais dos modos dórico e hipodórico (9º e 10º), jônio e hipojônio (11º e 12º), nomes infantis dos modos adultos menor e maior.

Se, até aqui, analisamos a ontogênese do sistema modal em Milan, pudemos observar apenas uma das gerações na filogênese dos sistemas musicais. Superpondo-se, modificando-se, aniquilando-se, muitos sistemas existiram desde que o homem começou a fazer música, alguns chegando vivos em nossos dias e outros só descobertos após a extinção.

Sistemas ainda em uso, novos ou velhos, muito ou pouco difundidos, apesar de profundamente enraizados na evolução musical, algum dia também se tornarão arcaicos, cedendo seus lugares a outros sistemas que percorrerão os mesmos caminhos: "Enquanto este planeta continuar a girar, obedecendo à imutável Lei da Gravidade, as formas mais belas, mais maravilhosas, que evoluíram a partir de um início tão simples, ainda prosseguem hoje em dia neste desenvolvimento" (Charles Darwin, 1859) (16).



Notas

(1) A primeira biografia conhecida de Luis de Milan, sobre a qual estão baseadas as demais, foi publicada em MORPHY, Guillermo. Les luthistes espagnols du XVIe siècle. Leipzig: Breitkopf und Hartel, 1902. Cf. PRAT, Domingo. "Milán, Luis", in:Diccionario de guitarristas... . Buenos Ayres:Casa Romero y Fernandes, 1934, pp.206-208. (retorna)

(2) Extremamente raro, existem hoje cerca de 12 exemplares do El maestro, em bibliotecas de Barcelona, Madrid, Viseu, Leipzig, Paris, Parma, Haia, Londres, Chicago e Washington, cujo frontispício é o seguinte: LIBRO DE MV | sica de vihuela de mano. Intitulado El | maestro. El qual trahe el mesmo estilo y orden | que vn maestro traheria con vn discipulo | principiante : mostrandole ordenadamen | te desde los principios toda cosa que | podria ignorar para entender la | presente obra. Compuesto por | don Luys Milan. Dirigido | al muy alto et muy pode | rodo et inuictissimo pr~ici | pe don Juhan : por | la gracia de dios | rey de Portu | gal y de las yslas. | etc. | Año. M.D.xxxv. | Con priuilegio Real. (no fo;.R6r. : /.../ por Francisco Diaz Romano. En la Metropo;itana y Coronada | Ciudad de Valencia. Acabose a .iiii. dias del mes de Dez~iebre | Año de nuestra reparacion. de Mil y quinientos | treinta y seys). Houve seis reedições complestas desta obra, a saber: Libro de musica de vihuela de mano intitulado El maestro (ed. Leo Schrade). Leipzig (Publicationen alterer Musik, II), 1927, e 2ª ed. Wiesbaden, 1976; El Maestro (Trascrizione in notazione moderna per chitarra di Ruggero Chiesa). Milano: Edizioni Suvini-Zerboni, 2º vol., 1965, 2ª ed. 1975; Libro de Musica de vihuela de mano intitulado El Maestro (ed. e tradução de Charles Jacobs). Pensylvania State University Press, 1971; Libro de Musica de vihuela de mano (ed. facsimilar). Genève: Minkoff Editeur, 1975. (retorna)

(3) A vihuela descrita por Milan tinha seis pares de cordas afinadas em uníssonos e distantes entre si (da mais grave à mais aguda) segundo a relação 4ªJ-4ªJ-3ªM-4ªJ-4ªJ. Para tornar a afinação do violão próxima à das vihuelas, as cordas devem ser usadas nas alturas Mi1-Lá1-Ré2-Fá#2-Si2-Mi3. (retorna)

(4) Nos livros antigos, muitas vezes a numeração era feita não por página, mas por fólio (fol.). Neste sistema de transcrição, o fólio é indicado por uma letra maiúscula que representa o caderno (unidade de encadernação constituída por 3 ou 4 folhas grandes dobradas), um algarismo arábico que dá a posição do fólio no caderno e as letras "r" ou "v", que indicam a lauda da frente (reverso) ou do verso. (retorna)

(5) Há edição facsimilar pela Georg Olms Verlag (Hildesheim e N. York, 1969, 470p.). (retorna)

(6) Mestres e discipulos. Os dicionários e tratados de música espanhóis e portugueses continuam a utilizar esta nomenclatura até, pelo menos, o final do século XIX. Traduções para o vernáculo do latim autenticus e plagalis são características deste século. (retorna)

(7) Há casos ambíguos, como o villancico en castellano I (Toda vida hos ame), que atribuímos ao 5º modo (transposição re), mas que também pode ser analisado como 7º modo (transposição ut). Quanto à mudança do modo na mesma peça, um único caso parece ocorrer no romance en castellano I (Durandarte durandarte), do 7º modo (transposição em sol), onde a segunda parte começa no 5º modo (transposição ut), retornando em seguida ao modo e transposição anteriores. (retorna)

(8) A solmização foi um sistema criado por Guido d'Árezzo no século XI e exposto pela primeira vez por Johannes Afflighemensis no tratado De Musica, de c.1100. Nesse sistema, as sílabas ut re mi fa sol la, iniciais do hino Ut queant laxis, eram usadas para entoar três tipos de hexacordes: naturale (Dó Ré Mi Fá Sol Lá), mollis (Fá Sol Lá Sib Dó Ré) e durum ( Sol Lá Si Dó Ré Mi). (retorna)

(9) No século XVI a transposição começa a ser usada tanto na música vocal (conhecida como cantus fictus) quanto na música instrumental. Os vihuelistas sempre fazem uso da transposições cuja distância está baseada nos signos de solmização. Porém, enquanto Milan emprega o hexacorde naturale (correspondente à escala Dó Ré Mi Fá Sol Lá), Alonso de Mudarra e Henriquez de Valderrabano, por exemplo, utilizam transposições sobre o hexacorde durum (Sol Lá Si Dó Ré Mi). Já Luis de Narváez serve-se de ambos, usando uma escala do tipo (Dó) Ré Mi Fá Fá# Sol Lá, ou (Sol) Lá Si Dó Dó# Ré Mi (desprezando a transposição entre parênteses). (retorna)

(10) A constatação de transposições diferentes para o mesmo modo fez com que vários musicólogos imaginassem que cada livro de música para esse instrumento teria sido escrito para vihuela com seis afinações diferentes, permitindo sempre a transposição moderna com ausência de bemóis ou sustenidos na armadura de clave. Sob esse ponto de vista, Milan teria escrito para vihuela em Ré, Mi, Fá#, Sol, Lá e Si (considerando a altura da primeira ordem), cuja música estaria cifrada, respectivamente, nas transposições la, sol, fa, mi, re e ut. Essa interpretação, apesar de bastante difundida, não encontra qualquer fundamentação teórica. O próprio Milan deixa instruções para afinar o instrumento que invalidam tal hipótese: Si la vihuela es grãde, tenga la prima (primeira corda) mas gruessa que delgada. Y si es pequeña, tenga la prima mas delgada que gruessa: y hecho esto, subireys la prima tan alto quanto lo pueda suffrir: y despues templareys las otras cuerdas, al punto dela prima (fol. A3v). (retorna)

(11) Cf. MICHELS, Ulrich. DTV-Atlas zur Musik.München: Deutcher Taschenbuch Verlag/Bärenreiter Verlag, 1981, p. 188 (trad. esp. León Mames, Atlas de musica, I. Madrid: Alianza Ed., 1989). (retorna)

(12) Juan Bermudo descreve este processo na Declaración de instrumentos musicales (Ossuna: Juan de Leon, 1555), libro II, cap. 35: comúnmente los tañedores de vihuela que son diestros en el arte de cifrar y de poner en este instrumento cifras ymaginam começar la sexta cuerda en vazio en gamaut y algunas vezes en A re (...) Puede ser la sexta en vazio no solamente gamaut (Sol), o A re (Lá) pero B mi (Si) y C fa ut (Dó) y D sol re (Ré) y cuaquiera de los otros signos diferentes. Dije señaladamente ymaginar porque pintar las vihuelas, guitarras, bandurrias y rabeles que adelante veréys no se hace porque de parte de los dichos instrumentos ello sea así, sino que teniendo las vihuelas dibujadas, fácilmente (mirando a los signos que en ellas están pintados) puedem cifrar. Es, pues, este arte ymaginario; para por él venir con facilidad y certitumbre a cifrar que es lo que muchos tañedores desean. De la manera que ymaginaréis ser la sexta en vazío, así tendrán las claves sus asientos. Pues como se mudare en la vihuela el gamaut, así se mudarán las claves. Cf. NARVÁEZ, Luys de. Los seys libros del Dephin de música de cifra para tañe vihuela. Valladolid, 1538; Transcrición y estudio por Emilio Pujol. Barcelona: Instituto Español de Musicologia, 1945, p.29. (retorna)

(13) A análise das peças classificadas por R. Chiesa como fantasias X a XVIII (do primeiro livro) e das referências legadas por Milan, não deixa qualquer dúvida de que estas pertencem à mesma forma musical dos tentos do segundo livro: Esta arte de musicas que agora se sigue (grupo N) es semblante ala musica ~dl quarto y quinto quadernos (grupos D e E) ~dl primero libro (fol. M4v). Portanto, ao reclassificarmos tais peças como tentos, temos que alterar a numeração das fantasias que se seguem. (retorna)

(14) Dressler, no Praecepta musicae poeticae, de 1563, caracterizou esses três tipos de cadências: 1. principais (principales) "...nas quais consistem o fundamento do modo /.../as cadências /.../são construídas sobre as notas das espécies de quarta e quinta, ou nos repercutia; 2. secundárias (minus principales) ...que não se afastam da fonte básica do modo, mas podem ser inseridas sem efeito desagradável no meio de uma obra; 3. estranhas (peregrinae) ...que não possuem lugar próprio no modo, mas são invasões de outros modos". Cf. POWERS, Harold S.. "Mode", in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. (Org. S. SADIE). London: Macmillan Publs. Ltd., 1980, v. 12, pp. 376-450. (retorna)

(15) Para essa análise, marcamos todas as cadências observadas na música para vihuela solo, indicando o grau em que ocorriam. Em seguida, preparamos uma tabela com o número de cadências encontradas por grau em cada peça para, em seguida, proceder a uma análise estatística, agrupando obras de mesmo modo e transposição modal. Não consideramos a música para voz e vihuela, cujas cadências intermediárias possuem um comportamento diverso, ficando restritas quase que exclusivamente às clausulas generales. (retorna)

(16) Cf. DARWIN, Charles. Origem das espécies (trad. Eugênio Amado). B.H.: Editora Itatiaia; S.P.: EdUSP, 1985, p. 366. (retorna)



Referências Bibliográficas

ALDRICH, Putnan. "An approach to the Analysis of Renaissence Music", in: The Music Review, 30 (1):1-21, 1969.

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PAULO AUGUSTO CASTAGNA é pesquisador da música brasileira, Mestre em Música pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e professor da Faculdade Santa Marcelina e da Faculdade de Música Carlos Gomes, São Paulo. (retorna)

Copyright@1996 Revista Eletrônica de Musicologia, vol. 1.1/Setembro 1996